A Constituição Federal dispõe em seu art. 226 que a família é a base da sociedade, merecendo proteção especial do Estado quanto ao reconhecimento, desenvolvimento e tutela das mais diversas formas de composição da entidade familiar, bem como de seus membros.
Tradicionalmente o casamento era a única forma legítima de arranjo familiar. A Constituição Federal de 1988 ampliou as hipóteses de arranjos afetivos classificados como família (união estável, núcleo monoparental, além do casamento), consagrando uma estrutura paradigmática aberta, fundada no princípio da afetividade - o que proporcionou avanços infraconstitucionais, doutrinários e jurisprudenciais significativos: família anaparental, mosaico ou reconstituída, família unipessoal, família solidária e etc.
Dentre as diversas categorias de família - muitas ainda em formação e desenvolvimento doutrinário, legal e/ou jurisprudencial - merece grande destaque o instituto da união estável, ombreado inúmeras vezes quanto aos seus efeitos jurídicos com o casamento.
A união estável é a união contínua, pública e duradoura, com o objetivo de constituição de família, conforma conceito trazido pelo art. 1.723 do Código Civil. (KARINE BOSELLI, IZOLDA ANDREA RIBEIRO e DANIELA MRÓZ - no livro: Registros Públicos, Coord. ALBERTO GENTIL. - 2. Ed. - Rio de Janeiro: Forense; Método, 2021. p.270).
Diversamente do casamento que é obrigatoriamente constituído por um complexo de atos formais previstos rigorosamente em lei com ingresso obrigatório o Registro Civil das Pessoas Naturais (fase de documentação, fase de proclamas, fase de certidão e fase de registro), a união estável decorre apenas da constatação fática da presença dos quatro elementos essenciais indicados no art. 1723, do Código Civil. Ou seja, constatando-se na união amorosa entre duas pessoas à publicidade, continuidade, estabilidade e o objetivo de constituir família será reconhecida a união estável, independentemente da existência de um instrumento jurídico ou procedimento de constituição.
É notória a facilitação de criação de núcleo familiar advindo da união estável (modelo adotado por milhares de famílias brasileiras), mas também sua dificuldade de conhecimento por terceiros da nova situação jurídica e todo o universo de implicações (como por exemplo: para o registro de imóveis, para aquisições e alienações de bens, penhoras em ações judiciais, direitos sucessórios, direitos previdenciários, securitários e afins).
De todo modo, admitia-se como instrumento declaratório bastante para materialização da união estável a sentença judicial e a escritura pública, facultando-se o ingresso do título no Livro E do RCPN da Sede ou do 1º Subdistrito da Comarca em que os companheiros têm ou tinham sua última residência para alcance de melhor publicidade - conforme Provimento CGJ/SP 41/12 e o Provimento CNJ 37/14.
A lei 14.382/22, de maneira ampliativa e objetivando normatizar a materialização da união estável, introduziu o art. 94-A na Lei de Registros Públicos, tipificando três instrumentos declaratórios de união estável, igualmente válidos e de pronta eficácia (independentemente de qualquer regramento administrativo complementar, que ainda que bem-vindo não é um condicionante para utilização): sentença judicial, escritura pública e o termo declaratório.
Repise-se que a união estável não prescinde do instrumento jurídico de materialização para alcance dos seus efeitos legais, entretanto há notório benefício aos companheiros, bem como aos terceiros, na confecção de documento com tal propósito, que pode ou ser não registrado no Registro Civil das Pessoas Naturais (como a própria confecção do instrumento, também é facultativo o registro, mas importantíssimo para fins de publicidade e amplo conhecimento de terceiros).
Dentre as três figuras de instrumentalização da união estável, incluídas no art. 94-A da Lei de Registros Públicos, a única ainda não experimentada por muitos na prática e que merece destaque, no presente trabalho, é o inovador termo declaratório confeccionado perante o Registrador Civil das Pessoas Naturais.
Em linhas gerais, conceitua-se o termo declaratório de união estável confeccionado pelo Registrador Civil das Pessoas Naturais como o instrumento de concentração da declaração de vontade, livre e consciente, dos companheiros, no tocante a existência de união amorosa pública, continua, estável e com o objetivo de constituir família, facultando-se o acréscimo de incrementos de funcionamento do já estabelecido núcleo familiar - nos termos e direitos conferidos pela legislação civil.
