A incorporação imobiliária tem correlação com a 'venda de sonhos', em que grande parte dos brasileiros já efetivaram suas moradias por intermédio de tal instituto.
A incorporação imobiliária tem correlação com a 'venda de sonhos', em que grande parte dos brasileiros já efetivaram suas moradias por intermédio de tal instituto. Para o parágrafo único do artigo 28 da ei 4.591/64, a incorporação imobiliária é "[...] promover e realizar a construção, para alienação total ou parcial, de edificações ou conjunto de edificações compostas de unidades autônomas".
Para assegurar tais direitos e obrigações relacionadas às incorporações imobiliárias temos a serventia extrajudicial de Registro de Imóveis, delegação do Poder Público efetivada a particular aprovado em concurso de provas e títulos, tornando-se o ponto fulcral no sentido de assegurar que todas as regras da lei sejam efetivamente observadas pelas partes, fundamentando essencialmente a legalidade.
Deveras, Afrânio de Carvalho assegura que o princípio da legalidade:
"[...] A exemplo do Direito Alemão, o Direito Brasileiro adota o princípio de legalidade ou legitimidade, em virtude do qual a validade da inscrição depende da validade do negócio jurídico que lhe dá origem e da faculdade de disposição do alienante." (CARVALHO, Afrânio de. Registro de Imóveis. Rio de Janeiro, Forense, 1977, p. 249)
E no sentido de garantir a essência do Registro de Imóveis há de se assegurar a segurança jurídica dos atos registráveis e averbáveis no fólio real, através de regramentos claros e sempre baseados na legislação correlata:
"[...] A segurança jurídica é a finalidade suprema de toda atividade notarial e registral. Talvez o correto seria chamá-la de mega princípio, pois todos os demais princípios convergem para ela. Ela é a luz que ilumina os demais princípios e não poderá ser confrontada por eles, caso ocorra algum conflito aparente entre os princípios. É a segurança jurídica que garanta estabilidade e proteção aos negócios jurídicos imobiliários". (CASSETARI, Christiano. Registro de Imóveis / Christiano Cassettari, Marcos Costa Salomão; coordenado por Christiano Cassetari. Indaiatuba: Editora Foco, 2022, p. 29)
Neste sentido é que surgiu o patrimônio de afetação relacionado à incorporação imobiliária visando garantir aos adquirentes das unidades imobiliárias autônomas uma moradia, precipuamente após a crise do setor entre as décadas de 1980 e 1990, da qual poucas empresas do setor sobreviveram. Nem mesmo a maior delas, a ENCOL S/A, sobreviveu, abalando seriamente a confiança no setor.
O § 3º do artigo 68 da lei 4.591/64, com a redação da lei 14.382/22 diz:
Assim, para a afetação da incorporação e do patrimônio de afetação, há necessidade de registro perante a serventia extrajudicial de registro de imóveis, para fins de efeito de publicidade ativa "erga omnes", conforme artigo 237-A da Lei 6.015/73, com a redação da Lei 14.382/2022:
Art. 237-A. Após o registro do parcelamento do solo, na modalidade loteamento ou na modalidade desmembramento, e da incorporação imobiliária, de condomínio edilício ou de condomínio de lotes, até que tenha sido averbada a conclusão das obras de infraestrutura ou da construção, as averbações e os registros relativos à pessoa do loteador ou do incorporador ou referentes a quaisquer direitos reais, inclusive de garantias, cessões ou demais negócios jurídicos que envolvam o empreendimento e suas unidades, bem como a própria averbação da conclusão do empreendimento, serão realizados na matrícula de origem do imóvel a ele destinado e replicados, sem custo adicional, em cada uma das matrículas recipiendárias dos lotes ou das unidades autônomas eventualmente abertas.
Houve mudança significativa quanto à cobrança de emolumentos de tais atos, pois se as averbações e registros da incorporação forem relativos aos mesmos atos ou negócio jurídico, serão considerados em ato de registro único, havendo necessidade de que as Consolidações Normativas regulem tal atividade, evitando questionamentos e dúvidas acerca de quais atos são abarcados pela cobrança única.
De qualquer forma, a separação do patrimônio de afetação é essencial para assegurar os direitos dos adquirentes, especialmente quanto aos altos valores investidos na aquisição das unidades, desproporcional às poucas garantias consumeristas e em face da crise econômica vivenciada pelos brasileiros.
A Lei 4.591 de 1964, conhecida como "Lei Caio Mário", estabeleceu o patrimônio de afetação por intermédio de alteração da Lei 10.931/2004, visando evitar situações prejudiciais aos interesses dos adquirentes, trazendo a necessidade de segregação patrimonial na sua proteção, apesar de não ter logrado êxito nessa tentativa.
