Após trinta anos de plena vigência, o Código de Defesa do Consumidor recebeu importante atualização em julho de 2021. Com a aprovação da lei 14.181, foram acrescentados dois importantes princípios à Política Nacional das Relações de Consumo: o fomento de ações direcionadas à educação financeira e ambiental dos consumidores, e a prevenção e tratamento do superendividamento, como forma de evitar a exclusão social. Eles foram seguidos de dois eficazes instrumentos para a execução de tal política, que são a instituição de mecanismos de prevenção e tratamento extrajudicial e judicial do superendividamento e de proteção do consumidor pessoa natural, bem como de núcleos de conciliação e mediação de conflitos oriundos do superendividamento. Além disto, novos direitos básicos foram previstos: a garantia de práticas de crédito responsável, de educação financeira e prevenção e tratamento de situações de superendividamento; a preservação do mínimo existencial, e a adequada informação acerca de preços de produtos por unidade de medida.
No Capítulo que trata sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento, após definir os conceitos necessários à compreensão desta complexa situação socioeconômica em que determinados consumidores estão inseridos, quando não têm condições de arcar com o pagamento de dívidas vencidas e vincendas sem prejuízo da própria subsistência, o legislador passou a estabelecer regras para a concessão de crédito responsável, fazendo-o desde o momento da oferta, até a fase pós contratual. Trata-se de uma nova maneira de pensar e regulamentar este importante instrumento do mercado, o crédito, privilegiando a boa-fé como princípio, e o dever de atender mutuamente às expectativas geradas de parte a parte, que devem conduzir ao fiel cumprimento do contrato como meta.
Se, por um lado, deu-se um importante passo em direção à melhora do sistema de crédito, buscando reinserir no mercado de consumo parcela importante de pessoas que dele se encontram afastadas, por outro, lançou luzes sobre as dificuldades que teremos para implementar tais transformações.
No âmbito do direito empresarial, a insolvência teve nova regulamentação a partir de 2005 e, de lá para cá, seus operadores vêm se dedicando a encontrar soluções para melhor lidar com a crise econômica da empresa buscando, sempre que possível, preservar a sua atividade e, como tal, restabelecer a saúde do mercado no qual se encontra inserida, tudo com o escopo de manutenção dos benefícios sociais que emerge da empresa, quais sejam, criação de empregos, arrecadação de tributos, criação e manutenção de relações comerciais e civis, inserção de bens e serviços para o meio social.
Sabemos que a economia do país depende do bom funcionamento das instituições, e que a empresa certamente é um de seus pilares de sustentação. Sendo assim, parece fácil compreender que a ruína de uma ou de várias delas pode impactar negativamente na vida de milhares de pessoas - não apenas dos sócios, mas de todos os stakeholders.
Se nos valermos da figura de uma engrenagem, podemos visualizar o que acontece quando uma peça se desalinha ou deixa de funcionar a contento: pouco a pouco as demais vão se deteriorando até que, em algum momento, ela desmonta ou simplesmente para. Assim é a empresa: de nada adianta que a produção seja punjante, se não há mercado para o consumo dos seus produtos e serviços. Não basta simplesmente que a sociedade empresária ande bem, mas é imprescindível que todo o ambiente que a circunda siga em condições equivalentes.
De todos os seus stakeholders, chama a atenção neste momento, a posição dos consumidores: de acordo com a FECOMERCIOSP, responsável pela PEIC (Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor), mais de um milhão de famílias está em situação de inadimplência, apenas na capital do Estado mais rico da Federação, sendo este o maior número dos últimos doze anos. Do total das famílias, 9% informou não ter condições de honrar seus compromissos atrasados.
Os números são expressivos e importantes: significam que parcela muito significativa da população vem vivendo à margem da economia de mercado, porque não tem recursos, seja para pagar suas dívidas, o que traz inúmeros problemas pessoais e sociais - seja para continuar a consumir - atingindo diretamente a saúde financeira do mercado e o ambiente de negócios, além de contribuir para a elevação do risco Brasil em níveis igualmente espantosos.
A lei 14.181/21 percorreu um longo e árduo caminho até a sua aprovação, em julho de 2021: teve início a partir da nomeação de uma comissão de juristas, que redigiu o projeto de lei 3515/15, o qual foi submetido a amplo debate perante a comunidade jurídica, a quem se somaram todos os representantes daqueles que de alguma maneira poderia por ele ser afetados: Febraban, Banco Central, representantes da sociedade civil, das empresas, dos consumidores, Poder Judiciário, Ministério Público, Senacon, entre outros: foram todos ouvidos até que chegasse a um texto básico e de consenso. A aprovação em plena pandemia é o primeiro passo para que passemos a pensar no que fazer com esta massa de consumidores submersa em dívidas (muitas absolutamente impagáveis). Busca-se, com ela, uma mudança de cultura, deixando de lado a ideia de que o inadimplemento das pessoas naturais não é um problema isolado, mas sim uma questão a ser tratada por toda a comunidade, diante de sua repercussão direta e imediata na economia local e do país. Os paradigmas a partir dela são outros: prestigia-se ainda mais a boa-fé, a função social do contrato e a iniciativa do devedor que, sponte propria, busca o auxílio do Poder Judiciário (ou dos órgãos do sistema de defesa do consumidor) para renegociar e, de alguma maneira, pagar suas dívidas e poder voltar ao mercado de consumo.