Dentre os diversos aspectos relevantes sobre o termo, dois são os temas que aqui merecem maior atenção: 1. O procedimento para instrumentalizar o termo declaratório; 2. O conteúdo jurídico que pode ser mencionado no termo declaratório.
Vale mencionar que o art. 94-A da Lei de Registros Públicos não impôs a presença e assessoramento do advogado para solicitação de confecção do termo declaratório pelos companheiros perante o Registro Civil. Ainda que recomendável a consulta prévia à um profissional de confiança dos interessados, a ausência de obrigatoriedade não é uma anomalia ao sistema extrajudicial, pois diversos são os procedimentos administrativos que não exigem o advogado - como por exemplo: pedido de retificação de nome, pedido de consolidação de propriedade resolúvel na alienação fiduciária em garantia; pedido de retificação imobiliária; pedido de habilitação de casamento, pedido de registro ou averbação de título no Registro de Imóveis; pedido de suscitação de dúvida ou mesmo a impugnação na dúvida; tampouco a maioria dos atos notariais exigem em caráter obrigatório o advogado (exemplificativamente, como: para lavratura de ata notarial, testamento, compra e venda, permuta, doação e etc.)
Reforça-se ainda que o ato de publicidade do termo declaratório com o ingresso no Livro E do RCPN da Sede ou do 1º Subdistrito da Comarca em que os companheiros têm sua residência não é automático ou obrigatório, mas recomenda-se fortemente que seja realizado, pois é exatamente da publicidade do termo que terceiros poderão ter conhecimento da união estável e dos contornos jurídicos entabulados. A título exemplificativa, vale trazer à colação alguns julgados emblemáticos do E. Superior Tribunal de Justiça no tocante as implicações jurídicas da falta de publicidade da existência de uma união estável:
CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE TERCEIRO. UNIÃO ESTÁVEL. INSTRUMENTO PARTICULAR ESCRITO. REGIME DE SEPARAÇÃO TOTAL DE BENS. VALIDADE INTER PARTES. PRODUÇÃO DE EFEITOS EXISTENCIAIS E PATRIMONIAIS APENAS EM RELAÇÃO AOS CONVIVENTES. PROJEÇÃO DE EFEITOS A TERCEIROS, INCLUSIVE CREDORES DE UM DOS CONVIVENTES. OPONIBILIDADE ERGA OMNES. INOCORRÊNCIA. REGISTRO REALIZADO SOMENTE APÓS O REQUERIMENTO E O DEFERIMENTO DA PENHORA DE BENS MÓVEIS QUE GUARNECIAM O IMÓVEL DOS CONVIVENTES. POSSIBILIDADE. REGISTRO EM CARTÓRIO REALIZADO ANTERIORMENTE À EFETIVAÇÃO DA PENHORA. IRRELEVÂNCIA. INOPONIBILIDADE AO CREDOR DO CONVIVENTE NO MOMENTO DO DEFERIMENTO DA MEDIDA CONSTRITIVA. 1- Ação de embargos de terceiro proposta em 12/2/19. Recurso especial interposto em 22/10/21 e atribuído à Relatora em 6/4/22. 2- O propósito recursal é definir se é válida a penhora, requerida e deferida em junho/2018 e efetivada em agosto/2018, de bens móveis titularizados exclusivamente pela convivente, para a satisfação de dívida judicial do outro convivente, na hipótese em que a união estável, objeto de instrumento particular firmado em abril/14, mas apenas levado a registro em julho/18, previa o regime da separação total de bens. 3- A existência de contrato escrito é o único requisito legal para que haja a fixação ou a modificação, sempre com efeitos prospectivos, do regime de bens aplicável a união estável, de modo que o instrumento particular celebrado pelas partes produz efeitos limitados aos aspectos existenciais e patrimoniais da própria relação familiar por eles mantida. 4- Significa dizer que o instrumento particular, independentemente de qualquer espécie de publicidade e registro, terá eficácia e vinculará as partes e será relevante para definir questões interna corporis da união estável, como a sua data de início, a indicação sobre quais bens deverão ou não ser partilhados, a existência de prole concebida na constância do vínculo e a sucessão, dentre outras. 