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16/05/2023

Jurisprudência mineira - Discriminatória de terra devoluta. Registro desde 1926. Confirmada sentença contra o Estado

ADMINISTRATIVO - REEXAME NECESSÁRIO - APELAÇÃO, AÇÃO DISCRIMINATÓRIA DE TERRA DEVOLUTA ESTADUAL - IMÓVEL REGISTRADO EM NOME DE PARTICULAR DESDE 1926 - AQUISIÇÕES POSTERIORES MEDIANTE ESCRITURA PÚBLICA DE CESSÃO DE DIREITOS HEREDITÁRIOS - DEVOLUTIVIDADE DA TERRA - ÔNUS PROBATÓRIO DO ESTADO - AUSÊNCIA - SENTENÇA CONFIRMADA

- Em ação discriminatória, comprovado que a área discriminada encontra-se registrada em nome de particular desde 1926, e as aquisições posteriores realizadas mediante escritura pública de cessão de direitos hereditários, e considerando-se ainda que a condição de terra devoluta não decorre simplesmente do fato de haver omissão do registro imobiliário em relação às transcrições anteriores do imóvel, o ônus de provar a condição de devolutividade da terra, objeto de ação, é do Estado de Minas Gerais, conforme jurisprudência do STJ.

 - Hipótese em que o Estado de Minas Gerais não se incumbiu do ônus de demonstrar de forma inequívoca a sua titularidade sobre o imóvel. Em momento anterior a 1926, data em que foi reconhecido o domínio de particular, o pedido deve ser julgado improcedente, e, portanto, a sentença deve ser mantida.

Apelação cível/Remessa necessária nº 1.0642.06.000759-7/002 - Comarca de São Romão - Apelante: Estado de Minas Gerais - Apelados: Astrit Hubner Bruxel, Décio Bruxel - Relator: Des. Roberto Apolinário de Castro

ACÓRDÃO

Vistos, etc., acorda, em Turma, a 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos, em negar provimento ao recurso, e, em reexame necessário, confirmar a sentença.

Belo Horizonte, 25 de abril de 2023. - Roberto Apolinário de Castro - Relator.

VOTO

DES. ROBERTO APOLINÁRIO DE CASTRO - Conheço do recurso e do reexame necessário.

 

1 - A espécie em julgamento.

 Cuida-se de ação discriminatória de terra devoluta estadual ajuizada pelo Estado de Minas Gerais contra Décio Bruxel e Astrit Hubner Bruxel, na qual objetiva seja declarada toda a gleba pública devoluta apurada, desconstituindo-se os títulos atacados, e os que porventura surgirem, imitindo o Estado na sua posse.

Alega, em síntese, ausência de desmembramento da gleba objeto do patrimônio público, uma vez que a gleba discriminada na Fazenda ``Saco da Tapera'', integrante de imensa área devoluta, originou-se de vários fracionamentos, cessões e transferências de posses de terras devolutas, levadas a efeito pelos senhores posseiros, todas negociadas entre particulares e posseiros, sem a participação do Ente Público proprietário, conforme a cadeia dominial apresentada.

Afirma que não houve a concessão de sesmaria na localidade, tendo a área sido adquirida por tomada de posse, bem como que não há prova da forma de aquisição da suposta área devoluta, uma vez que a cadeia dominial não possui origem legítima, nem título original de desmembramento do Patrimônio Público Estadual para o particular, em observação ao disposto no art. 3º da Lei nº 610/1850 e à Lei Estadual nº 11.020/93.

Aduz que houve quebra do princípio da continuidade do registro imobiliário, razão pela qual sustenta que todas as transações envolvendo a gleba discriminada, levadas a efeito pelos posseiros e ocupantes, o foram a non domino e, portanto, sem o condão de descaracterizar a devolutividade e consequente domínio sobre tais glebas por parte do Estado.

Em sede de contestação, os réus arguem que adquiriram a gleba de terra na fazenda ``Saco da Tapera'' através de Escritura Pública de Cessão de Herança, na qual figuram como cedentes Apolo Empreendimentos Ltda. e IAP - Empreendimentos Imobiliários Ltda.

Asseveram que exercem posse sobre a gleba com área de 1.337,17ha há mais de 20 anos, somada a posse de seus antecessores, exercida sempre de forma mansa, de boa fé e pacífica, sem qualquer interrupção ou contestação sobre o referido imóvel.

 Afirma que nunca houve indícios de terras devolutas na região e que o imóvel foi adquirido através de divisão judicial, homologada por sentença, devidamente registrada, o que evidencia a origem do imóvel, a sua forma de aquisição, bem como a sua continuidade.

Laudo pericial nos e-doc. 73/74, f. 224-272.

O Juiz a quo proferiu decisão na qual julgou improcedente a ação discriminatória proposta pelo Estado de Minas Gerais (e-doc 108).

Inconformada, a parte autora alega que, na forma da Lei Estadual nº 11.020/93, detinha legitimidade para promover a legitimação de terras na sua área de abrangência e assim o fez, no caso dos autos, respeitando todas as regras pertinentes, tendo expedido o título juridicamente consolidado, a legitimação e o consequente registro do imóvel objeto da ação, sendo atendidos integralmente os requisitos legais, sem que houvesse qualquer impugnação à época do fato.

Sustenta que não existe prova nos autos que demonstre a existência de oposição à legalidade da propriedade estatal.

As contrarrazões foram apresentadas (e-doc.117).

2 - Mérito.

 O objeto da causa abrange terras rurais, discutidas em ação de usucapião em curso, suspensa (e-doc.32), em razão da oposição do Estado de Minas Gerais, que alegou tratar-se de terras devolutas.

