Recentemente o Supremo Tribunal Federal fixou a tese da possibilidade da penhora do bem de família de fiador de locação comercial em 7 a 4 votos, no julgamento ocorrido em março de 2022, sob o tema de Repercussão Geral 1.127.
O ministro Alexandre de Moraes propôs o entendimento de que a penhora do bem de família não viola o direito à moradia do fiador, pois este oferece seu bem como garantia da dívida de livre e espontânea vontade, consciente dos riscos de eventual inadimplência do devedor principal. Segundo ele, impor restrição à penhora ofenderia os princípios da boa-fé objetiva e livre iniciativa.
Ademais, argumenta que a Lei 8009/90, que trata da impenhorabilidade do bem de família, excepciona o instituto da fiança no artigo 3º, inciso VII, sem que haja distinção entre a garantia dada em fiança comercial ou residencial.
Desta forma, para o relator, a diferença entre as situações do fiador de locação comercial e residencial, em que se admite a penhora do bem neste tipo de contrato apenas, ofende o princípio da isonomia.
Houve divergência do ministro Edson Fachin no sentido de que a penhorabilidade do bem de família feriria a Constituição Federal. Segundo ele, excluir a proteção à moradia do fiador significaria restringir direitos sociais fundamentais, de forma que o direito à moradia deve prevalecer sobre o direito à autonomia contratual e livre iniciativa, os quais podem ser resguardados por outros mecanismos menos gravosos.
No mesmo sentido, a ministra Rosa Weber cita que eventual desestímulo à livre iniciativa decorrente da impenhorabilidade não é suficiente para suplantar o direito constitucional à moradia. Segundo ela, admitir a penhora do único bem do fiador em nome da livre iniciativa resultaria na fragilização da dignidade humana em favor da execução de dívidas. Seguiram este entendimento a ministra Carmem Lúcia e o ministro Carlos Lewandowski.
Em suma, o entendimento assentado pelo STF, a partir de março de 2022, é no sentido da possibilidade da penhora do bem de família do fiador de locação comercial.
A pergunta que se faz é a seguinte: como ficam as decisões proferidas nos processos anteriores à sedimentação do entendimento pelo STF, em sentido contrário a este, ou seja, pela impossibilidade de penhora do bem de família do fiador de locação comercial?
Respeitados os entendimentos contrários, a resposta é: tais decisões são imutáveis, permanecem tais como lavradas.
Esta discussão é relevante porque já se tem notícia de pedidos de reconsideração de decisões outrora proferidas, pela impenhorabilidade, ou então a renovação do pedido, em flagrante tentativa de rediscussão do que já foi decidido e, inclusive, interposição de ação rescisória.
Em primeiro lugar, a impossibilidade de "ressuscitar" o assunto advém da coisa julgada material e formal: aquela decisão formalmente não pode ser desafiada por mais nenhum outro recurso e, materialmente, deve ser aplicada tal como decidida.
Não bastasse a cláusula pétrea da coisa julgada, vejamos teor da súmula 343 STF:
"Não cabe ação rescisória por ofensa à literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais."
A Súmula 343 STF deve ser observada em situação jurídica na qual haja entendimentos diversos sobre o alcance de determinada norma.
Nesta medida, decidiu o STF que o fato de estar o acórdão rescindendo em conflito com o entendimento atual do Supremo a respeito da questão de fundo não implica a procedência do pedido rescisório, pois esta deve ser reservada a situações excepcionais, ante a natureza de cláusula pétrea conferida pela Constituição ao instituto da coisa julgada. Logo, decidiu-se que se deve prestigiar a coisa julgada se, quando formada, o mérito do pedido era questão controvertida nos tribunais do país.
Esta hipótese é justamente o que ora se discute: credores visam se valer do novo entendimento do STF, recentemente sedimentado, para rediscutir a improcedência de seus pedidos de penhora no passado, quando tal questão era polêmica e decidida de acordo com o convencimento motivado do juiz à luz das provas produzidas no processo.
Ou seja, a decisão que se busca modificar não é nula, pois proferida legalmente do ponto de vista formal e material, de acordo com as possibilidades de entendimento que se tinha à época, logo, imutáveis por ação rescisória, tampouco por pedido de reconsideração ou renovação do pedido nos autos.
Não é demais lembrar que o cabimento da ação rescisória se limita às hipóteses listadas no Código de Processo Civil, não sendo a divergência jurisprudencial uma delas.
Em outras palavras, não seria admissível considerar que um acórdão transitado em julgado violou a lei quando ele apenas seguiu a interpretação que existia entre as câmaras julgadoras do próprio Tribunal em que proferido. Logo, impossível justificar esta ação rescisória pela alínea V do artigo 966 CPC.
Ademais, inviável desconsiderar a coisa julgada material mediante a aplicação retroativa de um precedente se em nosso sistema jurídico sequer a lei pode operar retroativamente. Aliás, precedentes judiciais não possuem status supralegal e supraconstitucional.
Concluindo, a segurança jurídica é inerente ao Estado democrático de Direito. Nesta medida, permitir a ofensa à coisa julgada através da rediscussão de casos por motivo de surgimento de nova orientação jurisprudencial sobre o tema teria como consequência a falta de confiabilidade e efetividade das decisões judiciais.
Ademais, se considerarmos que o país ainda caminha no sentido da uniformização da jurisprudência, espírito trazido recentemente no CPC/15, diversas outras decisões das cortes superiores, além da sedimentação do entendimento sobre a penhorabilidade do bem de família de fiador em locação comercial, faria reacender sentenças/acórdãos transitados em julgado pelos tribunais do país.
Por certo, não se busca a sobrecarga do Poder Judiciário, pelo contrário, logo, essencial que se garanta a efetividade da Súmula 343 STF, bem como da cláusula pétrea da coisa julgada, essenciais para seguirmos na construção de um Sistema Judiciário justo, sério e confiável.
Bruna Mirella Fiore Braghetto é especialista em Direito Corporativo e Compliance, pós-graduada em Processo Civil e Direito Civil pela Escola Paulista de Direito, sócia e advogada no escritório Pallotta Martins, palestrante, instrutora in company.
Fonte: ConJur