Terras devolutas são "aquelas que não estando afetadas a algum uso público federal, estadual ou municipal, não caíram regularmente no patrimônio dos particulares" [1], cuja história e conceito decorrem das dificuldades de ocupação do território brasileiro pela Coroa Portuguesa.
Em razão da extensão continental e do clima tropical brasileiro, o governo lusitano encontrou dificuldades na ocupação do país, tendo vislumbrado o regime de sesmarias como uma alternativa para a ocupação das terras [2].
O regime de sesmarias, que perdurou por todo o período colonial, era pautado em usos e procedimentos fundados na tradição, que visavam o aproveitamento de terras por particulares num período em que inexistiam meios legais alternativos para viabilizar esses intentos [3].
Neste período, a terra não era compreendida como meio de comércio e a aquisição das sesmarias vinculava-se ao favoritismo dos governantes. Não obstante, o sesmeiro recebia incumbências em decorrência de sua posse, como o dever de medir, demarcar e cultivar as terras recebidas.
Contudo, no início do período imperial, foi determinada a proibição da concessão de sesmarias, sob a justificativa de que o regime não alcançou o objetivo almejado, qual seja aumentar a população e a produtividade agrária. Nesta época, foi instaurado o chamado "regime de posses". Ainda assim, apenas com a promulgação da Lei de Terras (Lei nº 601/1850) é que a aquisição de propriedades passou a ser regulamentada.
A Lei nº 601/1850 dispõe sobre as terras devolutas do Império, também como sobre aquelas que foram possuídas por título de sesmaria sem preenchimento das condições legais ou por simples título de posse mansa e pacífica. Ao alterar o regime de aquisição de terras, a referida lei determina a demarcação das terras devolutas, bem como a sua concessão à título oneroso para empresas particulares.
De acordo com o artigo 3º desta lei, são terras devolutas aquelas que não foram aplicadas ao uso público nacional, provincial ou municipal; não estivessem sob domínio particular por qualquer título legítimo, nem foram havidas por sesmarias ou outras concessões do governo; as que não foram ocupadas por posse e, apesar de não apresentarem título legal, foram legitimadas pela Lei de Terras.
Muito embora o objetivo da Lei de Terras fosse a identificação, demarcação e concessão das terras devolutas, este não foi alcançado. Fato é que o governo brasileiro encontrou diversas dificuldades na aplicação da legislação, posto que não possuía meios para controlar a ocupação de terras e dependia da prestação de informações das mais variadas autoridades locais, que muitas vezes não conseguiram apresentar subsídios necessários para a identificação das sesmarias, posses e terras devolutas [4].
Em decorrência deste embaraço histórico, o Estado brasileiro é um grande possuidor de terras devolutas, que carecem de identificação, demarcação e regularização.
A partir do exposto, foram criadas legislações e programas governamentais relacionados ao tema. Neste contexto, uma preocupação legislativa é finalidade a qual as terras são receberão, sendo evidente a priorização da função social da propriedade e a prevenção à criação de latifúndios.
A referida orientação possui fundamento constitucional, haja vista que o artigo 188 da Constituição Federal prevê a que a destinação de terras públicas e devolutas será compatibilizada com a política agrícola e com o plano nacional de reforma agrária:
"Art. 188. A destinação de terras públicas e devolutas será compatibilizada com a política agrícola e com o plano nacional de reforma agrária.
Frise-se que a delimitação de metragem máxima da alienação ou concessão de terras devolutas trata-se de tentativa do legislador constituinte de evitar a concentração de terras, razão pela qual determinou-se a aprovação pelo Congresso.