Na espécie em exame, examinei os autos e pude constatar que as alegações feitas pelo recorrente não foram documentadas de forma adequada.

A Lei nº 6.383/1976 dispõe acerca da ação discriminatória, instrumento pelo qual se busca definir as linhas demarcatórias do domínio público e privado, separando-se as terras devolutas das terras incorporadas ao domínio do particular.

E, nesse particular, entendo que deve-se reconhecer a existência de terra devoluta, quando o particular não provar que adquiriu o domínio mediante título legítimo, sendo certo que a jurisprudência consolidada no STJ é no sentido de que não se presume que, nesta situação, a terra seja devoluta.

Em julgamento, o referido colegiado decidiu que:

``A inexistência de registro imobiliário do bem objeto de ação de usucapião não induz presunção de que o imóvel seja público (terras devolutas), cabendo ao Estado provar a titularidade do terreno como óbice ao reconhecimento da prescrição aquisitiva. Precedentes'' (AgInt no AREsp nº 936.508, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe de 20/3/2018).

E, no âmbito do EREsp nº 617.428, a Corte Especial do citado Tribunal definiu que:

``Pode-se inferir que a sistemática da discriminação de terras no Brasil, seja no âmbito administrativo, seja em sede judicial, deve obedecer ao previsto no art. 4º da Lei nº 6.383/76, de maneira que os ocupantes interessados devem trazer ao processo a prova de sua posse.''

Diante da origem do instituto das terras devolutas e da sistemática estabelecida para a discriminação das terras, conclui-se que cabe ao Estado o ônus de comprovar a ausência de domínio particular, de modo que a prova da posse, seja por se tratar de prova negativa, de difícil ou impossível produção pelo Poder Público, seja por obediência aos preceitos da Lei nº 6.383/76.

Dentro dessa perspectiva, não basta ao Estado de Minas Gerais alegar que a terra seja devoluta, mas é necessário que demonstre a ausência de prática de ato de domínio particular.

Na espécie em exame, o Estado de Minas Gerais alegou quebra do princípio da continuidade da cadeia dominial, vez que, constatou-se que não houve trespasse do imóvel do patrimônio público para o particular, sendo, portanto, terra devoluta.

Contudo, extrai-se dos documentos acostados aos autos e da prova pericial que a área objeto da lide tem cadeia dominial registrada desde 1926, quando foi recebida por Felipe Nery da Rocha, em divisão judicial homologada por sentença de 28/6/1926, inexistindo registros anteriores.

Conforme se observa da perícia (e-doc. 73/74), ali foi descrita toda a cadeia dominial, desde 1926, sendo que o apelado, Décio Bruxel, adquiriu o imóvel em 2001, por meio de escritura de cessão de herança de Apolo Empreendimentos Ltda. e IAP Empreendimentos Imobiliários Ltda., que, por sua vez, adquiriram os direitos de herança dos cessionários de Felipe Nery da Rocha.

Na própria exordial, à f. 4 do e-doc. 1, o autor/apelante também descreve a mesma cadeia de posses.

Logo, restou reconhecido judicialmente e incontroverso nos autos, o domínio particular sobre o imóvel a partir de 1926.

Quanto à ausência de documento que demonstre a forma de aquisição do imóvel por Felipe Néri da Rocha, tenho que, embora não haja registro imobiliário do imóvel sub judice, em momento anterior ao ano de 1926, ou qualquer documento que comprove sua posse, isso não tem o condão, por si só, de constituí-lo como terra devoluta, cabendo ao Estado de Minas Gerais comprovar a ausência de domínio particular no período, conforme jurisprudência mencionada.
Ressalto ainda que, assim como bem destacado na sentença, a perícia informou a inexistência de cadeia dominial (anterior a 1850) nos cartórios da região, não certifica que o imóvel seja constituído de terras devolutas, e que, em pesquisa ao Arquivo Público Mineiro, pode-se confirmar a existência das Sesmarias na região (f. 17 e-doc.73).

Além disso, as provas testemunhais se deram a favor do apelado, reconhecendo a posse antiga de particulares no local (e-doc. 95), a qual somada à comprovada posse mansa e pacífica do ora apelado, totalizam quase cem anos.

Ora, por óbvio, em tais casos, em que o desmembramento de área se remonta a data muito distante, a quebra dominial, muitas vezes, ocorre em razão de que os antigos pactos negociais eram comumente realizados sem registros públicos. Todavia, daí não se pode presumir que eles não tenham ocorrido somente em virtude dessa falta registral.

Assim, comprovado que a área discriminada encontra-se na posse de particulares, em razão de escritura pública particular, e considerando-se que a condição de terra devoluta não decorre simplesmente do fato de haver omissão do registro imobiliário em relação às transcrições anteriores do imóvel, uma vez que o ônus de provar a condição de devolutividade da terra objeto de ação discriminatória é do Estado de Minas Gerais, o pedido deve ser julgado improcedente.

Dessa forma, entendo que a sentença deve ser confirmada, para julgar improcedente a ação do Estado, por ausência de provas suficientes a comprovar sua titularidade sobre o bem imóvel.

 

3 – Conclusão 

Fundado nessas razões, nego provimento ao recurso, e, em reexame necessário, confirmo a sentença.

Acresça-se 2% sobre o valor dos honorários devidos, a título de honorários recursais, nos termos do art. 85, § 11, CPC.

Votaram de acordo com o Relator os Desembargadores Geraldo Augusto e Armando Freire.

Súmula - NEGARAM PROVIMENTO, E, EM REEXAME NECESSÁRIO, CONFIRMARAM A SENTENÇA.

 

Fonte: DJe 

 


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