Por Thomas Nosch Gonçalves, José Renato Nalini e José Luiz Germano
O escopo desse estudo reflexivo e intuitivo se consubstancia no levantamento de algumas perguntas práticas decorrentes da problemática apresentada e seus efeitos imediatos, notariais e registrais, perscruta assim contribuir com o Poder Judiciário Paulista e com as instâncias extrajudiciais na melhor intelecção desse fenômeno. Ademais, apresentamos reflexões desta celeuma, com a proposição de algumas possibilidades para uma nova proficuidade.
O recente precedente do Conselho Superior da Magistratura na Apelação 1109321-12.2021.8.26.01001 estabeleceu que o acréscimo patrimonial, obtido de forma não onerosa, impõe a declaração e o recolhimento do Imposto de Transmissão Causa Mortis e por Doação - ITCMD ou a comprovação da sua não incidência por declaração do órgão competente, obrigando o Oficial Registrador promover a fiscalização do pagamento desse imposto.
No entanto, o voto vencido, de lavra do doutor Fernando Antonio Torres Garcia - Corregedor Geral da Justiça - demonstrou a melhor solução - com respeito e a máxima venia aos demais nobres julgadores, aos quais aproveitamos, inclusive, para renovar nossos protestos de elevada estima e distinta consideração.
Pois bem, apresentamos a seguir algumas perguntas, baseadas em fundamentos jurídicos, para que os leitores possam perscrutar prévias reflexões práticas:
Tendo em vista este último precedente e seu voto vencedor, seria cabível a orientação notarial para lavratura de duas compras e vendas recíprocas? Essa conclusão poderá levar os usuários a "mentir" ou modular a manifestação de vontade - simulação -, com intuito de economizar a "suposta e inexistente doação" dentro no negócio jurídico eminentemente oneroso?
Como estabilizar os anseios subjetivos e a complexidade dos objetos imóveis em face da efêmera sociedade? Exemplo prático disso já foi demonstrado pela decisão da Doutora Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad, da 1ª VRPSP - Processo: 1127941-72.2021.8.26.01002, na qual houve a permuta de um sítio em Tatuí por um apartamento, uma sala comercial e uma vaga dupla de garagem na Capital Paulista. O imóvel rural - com tamanho e estrutura de lazer limitado -, tem potencial de gerar mais custos para manutenção, ao passo que nos urbanos se presume um potencial de frutos civis - aluguéis- produzidos periodicamente. A seguir, ofertamos um trecho da decisão que explora a causalidade subjetiva inerente a permuta, além de uma análise tributária necessária:
" .... De fato, para os contratantes, o valor intrínseco dos bens pode ser bastante variável, ganhando relevante valorização por questões personalíssimas de fundo emocional e afetivo ou tornando-se desinteressantes e até desprezíveis por alterações na condição de vida de cada um, como no caso da requerente que informa ter se mudado para Portugal, o que a impede de usufruir o imóvel rural, preferindo imóveis urbanos com a expectativa de retorno financeiro que não alcançaria com o sítio. É nesse contexto que, sob o aspecto das relações privadas, o preço dos bens envolvidos em um contrato de permuta pode não ser integrativo do negócio jurídico. Contudo, para efeitos tributários, a expressão econômica dos bens negociados é essencial para a fixação de uma base de cálculo objetiva, que não pode variar conforme a conveniência dos contratantes.
No caso concreto, a parte recebeu imóveis cuja soma do valor venal totalizou R$ 1.196.011,00 e, na condição de contribuinte, calculou o ITBI recolhido tomando por base esse valor. Por outro lado, o sítio que entregou na permuta estava avaliado, para fins tributários, em R$830.666,00 conforme Declaração do ITR para o exercício de 2018, o que resulta em diferença de R$365.345,00, para a qual não houve compensação financeira. Não resta dúvida de que se tratou de negócio oneroso, ao menos em parte, pois, embora não tenha havido pagamento em dinheiro, houve troca de patrimônio com a entrega do imóvel rural. Portanto, é inquestionável a incidência do ITBI.
