No dia 28 de junho de 2022, entrou em vigor a lei 14.382, que consolidou e detalhou o Sistema Eletrônico de Registros Públicos ("Lei do SERP"), declaradamente voltada aos objetivos de modernizar e simplificar os procedimentos registrais relativos aos atos e negócios jurídicos previstos na lei 6.015/73, bem como as incorporações imobiliárias disciplinadas na lei 4.591/64. Em meio a várias novidades e alterações produzidas nas duas normas citadas, dedica-se o presente artigo a tratar sobre o controverso regime condominial especial fundado na alínea "i" e nos §§1°-A e 15 do art. 32 da Lei de Condomínios e Incorporações Imobiliárias[1].
Todavia, antes de penetrar na matéria proposta, cumpre trazer a lume um famoso enigma de lógica, de autoria desconhecida (ou, ao menos, de muito difícil identificação), que servirá de fio condutor ao raciocínio a ser desenvolvido neste trabalho. Pois bem. Se 6 homens levam 6 dias para cavar 6 buracos, quanto tempo apenas 1 deles precisará para fazer meio buraco? As pessoas surpreendidas pela questão, em geral, recorrem, instintivamente, a dois expedientes para tentar chegar à resposta correta: alguns imaginam que possa existir algo de errado na construção linguística da pergunta, enquanto outros se apegam a cálculos aritméticos pelo sistema de regra de três. Entretanto, a resposta é muito mais simples, direta, prescinde de qualquer conta matemática e está bem à frente dos olhos: o homem executaria a tarefa em poucos segundos, uma vez que não existe "meio buraco". Qualquer cavidade realizada, mediante um sutil toque da pá contra a superfície de um solo, já constitui um buraco. Embora aspectos como profundidade, largura e formato possam variar, em toda fissura traçada sobre o chão está presente uma unidade completa de buraco.
Com o advento da Lei do SERP, os §§1°-A e 15 do art. 32 da lei 4.591/64 passaram a dispor que o registro do memorial de incorporação sujeita as frações de terreno e as respectivas acessões a regime condominial especial, mediante ato registral único. À vista desse incremento legislativo, dois tipos de reações eclodiram no ordenamento brasileiro.
De um lado, sustenta-se que o legislador criou nova modalidade condominial, de duração transitória, cujo registro não afasta a necessidade de se efetuar uma segunda inscrição, para definitiva constituição do condomínio edilício após o término da construção e expedição do habite-se pelo Município. Essa posição conservadora encontra arrimo no Tomo II das Normas de Serviço de Cartórios Extrajudiciais da Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo (antes de sua alteração pelo Provimento CGJ nº 07/2023)[2], com fundamentos na impossibilidade de se atribuir matrículas autônomas a unidades sem existência física consumada e no receio de impactos negativos nos casos em que não aconteça a conclusão integral das obras. Filiam-se à corrente Moacyr Petrocelli de Ávila Ribeiro[3], além de Carlos Eduardo Elias de Oliveira e Flávio Tartuce (que, para reforçar a diferença frente ao direito real sobre prédios de unidades prontas e acabadas, batizaram a figura com o nome de condomínio protoedilício)[4].
Na via oposta, Melhim Namem Chalhub e Daniella Rosa afirmam que "a Lei 14.382/2022 não criou nenhuma nova modalidade de condomínio, apenas se refere à qualificação da propriedade condominial já anteriormente caracterizada no art. 29 da lei 4.591/1964"[5]. Esclarecem ainda que a bipartição entre um condomínio temporário e outro definitivo vai de encontro às finalidades de simplificação e redução de custos invocadas no art. 1° da Lei do SERP[6]. Como base normativa a esse segundo entendimento, citam-se dispositivos da Parte Extrajudicial do Código da Corregedoria Geral de Justiça do Rio de Janeiro, que, mesmo antes da Lei do SERP, autorizam os registradores a abrirem, de ofício, matrículas individualizadas para unidades ainda não construídas desde o registro do memorial de incorporação do empreendimento em curso, aproveitando as mesmas inscrições, a posteriori, quando da averbação de habite-se e da certidão de conclusão das obras[7].
