Muito longe de fechar a questão, o presente estudo teve o objetivo de colocar as questões para franco debate, diante da importância do assunto e da necessidade de se pensar o inventário com horizontes adequados a sua complexidade e aos conflitos que lhe são inerentes.
A nomeação do inventariante é um tema que possui muitas nuances.
Quando a sucessão contempla algum ponto conflituoso entre os interessados, quase sempre a nomeação do inventariante acaba se tornando um ponto nervoso do inventário.
Em tal situação, a designação para a inventariança gera disputas entre as partes que compõem o processo sucessório, situação que, ainda que de forma involuntária, aumenta a carga de litigiosidade.
Não é raro que a disputa sobre a designação do inventariante, nomeação que deve ocorrer no início do inventário sucessório, contamine toda a sequência de atos do procedimento.
Até porque a função do inventariante "é de extrema importância, pois, lamentavelmente, por razões diversas, não se pode fechar os olhos para a realidade, em que se constatam processos de inventário e partilha que duram indefinidamente"[1].
A litigiosidade advinda da querela sobre a designação se projeta para adiante e o inventário passa a ter "pendengas conflituosas" sobre pontos variados, debates esses, não raras vezes, pouco produtivos, prejudicando o desfecho do processo sucessório.
A legislação atual não se deu conta do aumento de conflituosidade na sucessão hereditária, pois adota modelo bastante ultrapassado, atrelado às relações familiares do século XX, em que o casamento indissolúvel e a família constituída sobre o seu abrigo eram as peças basilares.
Assim, a disputa pela inventariança não estava na pauta dos conflitos ordinários do inventário, pois era resolvido entre poucos personagens, todos advindos, em praticamente todos os casos, de único clã familiar, legitimado pelo casamento indissolúvel.[2]
Com tal quadro legal deficiente e desatento à realidade social - ressalvadas as previsões vinculadas ao arrolamento sumário e ao inventário extrajudicial, em que o tratamento normativo indica que a nomeação se opera por consenso (art. 660, I, do CPC e art. 11 da Resolução nº 35/2007 do CNJ) -, os diplomas legais em vigor não trabalham com a participação das partes na designação para a inventariança.[3]
A situação é tão insegura que, se for feita uma interpretação puramente literal do art. 617 do CPC, pode se chegar à conclusão (equivocada) de que as partes interessadas não podem eleger consensualmente o inventariante.
Os arts. 3º, § 3º, e 6º, do CPC de 2015, trazem importantes diretrizes para que os sujeitos do processo, incluindo o juiz em tal espectro, participem do processo e evitem a litigiosidade em tudo que for possível.
Quando o art. 3º, § 3º, faz alusão à necessidade de estimulo à autocomposição, tal forma de envolvimento no processo não se volta tão somente à idéia de se buscar um "acordo final" entre as partes para encerrar o processo, mas também, e especialmente, de que se instale ambiência processual não conflituosa, situação que encarna a pacificação, o quanto possível, sobre pontos relevantes da relação processual, a fim de que este possa ter resultado final eficiente e em tempo adequado (art. 4º do CPC).
Traçadas as considerações prévias, o estudo demonstra que a designação para a inventariança é um ponto relevante e sensível do inventário sucessório, sendo necessário sejam recebidas todas as luzes dos arts. 3º, § 3º, e 6º do CPC sobre a questão.
O estudo ainda pretende demonstrar que a designação plúrima de inventariantes é medida que, se adotada, poderá diminuir a conflituosidade no inventário sucessório e, de outro turno, permite conferir administração mais eficiente em favor do espólio, até mesmo diante da possibilidade de divisão de tarefas.
A interpretação literal do art. 617 do CPC, em especial o seu caput, pode levar a equivocada afirmação de que a figura central na tarefa de designação da inventariança é o juiz do inventário.
A exegese puramente gramatical também conduz à (falsa) ideia de que o dispositivo dita ordem obrigatória na designação do inventariante, sequência esta que não poderá ser alterada em situação alguma, muito menos pela vontade das partes.
No que se refere ao primeiro ponto, é de se observar que o art. 617 do CPC possui caráter residual, isto é, somente será aplicado se as partes - de forma consensual - não tiverem, elas próprias, escolhido o inventariante.
Em apertada síntese, pode se dizer que o art. 617 somente terá espaço para ser aplicado como "rol de referência"[4] pelo juízo sucessório se as partes não apresentarem convenção sobre o tema.
Ao se desnudar a situação em voga, percebe-se, sem esforço, que a nomeação do inventariante pelas partes é um exemplo de negócio jurídico processual, cuja modulação básica está inserida no art. 190 do CPC.
Portanto, o juízo sucessório somente deverá interferir - mediante decisão judicial - acerca da nomeação do inventariante se as partes não tiverem conseguido, por ato consensual, escolher o personagem que irá assumir a inventariança[5], tal como ocorre no arrolamento sumário (art. 660, I, do CPC) e no inventário extrajudicial (art. 11 da Resolução nº 35/2007 do CNJ).
De outra banda, mesmo quando o juiz for chamado para designar o inventariante, é importante que as partes sejam previamente ouvidas, indicando os nomes de sua predileção e, se for o caso, também os de repulsa, sempre o fazendo de forma justificada.
As manifestações dos interessados podem apontar situações que não autorizam e/ou desaconselham a designação de determinadas pessoas, situação que demonstra a importância do contraditório, como forma de participação para a tomada de decisão relevante no processo.[6]
As balizas acima trazidas demonstram a importância da participação das partes na eleição do inventariante, seja para que elas próprias o façam de forma consensual (mediante negócio jurídico processual), seja para que tragam elementos para que a designação judicial se opere de forma segura, eficiente e menos conflituosa.
A designação do inventariante pelo juízo sucessório está muito além da aplicação robótica do rol do art. 617 do CPC, uma vez que deverá ter como mira os interesses do espólio, fazendo escolhas que envolvem a capacidade de gestão e que evitem (ou, ao menos diminuam) a animosidade entre as partes.7
Justamente por tais motivos que se defende que o art. 617 do CPC contempla um "rol de referência", em que o legislador listou determinados personagens, enfileirados em ordem, a fim de auxiliar o juízo sucessório na designação, caso seja necessária a intervenção judicial.
Confira aqui a íntegra do artigo.
Rodrigo Reis Mazzei é doutor (FADISP) e mestre (PUC-SP), com pós-doutoramento (UFES). Professor da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e da FUCAPE Business School. Líder do Núcleo de Estudos em Processo e Tratamento de Conflitos (NEAPI-UFES). Membro fundador e diretor regional do IBDCONT-ES. Advogado, consultor jurídico e arbitro.
Pablo Stolze Gagliano é juiz de Direito. Membro da Academia Brasileira de Direito Civil, do Instituto Brasileiro de Direito Contratual e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia. Professor da Universidade Federal da Bahia. Mestre em Direito Civil pela PUC-SP. Autor e coautor de diversas obras jurídicas, incluindo o Manual de Direito Civil, o Novo Curso de Direito Civil, O Divórcio na Atualidade, O Contrato de Doação e o Manual da Sentença Cível (Ed. Saraiva).
Fonte: Migalhas