Surgiu, assim, uma nova modalidade de direito real e um sistema tributário específico para garanti-lo, porém, não conseguindo tornar o patrimônio de afetação um elemento obrigatório do contrato de incorporação imobiliária, apesar de sua essencialidade na proteção dos consumidores.
Trata-se de uma universalidade patrimonial separada do restante de uma massa de bens, relacionada à chamada teoria da afetação, tendo com os demais patrimônios separados uma base comum, quanto a pressupostos similares e efeitos.
Apesar de não ser um instituto novo, sua aplicação à incorporação imobiliária tem diferenças, todavia, deve seguir princípios comuns, relacionados à teoria da afetação, como o princípio da taxatividade da afetação, que determina que se é possível a segregação patrimonial nas hipóteses legais.
O patrimônio destacado deve ser dirigido a uma finalidade específica, qual seja, a proteção a uma das partes da relação negocial. No específico caso da incorporação imobiliária, dirige-se à garantia da conclusão das obras, à entrega das unidades imobiliárias autônomas.
A doutrina divide a segregação patrimonial em perfeita e imperfeita, classificação que encontra definições diversas. A afetação relacionada à incorporação imobiliária é uma separação patrimonial imperfeita, pois os adquirentes poderão perseguir os bens do incorporador se forem insuficientes os bens afetados.
O patrimônio de afetação na incorporação imobiliária é uma separação patrimonial voltada a proteger a incorporação contra o comprometimento patrimonial do incorporador, regulamentado pela Lei 4591/64. Esse destacamento patrimonial compreende direitos sob condições resolutivas.
Os bens e valores constituem o patrimônio de afetação, vinculando-se a assegurar a conclusão da obra e a entrega das unidades aos adquirentes. É possível, todavia, reinvestir tais valores para esse objetivo. Torna-se, contudo, incomunicável em relação ao patrimônio do próprio incorporador.
Esses bens restam protegidos da atuação do próprio incorporador, não prejudicando, no entanto, a possibilidade de que gera rendimentos ou que seja reinvestido, garantindo os direitos dos adquirentes e a lucratividade do empreendimento.
Não há, assim, um "isolamento patrimonial", inalienabilidade ou indisponibilidade, podendo ser afetado apesar da existência de gravame sobre qualquer dos bens, inclusive nos regimes negociais de empreitada e de construção. Pode, nesse sentido, incluir rendimentos percebidos no decorrer das vendas.
Além de declarado, assinado pelo incorporador e pelos adquirentes e, eventualmente, por instituição financiadora, deve constar do memorial de incorporação a ser arquivado junto à matrícula da respectiva incorporação, aumentando a segurança dos adquirentes, em face da publicidade e autenticidade no Registro de Imóveis.
Mesmo com a afetação, é possível transmitir a propriedade sobre as unidades imobiliárias e ceder de direitos creditórios decorrentes de sua comercialização, desde que os rendimentos sejam aplicados nos objetivos do empreendimento. Sua criação, apesar de não demandar intervenção notarial, carece de averbação no RI.
É irrelevante a natureza empresarial do incorporador, pois a afetação se volta muito a proteger o investimento dos adquirentes e não exclui a impossibilidade de declaração de falência do incorporador. A gestão do patrimônio pode ser feita por pessoa física ou jurídica, designada por comissão de representantes dos adquirentes.
A separação patrimonial permite e viabiliza a transferência da administração da incorporação aos adquirentes, que devem fazer com que a referida universalidade cumpra seu objetivo precípuo. A nomeação de fiscal, porém, não isenta o incorporador de suas responsabilidades.
Qualquer membro da comissão deve ter acesso à escrita contábil, sob pena de descumprimento do dever de informação do representante. Apesar disso, não se pode exigir do incorporador que limite a utilização do patrimônio para além das finalidades legais, sob pena de comprometer a lucratividade do empreendimento.
Nesse mesmo sentido, os membros da comissão de fiscalização respondem pessoalmente pelos atos praticados em desfavor da segurança do patrimônio de afetação e por sua aplicação para além dos objetivos da incorporação relacionados aos adquirentes das unidades imobiliárias autônomas.
A Lei de Incorporação Imobiliária fixa três possibilidades distintas para a extinção do patrimônio de afetação, no Art. 31-E do Diploma, condicionadas a comprovações documentais específicas, no que tange às questões registrais e naquilo à prova de quitação.
A Lei 14.382 de 2022, trouxe inovações neste ponto do patrimônio de afetação:
(...)
Portanto, perante a serventia de Registro de Imóveis, haverá a extinção integral das obrigações do incorporador através de averbação, no que tange às unidades não negociadas, com emolumentos de averbação sem conteúdo financeiro. Da mesma forma, após a denúncia da incorporação, averbar-se-á o cancelamento do patrimônio de afetação no RI.
