A identidade e a expressão de gênero, quando retificada, não é constituída pelo Estado. Trata-se de um reconhecimento de direito: é a pessoa trans, como cidadã, no comando da sua vida
O direito a felicidade é um princípio implícito na Carta Constitucional de 1988 e positivado pelo princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento que garante, desde 2018, que as pessoas transgênero requeiram em cartório a retificação de nome e gênero, independentemente de cirurgia de redesignação ou realização de tratamentos hormonais.
É importante deixar claro que a identidade e a expressão de gênero, quando retificada, não é constituída pelo Estado; não é o Estado que determina o gênero e o nome da pessoa transgênero. Trata-se, simplesmente, de um reconhecimento de direito: é o cidadão no comando da sua vida.
A constituição de uma identidade pertence exclusivamente à personalidade da própria pessoa, que, ao assinar o requerimento extrajudicial, manifesta publicamente que o gênero constante em seu registro de nascimento não coincide com a sua identidade auto percebida e vivida.
Trata-se de uma grande vitória da sociedade como um todo, afinal o movimento LGBTQIA+ levanta pautas sociais que enobrecem o diálogo pela educação, conscientização, resistência na luta por direitos, respeito e representatividade, entre inúmeros outros benefícios que seria impossível tratar sem lugar de fala.
No entanto, como advogada especialista em registros públicos, posso garantir que o reconhecimento do direito para fins de cidadania vai muito além dos limites individuais das pessoas acolhidas pelo regramento, o qual garante sua identidade e expressão de gênero.
Qualquer cartório de registro civil pode receber a documentação e encaminhar, de forma totalmente digital, para a serventia onde foi lavrado o assento de nascimento da pessoa. Mas, de forma geral, a melhor forma de recorrer é diretamente no cartório onde foi lavrada a certidão de nascimento do indivíduo.
O custo a ser pago para o Registro Civil de Pessoas Naturais na cidade de São Paulo para fazer a retificação de nome e gênero é de R$ 162,74 (cento e sessenta e dois reais e setenta e quatro centavos). Caso o solicitante prefira enviar a documentação por outra serventia, o valor a ser pago será dobrado, pois ambos os cartórios serão responsáveis por qualificar o requerimento e a documentação.
Além deste valor, o requerente precisará apresentar certidões de protesto do local de residência dos últimos 5 anos. A cidade de São Paulo conta com dez cartórios de protestos, por exemplo, portanto seriam dez certidões ao custo de R$ 15,80 (quinze reais e oitenta centavos) cada. O que ocorre é que cada cidade tem um número de cartório de protestos diferente, e o valor das certidões e da retificação pode mudar dependendo da alíquota de ISS aplicado ao município.
O procedimento requer que todos os documentos pessoais, inclusive passaporte (se houver) sejam descritos e apresentados em cópia. Os documentos a serem apresentados são os seguintes:
Não é possível alterar o sobrenome no mesmo procedimento. O provimento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) 73/2018 visa, exclusivamente, a retificação de prenome e gênero, baseado no artigo 58 da lei 6.015, conforme decidido na ADI 4.275, fundamentado pela dignidade da pessoa humana.
Não cabe ao Cartório, por qualquer dos seus prepostos, questionar os motivos ou solicitar qualquer prova, seja médica, psicossocial ou documental que comprove o gênero com o qual a pessoa transgênero se identifica. Nenhuma informação sobre a retificação de nome e gênero deve constar em certidões, nem tão pouco o nome e o gênero alterados, salvo por solicitação da própria pessoa ou por determinação judicial. Nesta situação, deverá constar todo o conteúdo registral.
Após a emissão da certidão retificada, o solicitante deve, imediatamente, providenciar a alteração nos demais registros de documentos pessoais que direta ou indiretamente tenham relação com a sua pessoa. No entanto, caso tenha filhos, a averbação da certidão de nascimento destes dependerá de concordância de ambos os pais ou dos filhos, se maiores de 18 anos.
A questão da retificação de nome e gênero não se encerra com o cumprimento da lei. Existe um universo de questões legais, sociais e de saúde pública envolvendo gênero que se desencadeiam a partir do reconhecimento da cidadania da pessoa trans. Como exemplo, podemos refletir sobre questões previdenciárias, a idade mínima para se aposentar, laços familiares anteriores à retificação, responsabilidades e direitos que envolvam terceiros, e outras questões sobre as quais a sociedade precisa evoluir para que exista equidade de gênero.
A questão da parentalidade anterior a mudança de nome e gênero envolve o direito de família, afinal um filho que nasceu em uma unidade familiar homem e mulher pode ter retificado o seu registro para uma unidade familiar onde os dois genitores tenham o mesmo sexo, e mesmo que o provimento do CNJ preveja que precisa haver concordância de ambos os genitores, a questão não se encerra com a negativa do outro genitor, afinal, direitos e garantias do menor podem estar em jogo, assim como o próprio exercício da parentalidade.
É impossível exercer o poder parental sem o registro civil atualizado do menor, desta forma a tríade fica entre a vontade do antigo cônjuge que se mostra intolerante, a segurança e os direitos do menor que tem os dois genitores vivos, presentes e dispostos a compartilhar os direitos e deveres como pais e mães, independente de seus nomes e gêneros, e o direito à autodeterminação da pessoa trans.
Uma grande conquista da pessoa trans foi a nova categorização pela OMS (Organização Mundial de Saúde) da transexualidade, que antes era considerada doença mental e, desde 2019, passou a ocupar o rol da “Saúde sexual”, classificada como “incongruência de gênero”.
A manutenção da transexualidade no rol da OMS garante o acesso às intervenções como cirurgias e terapias, cobertas pelo SUS (Sistema Único de Saúde), para aqueles que assim precisem. No entanto, após a decisão do Supremo Tribunal Federal, ninguém mais precisa se submeter a cirurgia de redesignação ou tratamentos hormonais, se não for de sua livre vontade, para ter direito a sua personalidade, incluindo o nome e o gênero com o qual se identifica.
*Daniela Freitas Gentil é advogada especialista em serventia extrajudicial.
Fonte: Exame