Com as mais devidas e respeitosas vênias aos adeptos da primeira compreensão, as formulações para se desdobrar o fenômeno condominial em duas estruturas jurídicas e ainda lhe atribuir nome específico para fins de demarcação conceitual remetem aos esforços daqueles que tentam decifrar o desafio do "meio buraco" mediante sistemas matemáticos, regras de três ou subterfúgios linguísticos. Também aqui, verifica-se certa inclinação, por instinto, a se buscar soluções complicadas para uma questão cuja resposta se revela elementar. Ora, tal como não existe metade de um buraco, a Lei do SERP não instituiu dois tipos de condomínios nas incorporações imobiliárias, de modo que o regime condominial especial a que alude o §1º-A do art. 32 da lei 4.591/64 representa a constituição antecipada do mesmo condomínio edilício, que se deflagra sob a forma de frações ideais de terreno e, mediante incidência natural do princípio da acessão, assume o aspecto permanente de prédio com unidades fisicamente construídas.
Em interessante artigo publicado nesta sede, Carlos Eduardo Elias de Oliveira e Flávio Tartuce indicam pontos que consideram divergentes entre o por eles denominado condomínio protoedilício e a figura condominial edilícia clássica, quais sejam, respectivamente: (i) a dispensa e a exigência de edificação física; (ii) representações por comissão de representantes e por síndico; (iii) criação mediante registro da incorporação e de ato institutivo específico no Cartório de Registro de Imóveis; (iv) objetivos de proteger titulares de futuras unidades contra intercorrências no andamento das obras e de regulamentar a interação entre condôminos no contexto de um prédio já em atividades cotidianas; (v) extinções por desistência do incorporador e somente na hipótese de ruína sem reconstrução[8].
Obedecida a ordem de apresentação dos argumentos, procede-se à sua desconstrução, a começar pelo pressuposto da existência física da edificação pronta e acabada. Primeiramente, urge sinalizar que o caput do art. 8º da Lei nº 4.591/64 reconhece, desde a sua redação original, condomínio edilício "em terreno onde não houver edificação".
Nada obstante, com a edição da Lei nº 13.465/2017, ao Código Civil fora acrescido o art. 1.358-A, que chancela legislativamente o condomínio de lotes, aplicando-se-lhe, no que couber, as disposições de condomínio edilício dos arts. 1.331 a 1.358 do diploma cível. De acordo com conceito extraído dos §§ 2º e 4º do art. 2º da Lei nº 6.766/79 (parcelamento do solo urbano), lotes são "espaços destinados a edificação", i.e., áreas que não contêm nenhuma construção ou, quando muito, apenas infraestrutura básica e obras inacabadas. Tal definição igualmente ilustra o vazio total ou parcial presente nas frações ideais e acessões sobre as quais recai o regime condominial especial do art. 32, §1º-A, da Lei nº 4.591/64. Isto posto, se o legislador inequivocamente dotou o condomínio de lotes de natureza edilícia (art. 1.358-A, §2º, I, do CC), a manifesta similitude impõe que se atribua o mesmo perfil jurídico ao instituto decorrente da Lei do SERP. Afinal, conforme ensina André Abelha: "a única diferença em relação a um prédio de apartamentos é que todas as unidades imobiliárias são lotes. Como poderiam ser apartamentos, ou lojas, ou casas, ou misto, e nada disso alteraria a natureza jurídica desse direito real"[9]. Logo, se o agrupamento de lotes tem caráter edilício, o mesmo se aplica às frações ideais de terreno e acessões enunciadas no art. 32, "i", §§1º-A e 15, da Lei nº 4.591/64.
Por sua vez, os contrastes exibidos nos itens (ii), (iii) e (iv) acima ilustram meras filigranas formalistas e não têm o condão de determinar que um dos condomínios tenha caráter edilício e o outro não. Basta observar que, com diferenças de estrutura jurídica flagrantemente mais acentuadas, a multipropriedade[10] e o condomínio urbano simples[11] não deixaram de ser classificados como espécies do gênero edilício. Já a separação dos momentos de instituição depõe contra os propósitos da Lei do SERP - pois aumenta a burocracia registral, ao invés de diminuí-la - e, ao fim e ao cabo, desemboca em registros realizados no mesmo fólio, qual seja o Cartório de Registro de Imóveis competente. No que tange aos objetivos citados por Carlos Eduardo Elias de Oliveira e Flávio Tartuce, embora desiguais, eles não se mostram mutuamente excludentes, pois o mesmo instituto jurídico, considerado de modo unitário, pode, em uma primeira fase, salvaguardar direitos de promitentes adquirentes e, no estágio da conclusão das obras em diante, permanentemente disciplinar os interesses coletivos e individuais dos condôminos. São situações que se somam, e não se repelem.