Contudo, pode a permuta ser considerada um negócio complexo (parte oneroso e parte gratuito), ensejando a incidência simultânea e complementar de ITBI e de ITCMD? O acréscimo patrimonial auferido pela parte que recebeu imóveis de maior valor sem a correspondente compensação financeira pode caracterizar doação sujeita à incidência do ITCMD? Embora a tese da caracterização de doação tributável seja sedutora, uma análise sistemática indica que a resposta deve ser negativa, sobretudo pela bitributação que acarretaria. "
"REGISTRO DE IMÓVEIS. Escritura pública de permuta de bens imóveis com valores distintos e torna. Negócio jurídico oneroso. ITBI recolhido. Inexistência de fato gerador do ITCMD. Exigência de comprovação do pagamento do imposto estadual afastada. Recurso provido para julgar improcedente a dúvida determinando o registro do título. "
Como sabemos, o Código Civil Brasileiro não previu a causa como pressuposto de existência, muitos menos como requisito de validade dos negócios jurídicos. No entanto, caso lavre uma escritura de dação em pagamento e não conste a origem da dívida, certamente será qualificada de forma negativa pelo Registrador. Isso demonstra uma possível aplicação analógica, ainda que mitigada, de um negócio jurídico causal (causa como elemento estruturante), requerendo necessariamente uma análise fática preexistente para perfectibilização do ato notarial na tábua registral.
Para Emilio Betti, os negócios distinguem-se em causais e abstratos, conforme a função econômico-social - causa - que os informa, seja ou não, manifesta e reconhecível pela sua estrutura, de modo que haverá influência direta ou indireta na irradiação do tratamento jurídico e dos seus efeitos.
Para o referido autor, há negócios que revelam a causa de forma automática, implícita, em um verdadeiro exercício de abstração, não revelando uma necessidade individual e específica na satisfação do programa negocial.
Neste sentido, a causa em determinados negócios tem relevância direta, diferente dos negócios abstratos, como o autor cita os cambiários, por exemplo. Nessa modalidade negocial há previsão legal de abstração e autonomia dos negócios genéticos.
De outro bordo, há na permuta uma causa integrante da simbiótica relação jurídica, um desejo, a vontade de trocar um bem pelo outro, com objetivos subjetivos únicos e diferenciados, inerentes de cada negócio jurídico.
Utilizando-se do arquétipo jurídico existente e a capacidade prudencial dos notários, defendemos a possibilidade da criação de um dispositivo de circunspecção notarial - irradiação prática dessa característica prudencial segundo São Tomás de Aquino5 - na escritura pública, muito similar ao dispositivo de origem da dívida constantes na dação em pagamento. Assim, poderá auxiliar a qualificação registral do Registrador para o afastamento total de eventual burla tributária ou ato volitivo de gratuidade.
Outrossim, ressaltamos que é possível ainda praticar o ato registral e comunicar o Fisco competente para eventual fiscalização, caso seja necessária. Devemos sempre nos pautar nos precedentes consolidados, notadamente que não deve o Oficial Registrador verificar o quantum recolhido, apenas se houve ou não o pagamento, com exceção de flagrante irregularidade, devendo tal aferição ser atribuição exclusiva do ente fiscal.
