O filósofo e sociólogo polonês Zygmunt Bauman em sua obra “Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos” afirma que até mesmo a afinidade está se tornando algo pouco comum em uma sociedade de extrema descartabilidade. O desafio de relacionar-se em meio à liquidez e fragilidade do afeto tem fomentado uma onda de contratualização no direito das famílias.
Subliminarmente, parece que as cláusulas existenciais funcionam como uma espécie de aquário, onde a liquidez dos afetos é guardada e não se esvai. Entretanto, na prática, embora haja possibilidades jurídicas de contratualização antenupcial, seja de natureza patrimonial ou extrapatrimonial, nenhuma cláusula é capaz de impedir o fim da relação, nem mesmo a cláusula de (in) fidelidade.
É o contrato feito entre os noivos com o propósito de estabelecer o regime de bens que vigorará após o casamento. O pacto antenupcial somente é necessário caso os noivos optem por um regime de bens diferente do regime legal, que é o regime da comunhão parcial de bens ou, em alguns casos especiais, como é o caso do regime da separação obrigatória de bens.
O Artigo 1.653 do Código Civil afirma que: “É nulo o pacto antenupcial se não for feito por escritura pública, e ineficaz se não lhe seguir o casamento.”
A nulidade do pacto está vinculada ao ato registral em Cartório, via escritura pública e sua eficácia ao casamento civil posterior ao pacto. Os artigos 1.653 a 1.657 do Código Civil estipulam todo regramento legal do pacto, havendo inclusive a possibilidade de pacto pós-nupcial que é o caso, por exemplo, da mudança de regime de bens.
Vale dizer que além das questões patrimoniais, também é possível dispor sobre questões extrapatrimoniais ou existenciais no pacto antenupcial, podendo ser utilizado como uma espécie de código de conduta moral entre o casal.
A maioria dos noivos quando procuram um Cartório de Registro Civil para iniciar o processo de habilitação de casamento, sequer tem noção da importância da escolha racional e consciente do regime de bens. Em alguns casos, a falta de informação é o problema, tendo em vista a ausência de conhecimento técnico dos funcionários dos cartórios extrajudiciais, em outros a questão é econômica, pois o casal prefere a opção que não exigirá um custo maior, como é o caso da lavratura da escritura pública de pacto antenupcial.
Dessa forma, acaba-se optando pelo regime legal (comunhão parcial de bens) sem ter a mínima ideia das possibilidades do pacto antenupcial, seja no que diz respeito às questões patrimoniais ou extrapatrimoniais. E aqui, percebe-se como é fundamental um planejamento matrimonial bem feito.
O Artigo 1.639 do Código Civil estabelece que: “É lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver.”
Apesar de parecer que o artigo 1.639 estabeleceu liberdade plena de disposição no pacto antenupcial, não é bem assim que funciona. Existem limitações para tais disposições, que partem do seguinte questionamento: “o estabelecido no pacto antenupcial fere a ordem pública?”.
O que nos leva a outro questionamento: “o que fera a ordem pública?” Aqui, percebemos uma lacuna interpretativa, considerando que o que fere e afronta a ordem pública na cultura e vivência de um casal, pode não ser o mesmo em relação a outro. A discussão se estende a dois tópicos centrais: autonomia privada x intervenção mínima do Estado.
Por exemplo, estabelecer em pacto antenupcial que o casal poderá ter uma "relação aberta", ou seja, que não têm o dever de fidelidade, fere a ordem pública? Deve-se respeitar essa particularidade e intimidade? Cada casal pode fazer o seu código particular? Essas questões nos remetem a uma compreensão mais ampla e profunda sobre o sexo e sexualidade e qual o limite entre público e privado. O Direito de Família contemporâneo exige de nós esta reflexão e compreensão.
Rodrigo da Cunha Pereira, presidente nacional do IBDFAM afirma que: "a sexualidade, que tradicionalmente estava no campo da moral social, foi privatizada e hoje pertence à vida íntima de cada um. Por isso, inclusive, é importante e conveniente deixar claro as regras de uma convivência conjugal. Falar e escrever sobre isso, por mais incômodo que seja, significa em última análise cuidar do amor. A livre expressão do amor e do afeto só se tornou possível porque está sustentada por um novo discurso sobre a sexualidade."
A afirmação do presidente nacional do IBDFAM faz tanto sentido que nos últimos meses a mídia internacional divulgou cláusulas de pactos antenupciais de casais famosos, cujo conteúdo remete especificamente a dita “privatização da vida íntima”, como por exemplo:
O mais comum é que haja previsões a respeito da divisão de tarefas domésticas, privacidade em redes sociais, indenização pela infidelidade, sobre técnicas de reprodução assistida heteróloga, educação religiosa dos filhos e se um dos cônjuges/companheiros poderá, ou não, ser curador do outro em caso de incapacidade absoluta.
Lembrando que tais cláusulas poderão ser estabelecidas, caso não ultrapassem a barreira da dignidade humana e não afrontarem a ordem pública.
A previsão da cláusula penal por traição no pacto antenupcial consiste na exteriorização da autonomia privada das partes e do direito de família mínimo que preceitua a mínima intervenção estatal na esfera privada, além de trazer benefícios preventivos e reforçadores da confiança entre os nubentes.
Em janeiro de 2023 um casal de Belo Horizonte resolveu fazer um pacto antenupcial uma cláusula de multa de R$ 180 mil em caso de traição. O documento foi validado pela juíza Maria Luiza de Andrade Rangel Pires, titular da Vara de Registros Públicos de Belo Horizonte, que autorizou a inclusão da cláusula de multa no contrato.
Segundo a juíza Maria Luiza Rangel Pires, embora para muitos soe estranha essa cláusula no contrato - porque já se inicia uma relação pontuada na desconfiança mútua -, essa decisão é fruto da liberdade que eles têm de regular como vai se dar a relação deles, uma vez que o dever de fidelidade já está previsto no Código Civil Brasileiro.
A magistrada ainda ressaltou que os casais têm autonomia para decidir o conteúdo do pacto antenupcial, desde que não violem os princípios da dignidade humana, da igualdade entre os cônjuges e da solidariedade familiar.
Para a juíza, o Poder Público tem que intervir o mínimo possível na esfera privada, de modo que o pacto antenupcial é definitivamente para o casal escolher o que melhor se adequa para a vida que escolheram levar a dois.
A decisão da juíza da Vara de Registros Públicos de Belo Horizonte/MG revela que, o que para alguns parecia ser uma tendência jurídica, é absolutamente possível e viável segundo o Código Civil Brasileiro. E muito embora haja interesse Estatal sobre a vida privada, tal interesse não pode se sobrepor a autonomia privada, principalmente quando está em pauta o regramento que um casal livremente decide estabelecer, sem ferir os princípios constitucionais e ainda resguardando o dever de fidelidade previsto no Artigo 1.566 do Código Civil.
Como bem afirmou a saudosa Marília Mendonça: “Iêêê, infiel. Eu quero ver você morar num motel. Estou te expulsando do meu coração. Assuma as consequências dessa traição (...)”
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2004.
*Ciro Mendes Freitas é advogado, pós-graduado em Direito das Famílias e Sucessões pelo IBDFAM Educacional, vice-presidente do IBDFAM Norte e Noroeste Fluminense, vice-presidente da Comissão de Família e Tecnologia do IBDFAM/RJ e presidente da Comissão de Direito das Famílias e Sucessões da 12ª Subseção da OAB/RJ.
Fonte: IBDFAM