Com relação às hipóteses do item (v), não é propriamente a desistência do incorporador, tampouco a ruína da edificação, que causam, de per si, a extinção dos condomínios em estudo. O direito real finda quando, em adição a esses fatos: (a) o conjunto de promitentes adquirentes, mediante deliberação em assembleia, resolve não dar continuidade à construção interrompida e liquidar eventual patrimônio de afetação instituído para garantir o empreendimento; ou (b) os condôminos decidem, também por votação assemblear, não reconstruir o prédio e promover alienação do terreno, distribuindo os recursos financeiros auferidos de acordo com a divisão do solo em frações ideais. Nota-se, portanto, que o término efetivo de ambas as figuras condominiais repousa na decisão da comunidade de titulares pela sua liquidação, tendo-se assim mais um componente a evidenciar que o art. 32, §§1º-A e 15, da Lei nº 4.591/64 retrata, na verdade, uma situação unitariamente integrada ao condomínio edilício consagrado nos arts. 1.331 a 1.358 do Código Civil.
Refutadas as premissas suscitadas para balizar a tese de que a Lei do SERP teria criado um condomínio preliminar de natureza e existência distintas às do empreendimento plenamente edificado, cumpre demonstrar que, no momento do registro do ato de incorporação, o acervo de frações ideais e acessões contemplado no art. 32, "i", §§1º-A e 15, da Lei nº 4.591/64 já dispõe de todos os elementos essenciais necessários à caracterização do condomínio edilício que virá a se materializar quando da integral conclusão das obras em curso na incorporação imobiliária[12]. É o que se passa a fazer, ponto a ponto, considerando o total de oito elementos fundamentais à constituição dos condomínios edilícios, que se subdividem em três categorias (estruturais, formais e distintivos[13]).
A.1) Conjugação de partes de domínio exclusivo com áreas de propriedade comum
No §1º do art. 1.331 do CC, o legislador lança mão da expressão "partes suscetíveis de utilização independente", citando apartamentos, escritórios, salas, lojas e sobrelojas. Em seguida, no §2º, faz referências ao solo, estrutura predial, telhado, rede geral de distribuição de água, esgoto, gás e eletricidade, bem como às demais partes de utilização comum no edifício. Trata-se de dois elencos exemplificativos (numerus apertus[14]) e, portanto, abertos para admitir livremente quaisquer outros componentes, inclusive frações ideais e acessões destinadas ao futuro uso privativo de seus titulares e em comunhão destes com os demais promitentes adquirentes da edificação em obras[15]. Afinal, inexiste determinação, no texto legal, de que as partes da edificação devam corresponder a construções prontas, acabadas e com habite-se expedido.
A.2) Existência de frações ideais sobre o solo e as áreas comuns
O próprio objeto material contido no condomínio do art. 32, "i", §§1º-A e 15, da Lei nº 4.591/64, considerado de per si, já atende a este pressuposto, pois se trata de direito real que recai sobre frações ideais do terreno e respectivas acessões. No tocante à sua ligação com os módulos individuais de cada titular, dispõe o art. 29, caput, da Lei nº 4.591/64 que a incorporação envolve "frações ideais de terreno vinculadas a unidades autônomas em edificações a serem construídas ou em construção sob regime condominial". A norma, sem modificação textual pela Lei do SERP, sempre deixou clara a existência do condomínio edilício mesmo quando não concretizadas as obras, mas já iniciada a incorporação mediante registro do memorial.