5- O contrato escrito na forma de simples instrumento particular e de conhecimento limitado aos contratantes, todavia, é incapaz de projetar efeitos para fora da relação jurídica mantida pelos conviventes, em especial em relação a terceiros porventura credores de um deles, exigindo-se, para que se possa examinar a eventual oponibilidade erga omnes, no mínimo, a prévia existência de registro e publicidade aos terceiros. 6- Na hipótese, a penhora que recaiu sobre os bens móveis supostamente titularizados com exclusividade pela embargante foi requerida pela credora e deferida pelo juiz em junho/18, a fim de satisfazer dívida contraída pelo convivente da embargante, ao passo que o registro em cartório do instrumento particular de união estável com cláusula de separação total de bens somente veio a ser efetivado em julho/18. 7- O fato de a penhora ter sido efetivada apenas em agosto/18 é irrelevante, na medida em que, quando deferida a medida constritiva, o instrumento particular celebrado entre a embargante e o devedor era de ciência exclusiva dos conviventes, não projetava efeitos externos à união estável e, bem assim, era inoponível à credora. 8- Recurso especial conhecido e não-provido, com majoração de honorários. (REsp 1.988.228/PR, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 7/6/22, DJe de 13/6/22.)
E
AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. NEGÓCIO JURÍDICO. COMPRA E VENDA. UNIÃO ESTÁVEL. OUTORGA UXÓRIA. IMPRESCINDÍVEL PUBLICIDADE OU CARACTERIZAÇÃO DE MA-FÉ. 1. Ausente incursão na seara fático-probatória ao analisar o recurso especial, pois foi alcançada a conclusão de que o aresto recorrido deveria ter sido reformado com base nas afirmações constantes no próprio acórdão impugnado pelo recurso especial, visto que a realidade dos autos retratada no aresto recorrido estava em dissonância com o entendimento que esta Corte. 2. Necessidade de autorização de ambos os companheiros para a validade da alienação de bens imóveis adquiridos no curso da união estável, tendo em vista que o regime da comunhão parcial de bens foi estendido à união estável pelo art. 1.725 do CCB, além do reconhecimento da existência de condomínio natural entre os conviventes sobre os bens adquiridos na constância da união, na forma do art. 5º da lei 9.278/96. 3. A invalidação de atos de alienação praticado por algum dos conviventes, sem autorização do outro, depende de constatar se existia: (a) publicidade conferida a união estável, mediante a averbação de contrato de convivência ou da decisão declaratória da existência união estável no Ofício do Registro de Imóveis em que cadastrados os bens comuns, a época em que firmado o ato de alienação, ou (b) demonstração de má-fé do adquirente. 4. No caso, nem foi apontada a configuração de má-fé, nem existia qualquer publicidade formalizada da união estável na época em que firmado o contrato de alienação, de modo que não pode ser invalidado com base na ausência de outorga da convivente, ora recorrida. 5. Agravo interno não provido. (AgInt no REsp 1.706.745/MG, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 24/11/20, DJe de 17/3/21.)
A novidade legislativa é extremamente bem-vinda, busca facilitar e democratizar ao extremo a materialização da declaração de união estável, utilizando-se da capilaridade do serviço extrajudicial - presente em todos os Municípios brasileiros - e da reconhecida confiança no valoroso serviço técnico-jurídico dos delegatários.
Oxalá a sensibilidade do Legislador em simplificar a instrumentalização da união estável e o próprio registro no Livro E do RCPN sejam rapidamente aplicados em sua inteireza pelos Registradores de Pessoas Naturais.
*Alberto Gentil de Almeida Pedroso é juiz de Direito do Tribunal de Justiça de São Paulo, foi juiz Assessor da Corregedoria Geral da Justiça, juiz de Direito integrante da 2ª Turma Cível do Colégio Recursal da Comarca de Santo André. É especialista e Mestre em Direito, professor da Escola Paulista da Magistratura nos cursos de pós-graduação em Direito Civil, Direito Processual Civil e Registros Públicos. É professor e coordenador do Curso Fórum e autor de diversas obras jurídicas, notadamente sobre registros públicos.
Fonte: Migalhas