Por outro lado, o recente o PARECER PGFN/CRJ/COJUD SEI N° 8694/2021/ME (com precedentes do STJ) que resultou no Despacho PGFN nº 167, de 08 de abril de 20226, entalhou o seguinte:
"...Contrato de permuta, sem parcela complementar. Resumo: O contrato de troca ou permuta não deve ser equiparado, na esfera tributária, ao contrato de compra e venda, pois não haverá, em regra, auferimento de receita, faturamento ou lucro na troca. O art. 533 do Código Civil apenas ressalta que as disposições legais referentes à compra e venda se aplicam, no que forem compatíveis, com a troca no âmbito civil, definindo suas regras gerais. Como corolário, não havendo comprovação documental em sentido contrário, nem parcela complementar, o valor do imóvel recebido nas operações de permuta com outro imóvel não deve ser considerado receita, faturamento, renda ou lucro para fins do IRPJ, CSLL, PIS e COFINS apurados pelas empresas optantes pelo lucro presumido. Precedentes: REsp nº 1.733.560/SC, AgInt no REsp nº 1.758.483/SC, AgInt no REsp 1.796.877/SC, AgInt no AgInt no REsp nº 1.639.798/RS, AgInt no REsp 1.737.467/SC, AgInt no REsp 1.800.971/SC, AgInt no REsp nº REsp 1.868.026/PB, REsp nº 1.754.618/SC, REsp nº 1.798.211/RS, REsp nº 1.801.839/RS, REsp nº 1.850.377/SC, REsp nº 1.737.790/RS e REsp nº 1.738.667/SC. Data de início da vigência da dispensa: 08/04/2022. Referência: Parecer SEI nº 8.694/2021/ME."Encaminhe-se à Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil para ciência, consoante sugerido. Outrossim, restitua-se à Procuradoria-Geral Adjunta de Consultoria e Estratégia da Representação Judicial para adoção das providências pertinentes, em especial, aquelas apontadas no item 15 do PARECER PGFN/CRJ/COJUD SEI N° 8694/2021/ME (SEI nº 16442676)."( grifo nosso)
Em outras palavras, a Procuradoria da Fazenda Nacional manifestou-se no sentido de não tributação da permuta como na compra e venda, demonstrando por si só, o reconhecimento de um negócio causal diferente da compra e venda.
Corrobora ainda nesse sentido, o Recurso Especial Repetitivo7 Nº 1.937.821 - SP (2020/0012079-1), sob relatoria do Ministro Gurgel de Faria, com fulcro no artigo 1.039 do Código de Processo Civil, na qual firmou as seguintes teses:
"... a) a base de cálculo do ITBI é o valor do imóvel transmitido em condições normais de mercado, não estando vinculada à base de cálculo do IPTU,que nem sequer pode ser utilizada como piso de tributação; b) o valor da transação declarado pelo contribuinte goza da presunção de que é condizente com o valor de mercado, que somente pode ser afastada pelo fisco mediante a regular instauração de processo administrativo próprio (art. 1488 do CTN); c) o Município não pode arbitrar previamente a base de cálculo do ITBI com respaldo em valor de referência por ele estabelecido unilateralmente."(grifo nosso)
Em outros termos, como afastar a declaração dos contribuintes de forma direta sem a regular instauração do processo administrativo próprio? Ou pior, como presumir que a diferença se trata de doação com a consequente bitributação (ITBI e ITCMD).
De acordo com o Ministro Gurgel de Faria: " verifica-se que a base de cálculo do ITBI é o valor venal em condições normais de mercado e, como esse valor não é absoluto, mas relativo, pode sofrer oscilações diante das peculiaridades de cada imóvel, do momento em que realizada a transação e da motivação dos negociantes".
Vale enfatizar que o sistema não presume a má-fé dos contratantes, a presunção é pela boa-fé conforme disposto:
Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.
I - for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do negócio; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
II - corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
III - corresponder à boa-fé; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
IV - for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável; e (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
V - correspondera qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
De forma objetiva, a ideia é desenvolver uma nova interpretação partindo dessas premissas, ou ainda uma alteração lege ferenda nas Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça, capítulo XVI - Do Tabelionato de Notas - para incluir uma recomendação na formalização da permuta, a descrição da finalidade e causa da troca do negócio jurídico, demonstrando circunspectivamente as vontades da relação contratual sem a necessária contraprestação, similar ao que acontece com a dação em pagamento, notadamente na obrigatoriedade de constar a origem da dívida no título notarial. Isto é, aplicar o mesmo raciocínio da dação em pagamento na permuta!
