Jamir e Chianinha, Antônio Bento e Bianca, Tuila e Lucy. Os três casais, integrantes do povo indígena Maxakali, tinham em comum o fato de manterem relacionamentos estáveis há anos entre os parceiros. Também em comum, havia o fato de que dependiam de documentação para legalizar a união, mas a falta de recursos e a distância que separa as aldeias onde vivem das cidades mais próximas sempre foi um obstáculo. Agora, este obstáculo foi superado.
No último fim de semana (29 e 30/4), o Programa Cidadania, Democracia e Justiça ao Povo Maxakali, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, foi até as aldeias de Água Boa e Pradinho, localizadas nos municípios de Santa Helena de Minas e Bertópolis, no Vale do Mucuri, e legalizou a situação de 73 casais com o reconhecimento da união estável, garantindo, assim, cidadania e acesso a direitos básicos ao povo indígena.
A oficialização se deu por meio de um mutirão promovido pelo TJMG com apoio de parceiros e envolveu a atuação de 17 magistradas, sendo quatro desembargadoras e 13 juízas.
O Programa Cidadania, Democracia e Justiça ao Povo Maxakali, idealizado pelo juiz Matheus Moura Matias e institucionalizado perante a 3ª Vice-Presidência do TJMG, está em desenvolvimento há três anos na comarca de Águas Formosas, por meio do Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc) local.
Os Cejuscs são geridos pela 3ª Vice-Presidência do TJMG, presidida pela desembargadora Ana Paula Nannetti Caixeta. O programa é realizado em parceria com a Defensoria Pública, Ministério Público Estadual, o Ministério Público Federal, a Defensoria Pública da União, o Tribunal Regional Eleitoral, a Fundação Nacional do Índio (Funai), a Polícia Civil e a Polícia Militar.
Mãos atadas
Parte de um dos mais antigos povos indígenas do país, os casais Maxakali se viam de mãos atadas quando dependiam da comprovação da união ao procurar direitos, como benefícios que são garantidos pela Previdência Social. O problema foi identificado por meio de escuta ativa em reuniões anteriormente realizadas para que fossem classificados os pontos a serem solucionados. Este é o segundo mutirão promovido em pouco menos de nove meses.
Dessa vez, a ação fez parte da etapa prática do curso de formação para magistrados em Direitos Indígenas, promovido pelo TJMG por meio da Escola Judicial Desembargador Edésio Fernandes (Ejef).
“As magistradas participaram de um curso teórico e vieram para a parte prática. O objetivo era realizar – e realizamos – pouco menos de 80 audiências de Direito de Família pelo Cejusc pré-processual, para regularizar a união estável de famílias que não estavam tendo reconhecimento pelo INSS quando uma das partes falecia”, diz o juiz Matheus Moura Matias.
Justiça itinerante
A falta de reconhecimento de uma união estável pode ser justificada pela burocracia e pela distância entre as aldeias e as cidades, o que dificulta o acesso. O cenário mudou com a Justiça itinerante, forma de levar serviços prestados pelo Cejusc aos lugares menos acessíveis. Assim, 73 casais puderam realizar a regularização – 24 deles de forma presencial e 49 testemunhados por lideranças das aldeias e confirmados pela Funai, sendo fundamentada conforme prova documental juntada aos autos.
“Estamos dando acesso à Justiça para essa população tão vulnerável. A Justiça Itinerante chega justamente onde quem não tem acesso não pode chegar. Acredito que vamos consegur expandir essa atuação para outros povos originários”, diz a coordenadora adjunta do Cejusc Povos e Comunidades Tradicionais do TJMG, desembargadora Shirley Fenzi Bertão.
A magistrada, que vivenciou a experiência de forma presencial pela segunda vez, afirma que é importante uma preparação de magistrados e profissionais do sistema de Justiça para lidar com essa população. “Eles têm uma cultura e temos que ter um respeito pelas tradições”, reforça.
Escuta
A desembargadora Maria Luiza Santana Assunção, também parte do grupo, ressalta a importância do programa para a cidadania das populações mais vulneráveis. “Há muito que eu estudo e queria estar nesse experimento da Justiça itinerante junto aos povos originários. A gente escuta falar mas, presencialmente, a emoção é outra, o sentir é outro, o olhar é outro. Fiquei bem impressionada. É ir onde eles não podem chegar”, frisa.
O juiz auxiliar da 3ª Vice-Presidência do TJMG, Marcus Vinicius Mendes do Valle, engajado com o programa e presente durante os dois dias de atividade, elogia a ação. “É uma experiência maravilhosa verificar a verdade que permeia a vida dessas pessoas, como são autênticas, como preservam sua cultura, seus hábitos. Recebemos uma acolhida muito generosa e que nos faz muito felizes por ter essa oportunidade de convivência com eles, além do rico aprendizado. Chegamos com ouvidos mais abertos, com a mente leve, sempre na expectativa de ouvir qual a necessidade deles e não nossa própria necessidade”, afirma.
Reconhecimento
O povo Maxakali também reconhece a importância do programa. Tuila e Lucy Maxakali estão juntos há mais de uma década. Onze filhos são frutos da relação. No último sábado, eles puderam oficializar a união. “Ficou bom para nós, porque casamos primeiro sem documento, e é necessário ter esse documento. Essa ação e a presença das juízas junto às lideranças é muito importante”, diz Tuila Maxakali, liderança indígena.
O líder João Mineiro Maxakali também frisa a importância da realização de audiências para reconhecimento de união estável e afirma que, para o povo Maxakali, a aproximação com o Poder Judiciário é necessária. “É muito importante para nós. A Justiça está ajudando bastante”, diz.
