Prática relativamente corriqueira, o ato de firmar contratos — ou lavrar escrituras públicas — estabelecendo regime de bens para uniões estáveis com intenção de produção de efeitos ex tunc tem trazido interessantes discussões ao Superior Tribunal de Justiça. Em interessante voto sobre o tema, a Min. Nancy Andrighi debruçou-se sobre a questão, especialmente sob a luz da legislação aplicável, i.e., o art. 1.725/CC, que prescreve que “na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens”. Conforme argumentação da Ministra, “conquanto realmente não haja a exigência legal de formalização da união estável como pressuposto de sua existência [...] não se pode olvidar que a ausência dessa formalidade poderá, eventualmente, gerar consequências aos efeitos patrimoniais da relação por eles mantida, sobretudo quanto às matérias que o legislador, subtraindo parte dessa autonomia, entendeu por bem disciplinar”[1].
Ou seja, sob a perspectiva dos planos do negócio jurídico[2], a união estável, uma vez existente, não depende da pactuação expressa de uma modalidade de regime de bens para que passe pelo plano da validade e atinja a sua plena eficácia. Isso porque a legislação já determinou tal questão, atribuindo um regime específico no caso de omissão. Significa dizer: uma união estável que existe sem regime de bens pactuados expressamente recebe, por força do ordenamento jurídico, um regime de comunhão de bens, a saber, o regime de comunhão parcial. Disso se segue que a união é existente, válida e eficaz, exatamente nesses termos. É um negócio jurídico perfectibilizado, portanto. Daí por que as partes não podem, ex post facto, revogar tal negócio jurídico perfectibilizado, atribuindo outro regime de bens, como se ele não possuísse um.
Novamente nesse sentido, vale citar a Min. Nancy Andrighi, para quem “a ausência de contrato escrito convivencial não pode ser equiparada à ausência de regime de bens na união estável não formalizada, como se houvesse somente uma lacuna suscetível de ulterior declaração com eficácia retroativa [...] a formalização posterior da união estável em que os conviventes dispõem sobre o regime de bens, adotando regime distinto do normativamente previsto para a hipótese de ausência de disposição, equivale à modificação do regime de bens na constância do casamento que, na esteira da uníssona jurisprudência desta Corte, produz efeitos ex nunc”.[3] Parece certeira a argumentação da Ministra, especialmente porque ao se admitir o contrário ter-se-ia uma série de problemas, inclusive com a possibilidade de que eventualmente credores sejam fraudados, bastando um reconhecimento de regime de separação total com efeitos ex tunc para fraudar a penhorabilidade da meação, que é garantida pelo art. 790, IV do CPC.
O problema também encontra discussão na Quarta Turma do STJ[4], que vai no sentido de autorizar os efeitos ex tunc, mas somente se observados os requisitos do art. 1.639, § 2º, CC, que prescreve no caput, que “é lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver”. No § 2º, consta a previsão de que “é admissível alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros”.
Tudo isso cria a seguinte situação, organizada nas seguintes premissas: (i) não é possível a alteração do regime de bens, com efeitos ex tunc, por contrato particular ou escritura pública (ressalvando o entendimento da Quarta Turma de que, por autorização judicial, isso seria possível), dado que a união estável estava perfectibilizada e com regime próprio, atribuído por lei; (ii) se o contrato ou escritura firmam um novo regime com efeitos ex tunc, em verdade estão, então, alterando um regime de bens que já existia de forma pretérita; (iii) ocorre que a alteração de regime de bens da união estável precisa se dar pela forma prescrita em lei (art. 1.639, § 2º, CC), i.e., mediante autorização judicial; (iv) logo, pode se concluir que o contrato ou a escritura que pactuam um regime de bens para uma união que já existia, visando, inclusive, efeitos ex tunc, é um negócio jurídico nulo, uma vez que não respeita a forma prescrita em lei (art. 104 , III e 166, IV, CC).
