A Lei nº 14.375/2022 fez diversas alterações na Lei nº 13.988/2020 (Lei da Transação Tributária), dentre as quais podemos destacar 1) o aumento dos limites máximos de desconto e de prazo para pagamento (artigo 11, §2º, II e III); 2) a possibilidade de transação de débitos ainda não inscritos em dívida ativa da União que estejam em contencioso administrativo fiscal (artigo 10-A); 3) a possibilidade de utilização de prejuízo fiscal e base de cálculo negativa (artigo 11, IV e §§1º-A e 7º a 10); e 4) a isenção dos tributos incidentes sobre os descontos concedidos (artigo 11, §12º).
Neste artigo vamos tratar brevemente dos impactos dessas mudanças para as empresas em recuperação judicial (RJ) ou extrajudicial (RE) [1], considerando que sua efetiva implementação ainda depende de regulamentação pela PGFN e pela Receita Federal.
A Lei da Transação Tributária inaugurou — e a experiência prática tem corroborado isso — uma nova relação entre o Fisco e a Insolvência. Além das possibilidades criadas para devedores da União em geral (especialmente atinentes à concessão de descontos e parcelamento com prestações variáveis), a referida Lei conferiu tratamento diferenciado aos devedores insolventes com a presunção de que as respectivas inscrições em dívida ativa da União são irrecuperáveis (requisito para fazer jus a descontos — artigo 11, §5º, da referida Lei e artigo 24, III, da Portaria PGFN Nº 9.917/2020) e a autorização para que apresentem e/ou recebam proposta de transação individual independentemente da natureza ou montante da dívida (artigo 32 da Portaria PGFN Nº 9.917/2020).
Essas possibilidades foram potencializadas pela Lei nº 14.112/2020 [2], que reformou a Lei nº 11.101/2005 (LREF). No que se refere especificamente à transação [3], a citada Lei, ao introduzir o artigo 10-C da Lei nº 10.522/2002, dentre outras medidas: 1) ampliou para 120 meses o prazo máximo do parcelamento; 2) ampliou para 70% (setenta por cento) o limite máximo para descontos; 3) previu que a proposta de transação individual suspende, em regra, as execuções fiscais por ela abrangidas; e 4) previu condições diferenciadas para evitar a rescisão da transação por inadimplência de parcelas.
Essas mudanças serviram para equilibrar a relação entre o Fisco e os contribuintes, trazendo maior consensualidade para um ambiente antes extremamente conflituoso, e em pouco tempo já impactaram positivamente os índices de regularidade fiscal das recuperandas (neste ponto, referimo-nos à RJ). Com efeito, antes das inovações legislativas o percentual era de 8% das dívidas regularizadas, enquanto o das demais empresas era de 32% [4]. Atualmente, esse índice já superou os 20%, indicando o acerto das novas possibilidades de negociação entre Fisco e recuperandas.
Essa melhora reflete uma nova postura não apenas do Fisco, mas também das empresas, que entenderam a importância de regularizar seu passivo fiscal a fim de alcançar uma verdadeira recuperação de sua atividade, e de alguns Tribunais de Justiça, que passaram a exigir a comprovação da regularidade fiscal (pelo menos no âmbito federal) para concessão da recuperação judicial [5]. No Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, ambas Câmaras Empresariais já possuem diversos julgados em que foi determinada a apresentação da CND. Decisões semelhantes também foram proferidas pelos TJs do Ceará, Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul, Paraná e Rio Grande do Sul, além de decisões monocráticas de juízes ou desembargadores em diversos outros Estados.
São diversos os casos de recuperandas que se encontravam em uma situação bastante complicada em relação ao seu passivo fiscal e que ainda assim alcançaram um acordo bastante satisfatório com o Fisco Federal, como a Abril, a Inepar, a Universidade Cândido Mendes, entre outros (todos os acordos celebrados podem ser encontrados no site da PGFN).
Ademais, todas essas modificações legais e jurisprudenciais impactaram também o andamento das execuções fiscais, que, sobretudo após a desafetação do Tema 987 do STJ, podem ter regular prosseguimento. Somando isso à nova previsão constante do artigo 6º, §7º-B, também inserido pela Lei nº 14.112/2020, os Tribunais vêm permitindo que as execuções fiscais em face de empresas em recuperação judicial continuem tramitando, inclusive com a prática de atos de constrição patrimonial, caso não haja a apresentação de pedido de transação individual ou a regularização dos débitos.
Não obstante, é certo que a consolidação da jurisprudência em relação a esses temas (exigência comprovação da regularidade fiscal para concessão da RJ e possibilidade de prática de atos constritivos ou de expropriação contra recuperandas nas execuções fiscais) trará maior uniformidade nos procedimentos e mais segurança para todos os atores envolvidos nos processos de insolvência (devedores, credores, investidores, administradores judiciais, Fisco e o próprio Poder Judiciário). E as recentes alterações feitas pela Lei nº 14.375/2022 na Lei de Transação Tributária irão contribuir sobremaneira para isso, conforme explicaremos nos próximos parágrafos.
É que, apesar de extremamente vantajosas, as condições previstas no art. 10-C da Lei nº 10.522/2002 somente estão disponíveis para as empresas em RJ, não abarcando, por exemplo, aquelas em RE (instituto bastante fomentado pela reforma realizada pela Lei nº 14.112/2020). E não abrangeu todas as empresas em recuperação judicial, mas somente aquelas que ainda não tenham (ou tivessem, à época) obtido a concessão da recuperação judicial à época da reforma da LREF (artigo 58 da Lei nº 11.101/2005), flexibilizando essa regra apenas na hipótese da regra de transição prevista no artigo 56º, §4º, da Lei nº 14.112/2020, cujo prazo findou em 29/04/2021.
