O ministro André Mendonça, do Supremo Tribunal Federal, votou nesta quarta-feira (30/8) a favor do marco temporal para a definição da ocupação tradicional da terra por indígenas. Ou seja, para restringir aos povos originários o direito às terras que ocupavam ou já disputavam em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição Federal.
Mendonça concluirá seu voto na sessão desta quinta (31/8). O julgamento está empatado, com dois votos contra o marco temporal e dois a favor. Os ministros Edson Fachin, relator do caso, e Alexandre de Moraes votaram contra o marco temporal, em respeito à tradição das terras indígenas. O ministro Kassio Nunes Marques divergiu por considerar que a definição aumenta a segurança jurídica.
No fim de maio, a Câmara dos Deputados aprovou o marco que limita a demarcação de terras indígenas. De acordo com o texto — ainda sujeito a alterações pelo Senado —, a demarcação será restrita às terras já ocupadas por esses povos em 5 de outubro de 1988.
O processo que motivou a discussão no STF trata da disputa pela posse da Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, em Santa Catarina. No local vivem indígenas Xokleng, Guarani e Kaingang, e o governo catarinense entrou com pedido de reintegração de posse. Hoje existem mais de 300 processos de demarcação de terras indígenas abertos em todo o território nacional.
Voto de Mendonça
Em voto-vista, André Mendonça apontou que os constituintes de 1988 estabeleceram um marco temporal para a demarcação de terras indígenas para pacificar conflitos.
"Não se trata de negar as atrocidades cometidas, mas antes de compreender que o olhar do passado deve ter como perspectiva a possibilidade de uma construção do presente e do futuro. Entendo eu que essa solução é encontrada a partir da leitura do texto, e a intenção do constituinte originário foi trazer uma força estabilizadora a partir da sua promulgação", disse Mendonça.
O ministro opinou que o Supremo não pode, 14 anos depois, alterar o entendimento fixado no julgamento do caso Raposa Serra do Sol (Pet 3.388). Na ocasião, a corte entendeu que as populações indígenas tinham direito às terras que ocupavam na data da promulgação da Constituição, 5 de outubro de 1988, ou seja, o marco temporal que agora está em discussão.
Caso o STF mudasse de entendimento, avaliou o ministro, permitiria discussões que remeteriam a "tempos imemoriais", gerando insegurança jurídica.
Além disso, Mendonça destacou que os laudos antropológicos são fundamentais para o reconhecimento da tradicionalidade das terras, mas ressaltou que também é preciso ouvir especialistas de outras áreas, como geógrafos, sociólogos e economistas.
Se for preciso desocupar uma terra ocupada por indígenas, o procedimento deve ser feito com aviso prévio e sem o uso de força por parte de agentes estatais, ressaltou o magistrado.
Idas e vindas
Relator do recurso extraordinário com repercussão geral, Fachin votou em 2019 contra o marco temporal. De acordo com o ministro, os direitos originários dos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam não dependem da existência de uma delimitação.
Nunes Marques abriu a divergência em 2021 argumentando que a proteção constitucional das terras indígenas depende do marco temporal. Conforme o magistrado, os povos originários devem comprovar que ocupavam a área em 5 de outubro de 1988 ou que tenham sido expulsos dela. Sem essa limitação, há insegurança jurídica, disse o ministro.
Em voto-vista apresentado em junho de 2023, Alexandre opinou que a fixação de um marco temporal viola direitos fundamentais dos indígenas.
O ministro ressaltou que o Estado deve indenizar quem, de boa-fé, comprou terra indígena. Afinal, nessa situação a culpa é do poder público, que não arcou com o dever de proteger as áreas pertencentes aos povos originários.
Alexandre propôs a seguinte tese de repercussão geral:
Os direitos territoriais indígenas consistem em direito fundamental dos povos indígenas e se concretizam no direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam, sob os seguintes pressupostos:
I — a demarcação consiste em procedimento declaratório do direito originário territorial à posse das terras ocupadas tradicionalmente por comunidade indígena;
II — a posse tradicional indígena é distinta da posse civil, consistindo na ocupação das terras habitadas em caráter permanente pelos índios, das utilizadas para suas atividades produtivas, das imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e das necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições, nos termos do §1º do artigo 231 do texto constitucional;
III — a proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal em 05 de outubro de 1988, ou da configuração do remitente esbulho como conflito físico ou controvérsia judicial persistente a data da promulgação da Constituição.
IV — Inexistindo a presença do marco temporal (CF/88) ou de remitente esbulho, como conflito físico ou controvérsia judicial persistente a data da promulgação da Constituição, são válidos e eficazes, produzindo todos os seus efeitos os atos e negócios jurídicos perfeitos e a coisa julgada, que tem a ver por objeto a posse, o domínio ou a ocupação de boa-fé das terras de ocupação tradicional indígena, ou exploração das riquezas, dos solos, rios e lagos nela existentes. Assistindo ao particular direito a indenização prévia em face da União, em dinheiro ou em títulos da dívida agrária, tanto em relação a terra nua quanto as benfeitorias necessárias e úteis realizadas.
V — Na hipótese prevista no item anterior, sendo contrário ao interesse público, a desconstituição da situação consolidada e buscando a paz social, a União poderá realizar a compensação as comunidades indígenas, concedendo-lhes terras equivalentes as tradicionalmente ocupadas, desde que haja expressa concordância.
VI — o laudo antropológico realizado nos termos do Decreto 1.776/1996 é elemento fundamental para a demonstração da tradicionalidade da ocupação de comunidade indígena determinada, de acordo com seus usos, costumes e tradições;
VII — o redimensionamento de terra indígena não é vedado em caso de descumprimento dos elementos contidos no artigo 231 da Constituição da República, por meio de procedimento demarcatório nos termos nas normas de regência;
VIII — as terras de ocupação tradicional indígena são de posse permanente da comunidade, cabendo aos índios o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e lagos nelas existentes;
IX — as terras de ocupação tradicional indígena, na qualidade de terras públicas, são inalienáveis, indisponíveis e os direitos sobre elas imprescritíveis;
X — há compatibilidade entre a ocupação tradicional das terras indígenas e a tutela constitucional ao meio ambiente".
RE 1.017.365
Fonte: ConJur