A.3) Rateio de despesas ordinárias e extraordinárias relativas às áreas comuns
É equivocada a visão de que o dever de pagar contribuições relativas ao condomínio edilício só existe quando se tem uma edificação fisicamente pronta e acabada[16]. Ora, contribuir, no contexto predial, significa arcar, na proporção das frações ideais titularizadas, com despesas de todas as ordens relativas às partes de uso comum do conjunto imobiliário em regime condominial. É claro que, na realidade de um terreno vazio, não se haverá de cogitar, por exemplo, a partilha de custos com funcionários para trabalharem em uma portaria que sequer existe. Contudo, aquisições de materiais e de mão de obra necessários à construção do prédio, a despeito de gerenciadas pela incorporadora, formam um custo total de obras que é distribuído para pagamento por cada promitente comprador das futuras unidades (atuais titulares de frações ideais) dentro das cláusulas de contratos de promessa de compra/venda na planta. Novamente, ainda que por um modus operandi peculiar, verifica-se, já no condomínio formado com o registro do memorial de incorporação, um rateio de despesas comuns do empreendimento entre os coproprietários, à razão das frações ideais sob propriedade de cada um deles. Assim como no prédio finalizado com emissão do habite-se, aplica-se, desde as origens de sua construção, a obrigação insculpida no art. 1.334, I, do CC, justamente para evitar que, já no momento do parto, o condomínio edilício recém-criado encampe enriquecimento sem causa, em afronta ao art. 884 do CC[17].
B.1) Ato Constitutivo
De acordo com o art. 1.332 do CC, o condomínio edilício é instituído por ato entre vivos ou testamento, de que devem constar: (i) discriminação e individualização das unidades de propriedade exclusiva, estremadas umas das outras e das partes comuns; (ii) determinação da fração ideal atribuída a cada unidade, com relação ao terreno e às partes comuns; e (iii) o fim a que as unidades se destinam. Nesta senda, urge anotar que a Lei do SERP adicionou uma nova alínea "i" ao caput do art. 32 da Lei nº 4.591/64, introduzindo o seguinte requisito à estrutura documental do memorial de incorporação: "instrumento de divisão do terreno em frações ideais autônomas que contenham a sua discriminação e a descrição, a caracterização e a destinação das futuras unidades e partes comuns que a elas acederão". Com esse incremento, o memorial passou a comportar exatamente o mesmo conteúdo mínimo exigido do legislador à validade do ato constitutivo do condomínio edilício totalmente erigido. Desta feita, em prestígio à praticidade almejada pelo SERP, conclui-se que o ato da incorporação já carrega, dentro de si, aptidão para constituir o condomínio edilício, mediante registro único, consoante preconiza o novel §15 do art. 32 da Lei nº 4.591/64[18].
B.2) Registro no Cartório de Registro de Imóveis
Trata-se da solenidade por excelência exigida à instituição de direitos reais sobre bens imóveis no ordenamento jurídico brasileiro (art. 1.227 do CC). Consoante o art. 1.332, caput, do CC, o nascimento do condomínio edilício depende do registro de seu ato constitutivo no Cartório de Registro de Imóveis, condição esta que também é imposta, pelo art. 32, caput e §1º-A, da Lei nº 4.591/64, para criação do regime condominial especial enunciado a partir da Lei do SERP. A igualdade é absoluta, reforçando, mais uma vez, que os dispositivos se referem a um mesmo e unitário condomínio edilício.
B.3) Convenção Condominial
No tocante a esse instrumento obrigatório para todos os condomínios do tipo edilício[19], o art. 9º da Lei nº 4.591/64 o descreve como ato normativo que deve ser elaborado, indistintamente, pelos integrantes de unidades autônomas em edificações a serem construídas, em construção ou já construídas. Além de reconhecer a qualificação das frações ideais e acessões como unidades independentes, o dispositivo esclarece que, mesmo ausentes módulos prontos e acabados, a obrigação de produzir uma convenção já se faz exigível, demonstrando que o condomínio edilício, a se perpetuar com o fim das obras, existe sobre a terra nua ou parcialmente edificada.