Sendo nulo — e aqui pode surgir alguma dúvida — o negócio firmado não possui eficácia, (art. 169, CC) de modo que a união estável segue exatamente nos termos que vinha ocorrendo até então, ou seja, de regra, pelo regime de comunhão parcial. Com isso, o ato não poderia nem mesmo alterar o regime com efeitos ex nunc. A lei exige a forma judicial justamente para que, nos casos de alteração de comunhão parcial ou universal para a separação total de bens, haja a efetiva partilha dos bens, desfazendo a meação constituída na constância da união estável ou do casamento. Daí por que se trata de negócio jurídico nulo, de forma que não pode gerar qualquer eficácia.
Não se desconsidera que a união estável, diferentemente do casamento, não raro tem pontos obscuros como marco inicial de sua existência. Podem ocorrer situações em que há a elaboração de uma escritura instituindo um regime de bens de uma relação que, talvez, já pudesse ser considerada como consolidada. Nesses casos, a casuística se impõe e a avaliação dos fatos dirá sobre a validade do negócio jurídico. Mas nos casos em que há um contrato (ou escritura pública) reconhecendo uma união estável duradoura e procurando — justamente por isso — alterar (ainda que o documento procure fazer crer que estaria meramente instituindo) o regime que lhe precedia, não restam dúvidas da nulidade do negócio jurídico, a impossibilidade tanto de efeitos ex tunc como ex nunc e, ipso facto, a manutenção do regime de bens anterior.
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[1] REsp n. 1.845.416/MS, rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, rel. para acórdão Min. Nancy Andrighi, 3.ª T., j. em 17.8.2021, DJe 24.8.2021.
[2] Sobre a discussão de ser o casamento (e a união estável) um negócio jurídico ou não, diz Junqueira de Azevedo: “Há outros negócios, ainda contratos, em que um órgão de classe fixa a maior parte das cláusulas (por exemplo, através de contratos coletivos de trabalho) e, finalmente, há negócios, já não contratos, em que é a própria lei que determina o conteúdo do negócio, como ocorre no casamento. Está claro que, a fim de manter a coerência, na última hipótese, em que as partes nada fixam do conteúdo, não poderão os autores, que se aferram à definição do negócio pela possibilidade de fixação do seu conteúdo pelo agente, considerar o casamento como negócio jurídico. Realmente, a tese de que o casamento não é negócio jurídico é sustentada por muitos, mas, para levarem sua coerência até o fim, teriam os mesmos autores que dizer que há negócios que são "menos negócios" que outros, porque se percebe perfeitamente que, nos já citados contratos (contratos de adesão, contratos abertos, contratos autorizados, contratos formados com base em convenções coletivas), as partes plasmam menos o seu conteúdo que no contrato tradicional. Neste, ambas as partes, em posições iguais, discutem e fixam, com grande liberdade, todo, ou quase todo, o conteúdo; naqueles, as limitações são sensivelmente maiores. Logo, se é a possibilidade de fixação do conteúdo que dá a "essência" do negócio jurídico, tem-se que concluir que há negócios que são "mais negócios" e negócios que o são "menos" (o que é um absurdo do ponto de vista lógico)” (AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. 4. ed. São Paulo: Saraiva. 2002. p. 135).
[3] REsp n. 1.845.416/MS, rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, rel. para acórdão Min. Nancy Andrighi, 3.ª T., j. em 17.8.2021, DJe 24.8.2021.
[4] “[...] aderindo aos pertinentes fundamentos da Ministra Isabel Gallotti, consigno a possibilidade de cláusula retroativa sobre o regime de bens, em contrato celebrado entre os conviventes, apenas no caso de expressa autorização judicial, nos termos do art. 1.639, § 2º, do CC/2002”. AgInt no AREsp n. 1.631.112/MT, rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, 4.ª T., j. em 26.10.2021, DJe 14.02.2022.
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Abrahan Lincoln Dorea Silva é advogado e mestrando em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP (Largo de São Francisco), com dupla graduação em Direito pela USP e pela Université de Lyon, ex-bolsista da Fapesp e membro da Rede de Direito Civil Contemporâneo.
William Galle Dietrich é advogado, doutorando em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), como bolsista Capes/Proex, membro da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDpro) e membro da Rede de Direito Civil Contemporâneo.
Fonte: ConJur