Em arremate, mais uma vez em formato objetivo, concluímos:
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1 Disponível em: https://www.kollemata.com.br/permuta-sem-torna-acrescimo-de-patrimonio-itcmd-recolhimento-tributos-fiscalizacao.pdf Acesso em 05/11/2022
2 Disponível em: https://www.kollemata.com.br/39683.pdfAcesso em 05/11/22
3 Disponível em: https://www.kollemata.com.br/escritura-de-permuta-com-torna-valores-distintos-titulo-oneroso-itbi-itcmd-fato-gerador-ausencia.pdf acesso em 08/11/2022.
4 Conforme leciona Maria Celina Bodin de Moraes (2013): "Identifica-se, assim, mais propriamente, noanimus donandio motivo individual e contingente que impulsiona o doador, configurando-se comoo elemento psicológico, ou seja, a finalidade prática, a razão determinante para a conclusão do contrato, mas não para a sua qualificação. O motivo é o objetivo que faz com que o contratante realize o negócio. Normalmente, ele é irrelevante porque depende exclusivamente de questões internas do próprio contratante. Alguém pode querer doar para ser reconhecido, por estar agradecido, por visar a um interesse ulterior: não importam os seus motivos particulares. Excepcionalmente, o ordenamento atribui-lhes relevância causal como quando prevê que a remuneração e o casamento, expressos nas finalidades do contrato de doação, não permitem a sua revogação por ingratidão (Código Civil, art. 564).Exclui-se, pois, da causa do negócio a referência ao animus donandi, bem como se diferencia a gratuidade da ausência de sinalagmaticidade, correspondendo esta última, justamente, ao efeito essencial do contrato. Superada a teoria voluntarista do animus donandi, o conceito de liberalidade, constante do art. 538 do Código Civil, deve assumir o significado de finalidade, típica e constante, de conferir a outrem uma vantagem patrimonial sem qualquer correspectivo." (grifo nosso)
5 Art7ºSe a circunspecção pode ser parte da prudência. - No Tratado da Prudência, Tomás de Aquino: "Solução: Da prudência é próprio, como dissemos, principalmente ordenar com acerto os meios para o fim. O que não se fará retamente, se o fim não for bom e não for também bom e conveniente o meio ordenado ao fim. Ora, a prudência versa como dissemos, sobre os atos particulares, em que concorrem muitas circunstâncias. Por isso, pode dar-se que um meio seja, em si mesmoconsiderado, bom e conveniente ao fim, que, contudo, por certas circunstâncias que nele concorrem, se torna mau ou não conducente ao fim.". (grifo nosso)
6 Disponível em: http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?visao=anotado&idAto=123595 Acesso em 05/11/2022
7 Disponível em: https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=T&cod_tema_inicial=1113&cod_tema_final=1113 acesso em 08/11/2022
8 Art. 148. Quando o cálculo do tributo tenha por base, ou tome em consideração, o valor ou o preço de bens, direitos, serviços ou atos jurídicos, a autoridade lançadora, mediante processo regular, arbitrará aquele valor ou preço, sempre que sejam omissos ou não mereçam fé as declarações ou os esclarecimentos prestados, ou os documentos expedidos pelo sujeito passivo ou pelo terceiro legalmente obrigado, ressalvada, em caso de contestação, avaliação contraditória, administrativa ou judicial (BRASIL, 1966) (grifo nosso).
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BODIN DE MORAES, Maria Celina. Notas sobre a promessa de doação. Civilistica.com.Rio de Janeiro, a. 2, n. 3, jul.-set./2013. Disponível em: . Data de acesso. 08/11/2022
EMILIO BETTI, Teoria generale Del negozio giuridico, Torino, UTET, 1952, 2a ed.
EMILIO BETTI, Teoria Geral do Negócio Jurídico, Trad. Servanda Editora, Campinas. SP: 2008.
JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antonio. Estudos e pareceres de direito privado. . São Paulo: Saraiva, 2004.
JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antonio. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. . São Paulo: Saraiva. 2010.
TOMÁS DE AQUINO. Suma teológica. São Paulo: Loyola, 2001-2006, 11v.
Fonte: Migalhas