As novidades trazidas pela Lei nº 14.375/2022 enfrentam diretamente esses pontos, ao aproximar os benefícios previstos na Lei de Transação Tributário àqueles trazidos pelo artigo 10-C, em especial ampliando o prazo de parcelamento para 120 meses e o desconto máximo para 65% do total da dívida. Lembremos que até então o prazo máximo era de 84 meses e o desconto de 50%, de forma que o alargamento dos benefícios foi bastante relevante.
Com isso, permite-se que mesmo as recuperandas que não se valeram do período de transição citado acima possam obter benefícios generosos para a regularização de seu passivo fiscal, além de estender essas possibilidades para as empresas em RE.
Por sua vez, a permissão para que sejam transacionados também os débitos em contencioso administrativo fiscal representa um importante avanço que diminui os custos de transação e traz maior segurança jurídica para todos os participantes do processo de insolvência, pois autoriza que as empresas em dificuldade avaliem globalmente suas dívidas com o Fisco e busquem uma solução que envolva tanto os débitos que estão na Receita Federal quanto aqueles que estão na PGFN.
Dessa maneira, evita-se situações que eram comuns, em que os contribuintes apenas regularizavam as dívidas perante a PGFN, mas ainda tinham passivos relevantes em contencioso administrativo, o que constituía um risco para o Fisco e também para os demais credores da empresa em recuperação e seus investidores.
Uma solução integral do passivo fiscal autoriza que a recuperanda vire essa página de uma vez e retome de fato sua conformidade fiscal.
Já a possibilidade de transformar o prejuízo fiscal e a base de cálculo negativa da CSLL em créditos passíveis de utilização para quitação de até 70% do saldo remanescente da transação após a incidência dos descontos apresenta especial relevância para empresas em RJ ou RE que operam no regime do lucro real, as quais costumam possuir relevante estoque dessa natureza, não utilizado em razão da trava de 30% na legislação tributária. A medida poderá desafogar o fluxo de caixa dessas empresas, viabilizando a realização da transação em casos antes inviáveis.
Não obstante, é certo que a regulamentação a ser editada por PGFN e Receita Federal irá ainda discriminar as hipóteses em que poderão ser utilizados esses créditos de prejuízo fiscal e base de cálculo negativa, bem como os requisitos para tanto. Isso porque o §1º-A do artigo 11 da Lei da Transação Tributária dispõe expressamente que essa possibilidade de pagamento será "adotada em casos excepcionais para a melhor e efetiva composição do plano de regularização", além de ser "de critério exclusivo da (...) Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, para créditos inscritos em dívida ativa da União".
Por fim, a isenção dos tributos que incidem sobre os descontos concedidos na transação, embora já prevista para as empresas em RJ e não restrita aos descontos decorrentes da transação (artigo 50-A da Lei nº 11.101/2005), limitava-se ao PIS/Cofins (quanto ao IRPJ/CSLL, há mero afastamento da já mencionada trava de 30%) e não abrangia as empresas em RE, de forma que, especificamente para a tributação dos descontos decorrentes da transação, houve significativa extensão dos benefícios.
Constata-se, portanto, que as novas medidas implementadas pelo legislador vieram para consolidar o sucesso que a transação tributária já vem alcançando nos processos de insolvência, cumprindo sua finalidade de viabilizar a superação da situação transitória de crise econômico-financeira do contribuinte em recuperação judicial ou extrajudicial, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica, além de assegurar que a cobrança dos créditos inscritos em dívida ativa seja realizada de forma a equilibrar os interesses da União e dos contribuintes.
Diante disso, acreditamos que o Legislativo e o Executivo fizeram sua parte para a evolução da relação entre o Fisco e a Insolvência, cabendo agora ao Judiciário dar concretude à essas mudanças e efetivamente virar a página do passado, superando de uma vez por todas os entendimentos antigos e confirmando a efetividade das novas previsões legais.
Notas
[1] Embora as alterações promovidas pela Lei nº 14.375/2022 também beneficiem, dentre outros, as massas falidas, não as examinaremos neste artigo, na medida em que, nesse caso, a transação sofre restrições adicionais (artigo 40-A da Portaria PGFN Nº 9.917/2020).
[2] A referida Lei também aprimorou o parcelamento específico existente para as empresas em recuperação judicial (artigos 10-A e 10-B da Lei nº 10.522/2002, que cumprem, no âmbito federal, o disposto nos arts. 155-A, §3º, do CTN e 68 da Lei nº 11.101/2005).
[3] A Lei em tela trouxe outras importantes alterações para a relação entre Fisco e os processos de insolvência, a exemplo do acréscimo dos artigos 6º-B, 50, XVIII e §§4º e 5º, 50-A e 73, V e VI, todos à Lei nº 11.101/2005.
[4] Conforme dados internos da PGFN, que foram apresentados em petição perante o STJ na discussão do Tema 987 de recursos repetitivos.
[5] Tratamos do cenário encontrado antes e depois da reforma nos seguintes artigos: aqui e aqui.
Autores:
Filipe Aguiar de Barros é procurador da Fazenda Nacional, procurador-chefe da Defesa na 5ª Região, mestrando em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP), ex-coordenador-Geral de Representação Judicial da PGFN e assessor da Secretaria Especial de Fazenda do Ministério da Economia.
Gabriel Augusto Luís Teixeira Gonçalves é procurador da Fazenda Nacional e coordenador do Núcleo de Falências e Recuperações Judiciais da PGFN em São Paulo/SP.
Fonte: ConJur