C.1) Caráter permanente do estado de indivisão da coisa
Para análise correta deste requisito, é necessário esclarecer a delimitação de seu objeto. A permanência a que se alude aqui não diz respeito à indissolubilidade da estrutura física do prédio, mas sim ao estado de indivisão jurídica do imóvel[20]. É inegável que a situação condominial sobre frações ideais e acessões possui um perfil transitório, chegando a termo em algum momento, quer por finalização da construção integral do prédio, quer porque os promitentes adquirentes, em condomínio, destituíram o incorporador e optaram por liquidar o empreendimento ao invés de substituir o destituído ou assumir, diretamente, os custos e a gestão necessários à continuidade das obras. Mas, durante todo o período em que a figura insculpida no art. 32, "i", §§1º-A e 15, da Lei nº 4.591/64 subsistir, o estado de indivisão sobre as frações ideais conjugadas de áreas privativas e de uso comum será indissolúvel. Nenhum promitente comprador poderá demandar, em juízo, a cisão de sua quota parte em relação às dos demais adquirentes de quinhões do terreno a ser edificado. Na verdade, a transitoriedade se deve ao fato de o regime condominial especial consagrado pela Lei do SERP consistir em um estágio interno à estrutura jurídica do condomínio edilício, e não a instituto independente e dissociado do prédio pronto e acabado.
C.2) Inaplicabilidade de direito de preferência
Determina o §1º do art. 1.331 do CC que as partes de utilização independente do condomínio edilício poderão ser alienadas e gravadas livremente pelos seus proprietários. Como o §3º da mesma norma define que as frações ideais sobre o solo e as áreas comuns da edificação são inseparáveis de tais unidades privativas, a liberdade alcança, na totalidade, a estrutura dos condomínios edificados. No mesmo diapasão, o §1º-A do art. 32 da Lei nº 4.591/64 investe o incorporador e os futuros adquirentes da faculdade de dispor ou onerar as suas frações ideais, a despeito de prévia anuência dos demais condôminos. A se interpretar as permissões incondicionadas como dispensas à obrigação de conceder prelação aos demais consortes antes de alienar a unidade a terceiro, constata-se outra igualdade, já que, em ambos os cenários, não há direito de preferência assegurado na relação condominial, característica marcante da modalidade edilícia. Entretanto, questiona-se o acerto técnico dessa leitura. Mais correta parece a visão segundo a qual a ausência da prerrogativa decorre de um silêncio eloquente do legislador brasileiro, pois sempre que considerou a preempção cabível ele o declarou expressamente[21]. Isto posto, tanto os arts. 1.331 a 1.358 do CC, quanto a Lei nº 4.591/64 (com as modificações inseridas pela Lei do SERP), foram omissos em relação a um eventual dever de conferir prioridade a outros condôminos no ato de disposição da unidade construída ou da fração ideal de terreno ainda não edificada.
À guisa desse comparativo pormenorizado, salta aos olhos que todos os elementos essenciais de um condomínio edilício se aplicam, embora com algumas particularidades, mas sem exceção, ao regime condominial especial anunciado pelo art. 32, "i", §§1º-A e 15, da Lei nº 4.591/64. Evidencia-se, assim, que as normas introduzidas pela Lei do SERP não criaram uma nova espécie jurídica, porém marcam a antecipação dos efeitos constitutivos do condomínio edilício que adquirirá sua forma física definitiva quando concluídas as obras contratadas em sede de incorporação[22].
Ademais, a interpretação sistemática de dois dispositivos da Lei nº 4.591/64, com as alterações que lhes foram implementadas pela Lei do SERP, fortifica a tese de que a ratio do legislador foi mesmo a de adiantar a constituição do condomínio edilício ao registro do instrumento de incorporação no fólio real. Ao mesmo tempo em que a Lei do SERP suprimiu do texto do art. 44 o trecho "para efeito de individualização e discriminação das unidades", passou a prever, na alínea "i" do caput do art. 32, que o discrímen e a caracterização dos módulos imobiliários deverão ocorrer em documento integrante do memorial da incorporação. Deslocada a definição física das áreas privativas e comuns conjugadas - ainda que representada na forma de projeções aritméticas sobre a terra nua - para o ato incorporador, modificou-se a natureza jurídica do habite-se, cuja averbação passa a gozar de caráter complementar e confirmatório de um direito real de copropriedade previamente existente e instituído. É essa a posição amparada, dentre outros[23-24], por Melhim Namem Chalhub e Daniella Rosa, in verbis:
[...], pois a edificação retratada na certidão de habite-se nada mais é do que a descrição da configuração física definitiva das acessões incorporadas ao solo e por isso o registrador se limita a averbar a construção sem alterar o regime jurídico em que foi implantada, que anteriormente já havia sido qualificado como condomínio especial/edilício pelo registro da incorporação[25].