Neste viés, apesar da eventual falência, o patrimônio de afetação restará ileso, permanecendo sua aplicabilidade ao objetivo específico de assegurar os direitos dos adquirentes das unidades autônomas. Em todo caso, no entanto, deve passar por averbação na serventia de registro de imóveis.
A importância do patrimônio de afetação é tão relevante que nem mesmo a recuperação judicial prevista na Lei 11.101/2005 poderá atingi-la frontalmente, conforme já decidiu recentemente o Superior Tribunal de Justiça:
"[...] As sociedades de propósito específico que atuam na atividade de incorporação imobiliária e administram patrimônio de afetação estão submetidas a regime de incomunicabilidade, criado pela Lei de Incorporações, incompatível com o da recuperação judicial. Os créditos oriundos dos contratos de alienação das unidades imobiliárias, assim como as obrigações decorrentes da atividade de construção e entrega dos referidos imóveis são insuscetíveis de novação. Ademais, o patrimônio de afetação não pode ser contaminado pelas outras relações jurídicas estabelecidas pelas sociedades do grupo.
(STJ, REsp 1975067/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Boas Cueva, 3a Turma, julgado em 17.05.2022)
Neste vértice, o julgado do STJ deixa claro que outras relações jurídicas não podem, de qualquer forma, intervir negativamente no patrimônio de afetação da incorporação imobiliária efetivada pela sociedade de propósito específico, permanecendo incólumes de eventuais constrições da incorporadora.
A efetivação dos emolumentos e a forma de cobrança perante o Registro de Imóveis ainda dependerá de regulação específica do Conselho Nacional de Justiça e das Corregedorias dos Tribunais de Justiça, contudo, a Lei 14.382/2022 avançou em alguns pontos, procurando viabilizar o princípio da concentração referentes a todos os atos na matrícula de origem do imóvel, facilitando consultas e efetivando o conceito do art. 54 da Lei 13.097/2015, no que tange à segurança dinâmica do imóvel, fomentando a circulação de riquezas e produzindo maior segurança ao terceiro de boa fé.
Neste viés, cada vez mais há destaque para a importância do patrimônio de afetação nas incorporações imobiliárias no país, trazendo maior segurança para os adquirentes e fomentando a pujança do mercado imobiliário, em face da confiança traduzida em tal instituto, especialmente em face do direito fundamental à moradia, denotando que os registradores de imóveis possuem grande responsabilidade quanto à mantença hígida do fólio real.
Veja-se que até mesmo a impenhorabilidade não se efetivará quanto aos bens da incorporação afetados:
"[...] A impenhorabilidade constante do inciso XII do art. 833 do CPC/2015 comporta interpretação extensiva, incidindo sobre todo o patrimônio de afetação destinado à consecução da incorporação imobiliária, a fim de atender o propósito legal consistente na proteção dos direitos dos consumidores atuais e futuros adquirentes das unidades imobiliárias autônomas".
(STJ, 1675481/DF, Relator Min. Marco Aurélio Bellizze, 3a Turma, julgado em 20.04.2021)
Tal fato demonstra a importância cada vez maior do instituto da afetação, bem como de seu cuidado pela serventia extrajudicial de Registro de Imóveis como instituição permanente, essencial ao Estado de Direito e onde se efetiva a publicidade erga omnes de tais atos e negócios jurídicos, relativos à incorporação, controlando e acompanhando todas as transmissões e negociações referentes às unidades atuais e futuras a serem alienadas, assim como a garantia perfectibilizada com o patrimônio de afetação.
A segurança jurídica efetivada com tais atos consectários da serventia extrajudicial de Registro de Imóveis deflui cada vez mais a confiança que o legislador e a sociedade brasileira demonstram a tais delegatários de serviço público, já que o direito à moradia (artigo 6º, caput da CF) reflete, para grande parte dos brasileiros, o mínimo existencial de uma família, convertida em uma unidade imobiliária de uma incorporação imobiliária em que várias gerações por ali terão um verdadeiro lar.
O Estado Democrático de direito se perfectibiliza efetivamente, em conjunto com outros institutos, com a manutenção assegurada da moradia das pessoas, com um lar, um lugar onde estar e permanecer, já que a essência do ser humano se efetiva no local onde passa a maior parte de seu tempo de vida e este, sem dúvida alguma, é garantido essencialmente pela serventia de Registro de Imóveis, através da rigorosa análise de todos os atos e negócios que ali perpassam.
*Robson Martins é doutorando em Direito pela UERJ, mestre em Direito pela UFRJ e especialista em Direito Civil, Notarial e Registral. É professor universitário e procurador da República. Foi promotor de Justiça no Paraná de 1999 a 2002 e técnico da Justiça Federal do Paraná de 1993 a 1999.
Fonte: Migalhas