O maior símbolo do reconhecimento dos Maxacalis à importância da iniciativa foi a homenagem feita ao juiz Matheus Moura Matias Miranda. A partir de ritual realizado pela comunidade, o magistrado foi considerado “parte” do povo Maxakali. “Sempre falo que a gente aprende mais do que dá. Aprendi com uma cultura milenar. Eles estão aqui há séculos e o convívio nos faz refletir sobre nossa própria vida. Então, minha alegria de ter essa amizade e confiança com o povo Maxakali é pelo tanto que eu cresço e vou continuar crescendo”, afirma.
Respeito
Para o indigenista da coordenação regional da Fundação Nacional dos Povos Indígenas de Governador Valadares – Minas Gerais e Espírito Santo (Funai – MG/ES), Douglas Krenak, a iniciativa realizada nos últimos dias 29 e 30/4 tem o significado de esperança, para que seja possível trilhar um caminho com uma Justiça mais próxima da população indígena.
“É uma Justiça mais perto da nossa realidade. A gente começa a entender que é possível, sim, estar aqui com juízes, desembargadores, com outras instituições de Justiça. Então a gente começa a ver que é possível, porque é urgente essa aproximação junto aos povos indígenas, que são povos que estavam aqui há muito tempo e tem uma contribuição gigantesca para toda a humanidade”, lembra.
Força feminina
Durante os dois dias, a atividade contou com o envolvimento de 17 mulheres, juízas e desembargadoras do TJMG, que se engajaram no programa. Vindas de diversas partes do Estado, em especial Belo Horizonte, as magistradas estiveram presencialmente na região do Vale do Mucuri para a realização de audiências.
Antes disso, ainda no sábado pela manhã, as juízas realizaram um breve mutirão para auxílio em processos da Comarca de Águas Formosas. “Nós conseguimos ajudar em vários processos criminais e cíveis. O pouco que fizemos, foi um acolhimento. E nós pudemos minimizar um pouco a situação até que se regularize a questão da titularidade naquela unidade”, disse a juíza titular da 1º Vara Cível da Comarca de Uberaba, Solange de Borba Reimberg.
A juíza Lívia Lúcia Oliveira Borba, da Comarca de Belo Horizonte, também considerou a importância do envolvimento no programa. “Somos magistradas que viemos para fazer o reconhecimento da união estável e ouvir as lideranças naquelas demandas que elas elegem como prioritárias. E eu considero a beleza desse encontro, um movimento coletivo. O fato de 17 magistradas começarem a fazer um curso sobre Direitos Indígenas, um curso que teve um conteúdo muito denso e importante, e depois um seminário, onde lideranças indígenas foram ao TJMG para falar para nós, e depois vir aqui, significa realmente um movimento completo, de conhecimento e de prática, de teoria e de prática”, avalia.
A força feminina é também encontrada no Povo Maxakali, que conta com várias lideranças mulheres. “Essa é uma reflexão que precisamos fazer e é muito significativa, porque boa parte das lideranças Maxacalis são cacicas, são mulheres. E coincidiu que as magistradas eram todas mulheres e as lideranças também são mulheres, o que pode nos trazer uma reflexão importante”, diz o juiz Matheus Moura Matias Miranda.
Ações
Além da ação realizada pelo TJMG, em parceria com o Ministério Público e Defensoria Pública do Estado, a atividade do fim de semana também contou com rodas de conversa e eleições simuladas promovidas pelo TRE.
Para a simulação, foram criados três partidos fictícios a partir do universo indígena, com animais conhecidos por eles. Já os candidatos são representados por ilustrações feitas pelas comunidades e com escrita em português e na língua indígena Maxakali. Na comunidade indígena Maxakali, localizada em uma reserva de 5 mil hectares, vivem cerca de mil eleitores. O projeto visa garantir o acesso à votação.
OCDE
O projeto Cidadania, Democracia e Justiça ao Povo Maxakali, em desenvolvimento há três anos na comarca de Águas Formosas, por meio do Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc) local, é um dos 10 selecionados pelo Observatório da Inovação no Setor Público (Observatory of Public Sector Innovation), da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
A iniciativa, única representante do Brasil, foi eleita como case de inovação na categoria “Novos métodos para preservar identidades e robustecer a equidade”, juntamente com projetos da Singapura e de Bolonha (Itália). Foram analisadas, desde a primeira etapa até a escolha final, 1.084 propostas de 94 países. A seleção incluiu entrevista e defesa do projeto diante de avaliadores da OCDE e do Centro de Inovação Pública dos Emirados Árabes Unidos Mohammed Bin Rashid.
Presenças
Pelo TJMG estiveram presentes a coordenadora adjunta do Cejusc Povos e Comunidades Tradicionais do TJMG, desembargadora Shirley Fenzi Bertão; a superintendente da Coordenadoria da Infância e da Juventude (Coinj), desembargadora Valéria Rodrigues Queiroz; as desembargadoras Maria Luiza Santana Assunção e Alice de Souza Birchal; o juiz da comarca de Camanducaia (e que atuou em Águas Formosa, onde participou do início do projeto), Matheus Moura Matias Miranda; o juiz auxiliar da 3ª Vice-Presidência da Corte mineira, Marcus Vinicius Mendes do Valle; e as juízas Aline Gomes dos Santos Silva, Cláudia Helena Batista, Cláudia Regina Macegosso, Daniela Cunha Pereira, Letícia Machado Vilhena Dias, Lívia Lúcia Oliveira Borba, Maria Cristina de Souza Trúlio, Mariana de Lima Andrade, Rafaella Rodrigues Moreira Lima, Raquel Discacciati Bello, Renata Nascimento Borges, Solange de Borba Reimberg e Soraya Brasileiro Teixeira.
Fonte: CNJ, com informações do TJMG