Por derradeiro, repita-se que a deflagração do condomínio edilício desde o registro do ato incorporador contendo a especificação das frações ideais é consequência inerente da aplicação da regra geral das acessões em relação às propriedades imobiliárias[26], fundada no preceito romano superficies solo cedit. Desta feita, os titulares das partes correspondentes a um terreno vazio, além de atuais donos do solo, tornar-se-ão, por automático efeito da lei (arts. 1.253 e 1.255, caput, do CC), proprietários de todas as construções que forem concretizadas nas referidas áreas desocupadas.
Ante todo o exposto, pela dicção do art. 32, "i", §§1º-A e 15, da Lei nº 4.591/64, em interpretação sistemática com os demais dispositivos do mesmo diploma e dos arts. 1.331 a 1.358 do CC, insta concluir que: (i) o registro do memorial de incorporação no Cartório de Registro de Imóveis representa uma antecipação dos efeitos constitutivos do condomínio edilício; e (ii) tal constituição do direito real será ratificada e complementada pela averbação do habite-se, expedido após a finalização das obras de construção, cuja função será somente a de atestar a transformação física de propriedades preexistentes (frações ideais de terreno vazio convertidas em unidades autônomas prontas e acabadas).
Sublinhe-se que as constatações acima recaem apenas sobre os condomínios edilícios instituídos por meio do negócio jurídico de incorporação imobiliária, conforme Título II da Lei nº 4.591/64 (arts. 28 a 68). Malgrado sejam raridade no mercado atual, os arranjos condominiais edilícios estabelecidos de outras formas (e.g., partilha de imóvel em unidades autônomas por disposição testamentária ou acordo entre herdeiros em sede de inventário, construção financiada diretamente pelos proprietários de um terreno sem contratação de incorporador), dada a ausência de memorial de incorporação, continuam a depender da elaboração do ato institutivo específico do art. 1.332 do CC e seu registro no fólio real. A Lei do SERP, portanto, não revogou, nem inutilizou o referido dispositivo da lei geral civil.
Sem embargos, cumpre advertir que a antecipação do momento de constituição do condomínio edilício sob regime de incorporação imobiliária, promovido pela Lei do SERP, não precisa gozar de eficácia plena e absoluta, podendo o legislador ressalvar a produção de alguns efeitos para empreendimentos na fase final, quando consumada a plena construção e expedido o habite-se. De um lado, defende-se que, desde o registro do memorial, seja reconhecida a existência de um condomínio edilício para mitigar a responsabilidade econômica dos promitentes adquirentes no contexto de uma hipoteca instituída pelo incorporador como garantia à obtenção de financiamento para viabilizar a construção do próprio prédio em comento, acionando a proteção assegurada pelo art. 1.488 do CC[27]. Na outra ponta, caso venha a ser promulgado o PL nº 3.461/2019 e reconhecida a atribuição de personalidade jurídica à comunidade de titulares de unidades nos condomínios edilícios, haja vista que a perenidade é conditio sine qua non à configuração de uma pessoa jurídica de direito privado no ordenamento brasileiro, tal efeito só deve ocorrer depois de pronto e acabado o edifício, haja vista a inconteste transitoriedade que caracteriza o regime condominial instituído na forma do art. 32, "i", §§1º-A a 15, da Lei nº 4.591/64[28].
O regime condominial especial suscitado pela Lei do SERP, portanto, não representa uma figura inédita e autônoma criada pelo legislador brasileiro, em duplicidade ao condomínio que se forma quando da conclusão das obras. O arranjo condominial é uno e indiviso, desde quando composto tão somente por frações ideais vazias de construções, pelo que a nova norma apenas antecipa a constituição do direito real para o momento inicial do negócio de incorporação imobiliária.
Dito isto, observa-se que o registro do memorial incorporador no Cartório de Registro de Imóveis produz resultado igual ao do primeiro toque da pá sobre a superfície do solo. Afinal de contas, embora ainda se tenha acabamento a realizar, tanto o buraco, quanto o condomínio edilício já existem. Inteiros, e não pela metade.
