Estamos em via de comemorar os 35 anos da Constituição da República Federativa do Brasil, a maior e melhor carta constitucional dos últimos tempos para a humanidade. Nela estão garantidos direitos fundamentais, sociais, de propriedade, de pertencimento e de cidadania. São derivações inexoráveis da dignidade da pessoa humana, das liberdades. O texto tem palavras que possuem mais valor que sentido, assim diria o poeta francês Paul Valéry.
Ocorre que, neste país de dimensões continentais, além de pessoas sem registro de nascimento e que, portanto, não existem para a sociedade, temos inúmeras terras ocupadas sem título de propriedade, mas sem origem criminosa ou por grilagem. São milhares de trabalhadores rurais ou ocupantes urbanos vivendo em terras devolutas que, muitas vezes, nem sequer estão catalogadas pelo poder público.
Dados de 2019 do Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional apontam que aproximadamente 50% dos imóveis no Brasil têm algum tipo de irregularidade. A mais comum é a falta de escritura, o que torna vulneráveis 60 milhões de domicílios urbanos no país.
Descobrimos que o município de Itagimirim, na Bahia, só tem uma matrícula imobiliária. Todos os moradores desse município não têm título regular de propriedade e o respectivo registro. Em Salvador, uma das capitais de maior relevância no país, 80% dos imóveis urbanos não estão regularizados. Isso gera um definhamento coletivo, além de exclusão social.
Em geral, nas áreas de irregularidade fundiária, os serviços básicos não chegam à população, e há completa insegurança jurídica. Não se constroem edificações adequadamente, o comércio não se desenvolve. Os municípios ou a União deixam de arrecadar impostos como IPTU, ITBI e IR. A transmissão da propriedade fica obstada, restando impedidos ou dificultados os atos de compra e venda, doação e oferecimento do imóvel em garantia para empréstimo bancário ou financeiro. A comunidade permanece estática, e as terras invisíveis aos olhos do Estado.
Num grande esforço conjunto com governos estaduais e municipais, por meio da Lei Federal 13. 465/2017, o Conselho Nacional de Justiça lançou a política pública interinstitucional Solo Seguro, buscando agilizar a regularização fundiária urbana e rural no território da Amazônia Legal. Além de concretizar a emissão dos títulos de propriedade em nome dos ocupantes legítimos em área urbana e a identificação, delimitação e titulação nas áreas rurais, garantindo o direito à terra aos agricultores familiares e comunidades tradicionais, todos esses títulos serão registrados pelos cartórios de registro de imóveis das circunscrições respectivas.
A ação propulsionará o desenvolvimento da região e a inclusão social dos que têm o direito à regularização, inibindo práticas predatórias como garimpo, tráfico de entorpecentes, grilagem de terras e o próprio desmatamento. Um movimento de união de autoridades e entidades a promover o Brasil, na área em que mais precisamos de proteção, a Amazônia.
Todo o esforço vem ao encontro de importante relatório apresentado pela Transparência Internacional em dezembro de 2021, que contém recomendação expressa para arrecadação de terras devolutas e destinação de terras não designadas, por meio de processos participativos e transparentes.
No mesmo sentido, o documento ‘Um ponto de inflexão para as pessoas e o planeta’, entregue à ONU neste ano, propôs um pacto para alinhamento dos compromissos existentes a desenvolver economia inclusiva com proteção das florestas, garantindo assim, nas palavras da ambientalista Ilona Szabó, a sobrevivência das próximas gerações e oportunidades para a atual, pois não existe um Planeta B.
No pulmão da Terra, a Amazônia, o objetivo do projeto Solo Seguro é que todo brasileiro se torne verdadeiramente cidadão e protegido.
Fonte: CNJ, publicado originalmente no jornal O Globo