No que diz respeito à alienação de terras devolutas, destaca-se a Lei nº 6.383/1976, que instituiu o Processo Discriminatório de Terras Devolutas da União, que permite a alienação de terras que se prestem à reforma agrária. De acordo com o artigo 29 desta lei, o ocupante de terras públicas, que as tenha tornado produtivas com o seu trabalho e o de sua família, fará jus à legitimação da posse de área contínua até cem hectares, desde que não seja proprietário de imóvel rural e comprove a morada permanente e cultura efetiva pelo prazo mínimo de um ano. Nestes casos, o ocupante receberá uma licença de ocupação, com validade mínima de quatro anos. Findo o período da licença, o ocupante terá a preferência para aquisição do lote, pelo valor histórico da terra nua, desde que comprovada a sua capacidade para desenvolver a área ocupada.
Do mesmo modo, o Estatuto da Terra (Lei Federal nº 4.504/64) que "Dispõe sobre o Estatuto da Terra, e dá outras providências", disciplinou, pela primeira vez, o arrendamento rural, estabelecendo regras para a exploração agrícola ou pastoril, das indústrias extrativas, vegetal e animal, e de transformação de produtos agrícolas e pecuários.
Considerando que as terras devolutas são terras públicas, entende-se que as disposições do artigo 6º são aplicáveis a estas, independentemente de suas peculiaridades:
"Art. 6º. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão unir seus esforços e recursos, mediante acordos, convênios ou contratos para a solução de problemas de interesse rural, principalmente os relacionados com a aplicação da presente Lei, visando a implantação da Reforma Agrária e à unidade de critérios na execução desta.
Além disso, o artigo 11 do Estatuto da Terra versa especificamente sobre as terras devolutas, mencionando a possibilidade de criação de convênios e a harmonização dos interesses regionais com as demandas de ocupação:
"Art. 11. O Instituto Brasileiro de Reforma Agrária fica investido de poderes de representação da União, para promover a discriminação das terras devolutas federais, restabelecida a instância administrativa disciplinada pelo Decreto-Lei n. 9.760, de 5 de setembro de 1946, e com autoridade para reconhecer as posses legítimas manifestadas através de cultura efetiva e morada habitual, bem como para incorporar ao patrimônio público as terras devolutas federais ilegalmente ocupadas e as que se encontrarem desocupadas.
Por todo o exposto, verifica-se que as consequências de decisões políticas do período colonial reverberam até a contemporaneidade e impactam diretamente na regularização fundiária brasileira. Apesar das dificuldades encontradas ao longo dos séculos, há um movimento de promoção da identificação e demarcação das terras devolutas, com posterior alienação ou concessão à particulares. Este movimento, no entanto, foi redirecionado pelas mudanças do aparato jurídico vigente.
Muito embora a regularização das terras devolutas seja um objetivo almejado desde a promulgação da Lei da Terra, em 1850, o cenário atual fundamenta-se por princípios norteadores da Constituição de 1988, que preza pela função social da propriedade e limita a concentração de terras. Sendo assim, tanto a alienação, quanto a concessão e o uso das terras públicas vagas, previstos em legislações correlatas, coadunam com os fundamentos constitucionais.
A partir do exposto, cabe a reflexão de que mudanças estruturais, procedimentais e a modernização da legislação são aspectos necessários à promoção da regularização fundiária. Considerando os grandes embaraços do histórico brasileiro, o que se espera do presente é a implementação de uma melhor distribuição das terras devolutas, visando a implementação e expansão de seu uso sustentável.
[1] DE ARAUJO, Ionnara Vieira. REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA E TERAS DEVOLUTAS. Revista da Faculdade de Direito da UFG, v. 33, n. 2, p. 112/127-112/127, 2009.
[2] CAVALCANTE, José Luiz. A Lei de Terras de 1850 e a reafirmação do poder básico do Estado sobre a terra. Histórica, v. 2, p. 1-8, 2005.
[3] NOZOE, Nelson et al. Sesmarias e apossamento de terras no Brasil colônia. Revista EconomiA, v. 7, n. 3, p. 587-605, 2006.
[4] PETRONE, Maria Theresa Schorer. Terras devolutas: posses e sesmarias no Vale do Paraíba paulista em 1854. Revista de História, v. 52, n. 103, p. 375-399, 1975.
Fonte: ConJur