__________
[1] Art. 32. O incorporador somente poderá alienar ou onerar as frações ideais de terrenos e acessões que corresponderão às futuras unidades autônomas após o registro, no registro de imóveis competente, do memorial de incorporação composto pelos seguintes documentos:
[2] 221. Antes de averbada a construção e registrada a instituição do condomínio, será irregular a abertura de matrículas para o registro de atos relativos a futuras unidades autônomas.
[3] "Este regime condominial especial, congênito ao registro da incorporação, não dispensa - e nem poderia - o registro da instituição e especificação do condomínio edilício que continua sendo necessário como medida essencial para descortinar a transposição de um regime jurídico condominial para o outro" (RIBEIRO, Moacyr Petrocelli de Ávila. O regime jurídico-registral da incorporação imobiliária à luz da lei 14.382/22. Atualizado em 18.08.2022. Disponível aqui).
[4] OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de; TARTUCE, Flávio. Condomínio protoedilício e condomínio edilício: distinções à luz da lei 14.382/22 (Lei do SERP). Publicado em 23.01.2023. Disponível aqui.
[5] CHALHUB, Melhim Namem; ROSA, Daniella. A instituição do condomínio edilício pelo registro da incorporação. Publicado em 27.01.2023. Disponível aqui.
[6] Ibidem.
[7] Art. 661. No procedimento de registro de incorporação, é facultado o desdobramento de ofício da matrícula em tantas quantas forem as unidades autônomas integrantes do empreendimento, conforme os artigos 674 e 464, parágrafo único, deste Código de Normas.
[8] OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de; TARTUCE, Flávio, loc.cit.
[9] ABELHA, André. A nova lei 13.465/2017 (Parte I): o condomínio de lotes e o reconhecimento de um filho bastardo. Publicado em 09 ago. 2017. Disponível aqui.
[10] TEPEDINO, Gustavo. Multipropriedade imobiliária. São Paulo: Saraiva, 1993, p.109-110.
[11] ALLEVATO, Guilherme Cinti. "Novos condomínios" e a multipropriedade imobiliária: da comunhão do solo à partilha da unidade no tempo. In: GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da; NEVES, Thiago Ferreira Cardoso. 20 anos do Código Civil: relações privadas no início do século XXI. Indaiatuba, SP: Ed. Foco, 2022, p.402.
[12] Nesse mister, lecionam Melhim Namem Chalhub e Daniella Rosa: "Sabendo-se, por elementar, que a natureza jurídica não é determinada pela configuração física do imóvel, mas, sim, pelos elementos de caracterização estabelecidos em lei, basta considerar o conteúdo normativo do art. 32, "i", §1º-A, da Lei 4.591/1964 e do art. 1.332 do Código Civil para se constatar que condomínio especial e condomínio edilício são expressões idênticas, designam a mesma espécie de propriedade". (CHALHUB, Melhim Namem; ROSA, Daniella, loc.cit.).
[13] Os elementos estruturais dizem respeito aos componentes que permitem identificar a situação jurídica de direito real qualificada como condomínio edilício. Os elementos formais congregam o conjunto de documentos e de procedimentos necessários à efetivação do arquétipo jurídico apurado na categoria estrutural. Por fim, os elementos distintivos consistem nos fatores que diferenciam a modalidade edilícia do condomínio do tipo geral ou voluntário (arts. 1.314 a 1.330 do CC).
[14] Ao comentar sobre os §§1º e 2º do art. 1.331 do CC, Gustavo Tepedino, Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho e Pablo Renteria esclarecem que os dois parágrafos exemplificam, respectivamente, as unidades autônomas e as partes comuns da edificação (TEPEDINO, Gustavo et al. Fundamentos do direito civil: direitos reais. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p.398-399.
[15] Essa constatação encontra apoio na lição de Caio Mário da Silva Pereira, in verbis: "A cada condômino é assegurada uma fração ideal da coisa, e não uma parcela material desta. Cada cota ou fração não significa que a cada um dos comproprietários se reconhece a plenitude dominial sobre um fragmento físico do bem, mas que todos os comunheiros têm direitos qualitativamente iguais sobre a totalidade dele, limitados contudo na proporção quantitativa em que concorre com os outros comproprietários na titularidade sobre o conjunto" (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: direitos reais. 27ª ed. rev., atual. e ampl. por C.E. do Rêgo Monteiro Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p.190-191).