Antes desta lei, restava à pessoa natural a incômoda e ineficiente via da insolvência civil: incômoda pela extrema exposição que se lhe impunha; ineficiente, porque incapaz de trazer de volta tanto a sua reinserção no mercado, quanto o dinheiro do credor.
Começamos a engatinhar neste tema. Alguns mecanismos de atuação foram apresentados, seguindo inspiração da legislação francesa, que prestigia o pagamento, sem perdão de dívidas (a não ser que haja consenso entre os contratantes, a lei não cuida de remissão, diferentemente do sistema norte americano que prevê, a partir do cumprimento determinados requisitos, o perdão e o fresh start). Como os franceses, especialmente na forma inicial de sua lei (hoje se aproximam mais dos americanos) tratamos de trazer à negociação conjunta todos os credores para chegar a uma forma de pagamento que, de alguma maneira, possa satisfazê-los. Os envolvidos são livres para negociar como melhor lhes aprouver e, se chegarem a um consenso, o plano de pagamento é homologado e passar a valer como título executivo judicial. Se não houver acordo (que haverá de estabelecer condições de pagamento passíveis e possíveis de cumprimento, resguardando o mínimo existencial), ou se ele não for total, o consumidor pode ajuizar ação em que pedirá ao juiz que, com auxílio de um administrador, elabore tal plano.
É verdade que hoje, mais de um ano após o início da vigência da lei, pouco se tem dela na prática. Parece consenso que a competência para conhecer e julgar destas causas é do juízo cível. Segue-se, assim, a orientação de aproximar o direito do consumidor do direito civil, mas apenas o tempo dirá se esta é a melhor forma de tratar a questão. Não se perca de vista, contudo, que o novo formato proposto pela lei modifica substancialmente tanto a maneira de tratar o processo, quanto de organizar e conduzir as audiências (que terão de um lado o consumidor e, de outro, a coletividade de seus credores).
Uma vez instaurado (por iniciativa exclusiva do consumidor) o processo por superendividamento para revisão e integração dos contratos, tal como estabelece a lei, toma um formato ímpar que, salvo melhor juízo, para que possa atingir seus objetivos, deve reunir todas as ações em curso que envolvam aquela pessoa, assim podendo chegar a uma reorganização da vida financeira e a possibilidades efetivas de pagamento e reinserção social.
A temática assume importância na medida de propiciar ao consumidor endividado, pelas mais variadas razões (a causa do superendividamento não é condicionante para a concessão do benefício, podendo assumir algum relevo por ocasião da construção do plano de pagamento e das negociações em trono dele), uma forma de se reinserir no mercado de consumo como um agente econômico que irá se satisfazer de produtos e serviços necessários à sua sobrevivência (alimentação, vestuário, lazer, etc.), além de buscar uma recuperação de crédito de maneira mais eficiente, ainda que não seja possível o pagamento integral do débito tal como pactuado.
Mas, além da relação inter partes, há o efeito de se preservar a manutenção de agentes econômicos que servem o mercado empresarial de maneira direta ou indireta, pois a empresa é voltada à produção e circulação de bens e serviços, razão pela qual necessita de um mercado de consumo lato sensu, para que haja escoamento das riquezas por ele produzidas.
Nossa ordem econômica é fundada na livre iniciativa (art. 170, caput, CF), a qual, longe de ser um fim em si mesma, possui o objetivo de assegurar a todos, existência digna, conforme ditames da justiça social. Isso sem prejuízo de prestigiar o direito de propriedade (art. 170, II, CF), o qual possui seus limites no atendimento de sua função social.
A perseguição do crédito investido, independentemente da forma assumida, é medida relevante para que os investimentos no país possam ser verificados com maior facilidade e fluidez, em benefício do próprio corpo social (proteção ao direito de propriedade). Mas isso é apenas uma face da moeda. A outra é a realidade de concessão de crédito muitas vezes de maneira irresponsável e sem a escorreita análise prévia, além da ausência de instrumentos voltados à readequação do passivo dos agentes econômicos.
Em razão de tal contexto, muitos buscam a aplicação da Lei 11.101/2005 para a recuperação de suas atividades, tais como associações civis e clubes de futebol. Isso evidencia o fato de que agentes econômicos necessitam de instrumentos jurídicos e administrativos para lidar com sua crise econômico-financeira, a fim de que sua posição seja mantida no mercado e não haja a liquidação e interrupção de relações econômico-jurídicas com o mercado empresarial.
O sufocamento de associações civis, consumidores e demais agentes que não se identificam como empresários possui repercussão direta e imediata dentro da esfera das empresas, justamente porque, em larga escala, não haverá pontos de escoamento necessário ao que se produz. A engrenagem, como dito acima, não prescinde de instrumentos voltados à sua reorganização, para que possa continuar operando de maneira eficaz, ampliando a circulação de riquezas e a prosperidade econômica do país.
Estamos caminhando para superar o déficit legislativo. O tratamento ao consumidor superendividado, para além de sua reinserção imediata em prol do mercado empresarial e de melhoras na recuperação dos créditos a ele concedidos, permitirá uma mudança de cultura na própria concessão de crédito e na interação entre aqueles que produzem e aqueles que adquirem os frutos dessa produção, numa simbiose virtuosa entre os agentes econômicos empresários e consumidores.
Autores:
João de Oliveira Rodrigues Filho é juiz de Direito da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais da capital de São Paulo. Especialista em Direito Empresarial pela EPM, professor do curso de pós-graduação em Falências e Recuperação Judicial da FADISP e palestrante e conferencista.
Mônica Di Stasi é juíza da 3ª Vara Cível do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Fonte: Migalhas