Está na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF) o julgamento de Recurso Extraordinário nº 1.167.478/RJ, tema de Repercussão Geral, que decidirá se o instituto da separação judicial ainda existe no Brasil. Esta decisão não pode deixar de considerar aspectos históricos e seu contexto em um Estado laico.
Todas as Constituições brasileiras diziam que o casamento era indissolúvel.
A saída que existia para driblar esta proibição era o desquite: as pessoas se separavam, cessavam os deveres conjugais, a comunicabilidade patrimonial, mas as pessoas desquitadas não podiam casar novamente.
Claro que de nada adiantaram as reiteradas tentativas de manter as pessoas unidas até que a morte os separasse, sob a ameaça de que teriam que ficar sozinhos para sempre.
Árdua foi a luta do senador Nelson Carneiro. Buscou por mais de 28 anos o reconhecimento da dissolubilidade do casamento.
Para vencer as resistências, precisou fazer concessões. Transformou o desquite no instituto da separação judicial.
A possibilidade do divórcio direto constava das disposições transitórias da Lei 6.515/1977. Somente quem estivesse separado de fato ou desquitado há mais de cinco anos é que poderia pleitear o divórcio.
Fora disso, a prévia separação era um pré-requisito para a obtenção do divórcio. Mas, para a concessão da separação, era necessário o implemento de prazos e a identificação de culpados. E, para a conversão da separação em divórcio era necessário aguardar o prazo de três anos. E foi a justiça que acabou impondo a redução, e até a exclusão destes prazos. Flexibilizou a necessidade da prova da culpa pela separação e passou a atender, com desenvoltura, a pretensão das partes, de por fim à sociedade conjugal.
Foi tão significativo este movimento que, no ano de 201
0, por iniciativa do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), a Emenda Constitucional nº 66 deu nova redação ao artigo 6ª do artigo 226 da Constituição. E, ao ser admitido o divórcio como a única forma de dissolver o casamento, desapareceu o instituto da separação.
Mas as mudanças provocadas pelos tribunais foram além.
É pacífico em sede doutrinária e jurisprudencial que a separação de fato produz efeitos jurídicos [1]. Faz cessar os deveres conjugais do casamento e a comunicação de bens. Tanto que não há impedimento para os cônjuges constituírem união estável (CC, artigo 1.723, §1º). Assim, de todo descabido assegurar direito sucessório, durante o prazo de dois anos após o fim da convivência (CC, artigo 1.830). Até porque, o falecido poderia estar vivendo em união estável.
Deste modo, a declaração do divórcio é ato meramente certificatória do desenlace do casamento e não desconstitutivo da união. Tanto que o divórcio passou a ser reconhecido como um direito potestativo [2]. Basta o desejo de um do par para sua concessão. Ou seja, se um dos cônjuges pleiteia o divórcio, o juiz o decreta, mesmo que o outro cônjuge se oponha. Por isso tem sido concedido mesmo antes da citação do réu. Até porque não existe pedido de divórcio improcedente. Ou seja, se um não quer, os dois não ficam casados.
Conclusão: a separação judicial somente poderia ser decretada quando formulada de forma consensual. E sua utilidade seria, exclusivamente, permitir a reconciliação do casal. Pelo jeito o casamento prosseguiria como se não tivesse sido rompido. Mas esta possibilidade gera dúvidas sobre a o destino do patrimônio de cada um durante o período em que perdurou a separação. Não se pode olvidar a possibilidade de um ou de ambos terem vivido em união estável neste interim.
Diante deste panorama, cabe questionar: para que serve e a quem interessa a manutenção deste vetusto e inútil instituto?
O fato de não ter sido revisado o Código Civil e, por uma manobra revisionista, ter sido inseridas escassas referências à separação no Código de Processo Civil, não tem o condão de ressuscitar instituto completamente em desuso. Até porque ditas expressões devem ser interpretados simplesmente como separação de fato, separação de corpos ou o fim de uma união estável.
Sob outro giro, um dos maiores sinais de atraso é a tentativa de manter o instituto da culpa pelo fim da conjugalidade. Até porque tal teria espaço somente na separação judicial, não tendo cabimento nem no divórcio e nem na dissolução da união estável. Claramente a possibilidade de trazer para o Judiciário mágoas e ressentimentos em busca de vingança, provoca malévolas consequências, principalmente quando existem filhos. A EC 66/2010 veio exatamente para substituir o discurso da culpa pelo da responsabilidade.
Ressuscitar a separação judicial é abrir a possibilidade de volta a ter dois processos para se dissolver o casamento: processo de separação judicial e depois o de divórcio. Com isso ainda mais se sobrecarregaria a justiça e só traria benefícios ao mercado de trabalho.
Aqueles que têm convicções religiosas sobre a indissolubilidade do casamento, basta não se divorciarem e viverem se penitenciando diante de um casamento falido. Ou simplesmente se separem de fato, promovam a separação e corpos, judicial ou extrajudicial.
Separação judicial significa um limbo, um purgatório pelo qual os casados devem passar antes do divórcio. Não são nem casados e nem divorciados. Podem viver em união estável, mas não podem casar. E precisariam se submeter a um duplo processo, que é sempre desgastante. Ou seja, é um nada, inútil e desnecessário. Manter tal instituto é corroborar e voltar a institutos que não tem mais lugar em um Estado laico, globalizado e contemporâneo.
Como se vê, nada, absolutamente nada justifica a tentativa de emprestar sobrevida à separação, a não ser em nome desta onda de conservadorismo e de retrocesso que vem assolando o país e o mundo. Ora, convicções de ordem religiosa de o casamento ser indissolúvel, não pode servir de justificativa para reinserir no sistema jurídico uma figura para lá de superada.
E a justiça não pode se prestar para emprestar vida ao que já morreu.
[1] STF — RE: 1325126 MG 0145011-62.2019.8.13.0000, relator Alexandre de Moraes, j. 04/06/2021.STJ — REsp: 1960596 AL 2021/0297018-6, relatora ministra Maria Isabel Gallotti, j. 29/11/2021.
STJ — REsp: 1938021 PR 2021/0141325-5, relator ministro Marco Buzzi, j. DJ 28/10/2021.
[2] STJ - AREsp: 2071887 GO 2022/0041895-0, relator ministro Humberto Martins, j. 06/04/2022.
STJ — MS: 28518 SP 2022/0095506-0, relatora ministra Maria Isabel Gallotti, j. 05/04/2022.
STJ — AREsp: 1760551 SP 2020/0240751-8, relator ministro Antonio Carlos Ferreira, j. 16/12/2021.
Maria Berenice Dias vice-presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).
Rodrigo da Cunha Pereira é presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).
Fonte: Conjur