[16] Opinião esta manifestada em OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de; TARTUCE, Flávio, loc.cit.
[17] Expondo o alto grau de repúdio aos atrasos ou falta de contribuição financeira de alguns integrantes do condomínio edilício, Caio Mário da Silva Pereira advertia que a mora do condômino traz grande sacrifício para os demais, que tinham que cobrir o déficit orçamentário por ele provocado. (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e incorporações. 11ª ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p.56).
[18] A mesma conclusão é encontrada em CHALHUB, Melhim Namem; ROSA, Daniella, loc.cit.
[19] GOMES, Orlando. Direitos reais. 21ª ed. rev. e atualizada por Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p.247.
[20] Em contraste ao condomínio geral/voluntário, cuja divisão pode ser requerida por qualquer consorte, a todo tempo, salvo se pactuado entre os condôminos, um prazo de incindibilidade de até cinco anos, embora permitidas prorrogações - art. 1.320 do CC.
[21] Exemplos para endossar essa constatação não faltam: arts. 504 e 1.322 do CC (condomínio geral ou voluntário), arts. 27 a 33 da Lei nº 8.245/91 (Lei de Locações Urbanas), art. 92, §3º, da Lei nº 4.504/64 (Estatuto da Terra), arts. 25 a 27 da Lei nº 10.257/2001 (Estatuto da Cidade), art. 1.081, §1º, do CC (aumento de capital social nas sociedades limitadas).
[22] Anote-se que, para Frederico Henrique Viegas de Lima, presentes somente os elementos estruturais da conjugação de partes exclusivas com áreas comuns (A.1) e as frações ideais sobre o solo e espaços comunheiros (A.2), já se tem um condomínio edilício na sua completa acepção (LIMA, Frederico Henrique Viegas de. Condomínio em edificações. São Paulo: Saraiva, 2010, p.119).
[23] "[...] a averbação da construção é apenas ato informativo acerca da conclusão das obras do empreendimento e não se confunde com a instituição de condomínio edilício". (BORGES, Marcus Vinicius Motter. Curso de Direito Imobiliário Brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022, p.481).
[24] "Concluída a edificação e expedido o habite-se, haverá mera averbação do fato na matrícula do condomínio já anteriormente instituído". (LOUREIRO, Francisco Eduardo et al. Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência. 17ª ed. rev. e atual. Barueri-SP: Manole, 2023).
[25] CHALHUB, Melhim Namem; ROSA, Daniella, loc.cit.
[26] "Assim é porque a lei não excepciona o princípio da acessão em relação à construção realizada sobre terreno fracionado para realização de incorporação imobiliária, daí porque também no caso da incorporação imobiliária a edificação se incorpora ao solo com o mesmo regime jurídico do condomínio especial já dotado dos elementos de caracterização estabelecidos pelo art. 1.332 do Código Civil". (Ibidem).
[27] Art. 1.488. Se o imóvel, dado em garantia hipotecária, vier a ser loteado, ou se nele se constituir condomínio edilício, poderá o ônus ser dividido, gravando cada lote ou unidade autônoma, se o requererem ao juiz o credor, o devedor ou os donos, obedecida a proporção entre o valor de cada um deles e o crédito.
[28] A filiação à tese da possibilidade de se admitir, de lege ferenda, a instituição de uma pessoa jurídica de direito privado para desempenhar atividades de administração dos interesses coletivos da comunidade de titulares de unidades autônomas não significa dizer que se deva implementar dito projeto de personalização a todas as espécies de condomínios edilícios, indistintamente. O condomínio urbano simples (arts. 61 a 63 da Lei nº 13.465/2017) é incompatível com a concepção de pessoa jurídica, em vista da sua singeleza organizacional e procedimental. Igual desencontro se verifica no condomínio da construção (art. 31-F, §1º, da Lei nº 4.591/64), porém em virtude da sua duração temporária, mesmo motivo que afasta o regime condominial especial do art. 32, "i", §§1º-A e 15, da Lei nº 4.591/64 da adoção de um modelo personalizado. Nada obstante, isso não retira de nenhum dos três arquétipos citados a qualidade de condomínios edilícios.
Fonte: Migalhas