Este artigo trata de uma proposta de decreto legislativo que envolve séria polêmica e possui impactos severos nas contratações públicas brasileiras, especialmente, em setores nos quais o mercado competidor, em sua quase totalidade, somente existe fora do Brasil, como nos casos de produtos para segurança pública e defesa nacional, dispositivos médicos, equipamentos para pesquisas em universidades e outros que, realmente, não possuem ou quase não possuem fabricantes brasileiros, ou seja, do universo das licitações internacionais.
A proposta legislativa visa fechar um mercado que, legalmente, dentro das normas vigentes, a começar pela Lei nº 8.666/93, sempre esteve aberto.
Trata-se do Projeto de Decreto Legislativo de Sustação de Atos Normativos do Poder Executivo — PDL 60/2020, que tramita na Câmara dos Deputados, visando a sustação da Instrução Normativa nº 10, de 10 de fevereiro de 2020, da Secretaria de Gestão da Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia, que altera a Instrução Normativa nº 3, de 26 de abril de 2018, que estabelece regras de funcionamento do Sistema de Cadastramento Unificado de Fornecedores (Sicaf), no âmbito do Poder Executivo Federal.
Segundo a proposta, a norma administrativa teria passado a permitir o cadastro no Sicaf por empresas estrangeiras que não funcionam no país, dando às mesmas o direito de participar de procedimentos licitatórios, além de contratações por dispensa e inexigibilidade de licitação.
A tese encartada no projeto, máxima vênia, é de que a instrução normativa viola a Lei nº 8.666/93, causando um tratamento desigual entre empresas brasileiras e estrangeiras, pois a brasileira precisaria preencher requisitos de habilitação ainda no Sicaf, mas a estrangeira sem funcionamento no Brasil teria a faculdade de atender aos requisitos de habilitação, como a representação no país, a autenticação de documentos, consularização ou apostilamento e com tradução juramentada apenas para fins de assinatura de ata de registro de preços ou contrato.
A estrangeira teria o privilégio de entrar nas licitações eletrônicas apenas com traduções simples, ficando as outras formalidades apenas para a vencedora e para os atos de registro de preços ou contratação.
O projeto, vale concluir, pretende a completa sustação da norma administrativa, na prática, dando fim completo ao Sicaf de estrangeiros, o que é gravíssimo, pois, conforme se verá adiante, Sicaf é direito tanto de empresa brasileira como de empresa estrangeira e os prejuízos ao erário com o fechamento de mercados tão relevantes, em diversas áreas, seriam milionários e de efeitos operacionais severos, no sentido de quebrar a continuidade de atendimento, muito especialmente, de demandas que somente são viabilizadas com fornecedores estrangeiros.
Com toda e devida vênia, há muito a se esclarecer sobre essas matérias.
Em primeiro lugar, não foi uma norma administrativa que veio abrir mercado, porque ele sempre esteve aberto, como já alertado.
Ora, o artigo 37, inciso XXI, da Constituição Federal estabelece que a licitação pública deve assegurar igualdade de condições a todos os concorrentes, portanto, sem distinção entre brasileiros e estrangeiros.
A regra de vedação à discriminação entre empresas e brasileiras sempre esteve no artigo 3º, § 1º, inciso II, da Lei nº 8.666/93.
A regra do artigo 1.134 do Código Civil, que trata de autorização para empresa estrangeira funcionar no Brasil, nunca foi obstáculo para empresas que apenas vem participar de vendas ou mesmo de contratações pontuais no Brasil. Aquela regra geral é clara ao ter seu foco na empresa que pretenda ficar, em caráter de permanência, funcionando no Brasil.
Por tal razão, não ter autorização de funcionamento no Brasil jamais foi obstáculo, na quase totalidade dos casos, para participação em licitações, como se exemplifica das licitações dos enormes e complexos projetos de infraestrutura para Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016 ocorreram com várias licitantes que jamais haviam realizado negócios no Brasil e não tinham aquela autorização do Código Civil. Naqueles casos, dependendo da situação, o que houve foi a autorização para empresas de engenharia e seus profissionais executarem trabalhos no Brasil e por tempo determinado, porque as estrangeiras, na maioria dos casos, não estavam se instalando aqui em caráter permanente.
Além disso, muitos e muitos bilhões de reais durante a pandemia do Covid-19 foram pagos, via licitações ou contratações diretas, para empresas estrangeiras que nunca tiveram autorização de funcionamento no Brasil, mas apenas se ajustaram ao compliance regulatório da Anvisa, para seus produtos.
Mais que isso, há vários anos, bilhões das áreas de segurança pública e defesa nacional são gastos com licitações e contratações diretas com mais e mais empresas estrangeiras que também nunca tiveram autorização de funcionamento no Brasil, porque apenas estão fazendo vendas de armas, veículos blindados e outros produtos que, ainda que regulados e controlados pelo Exército, ao final, conseguem o acesso para as vendas e as importações.
Então, não se sabe a razão para tanta confusão em alegar que as estrangeiras precisariam de autorização de funcionamento no Brasil para que pudessem participar de licitações públicas.
Tanto isso é verdade que o artigo 28, inciso V, da Lei nº 8.666/93, quando exige para habilitação de estrangeira a autorização de funcionamento no país deixa claro que esse requisito é apenas para a estrangeira em funcionamento no Brasil e quando a atividade assim o exigir (hipóteses raríssimas quando se compara a estatística de mercado), de modo que apenas as que tomaram a decisão de ficar funcionando, permanentemente, no Brasil, teriam que fazer aquela prova.
E aqui cabe outro esclarecimento de contexto: Sicaf direto de estrangeiro, que passou a ser acessível desde outubro de 2020, nem utiliza numeração vinculada a CNPJ, ao passo que aquelas estrangeiras que decidem, por opção, permanecer operando no país, com seus nomes e termos de origem, inclusive, as conhecidas terminações INC., L.L.C., LTD., S.R.L, CO., S.A.S. e muitas outras, quando aqui permanecem, efetivamente, essas possuem Sicaf vinculado ao CNPJ de estrangeira autorizada a funcionar no Brasil.
A instrução normativa que, operacionalmente, tornou o Sicaf acessível às empresas estrangeiras, apenas criou o cadastro sem CNPJ, tendo por base o "Data Universal Numbering System", conhecido como "DUNS Number" (de acreditação internacional, pela Dun & Bradstreet) ou "Trader Identification Number", conhecido como "TIN" (de operador econômico autorizado, pela "World Customs Association").
Ora, considerando que, constitucionalmente e legalmente, nunca houve qualquer impedimento às estrangeiras de possuírem registros cadastrais, o Sicaf SEMPRE FOI DIREITO DAS EMPRESAS ESTRANGEIRAS.
Dessa forma, com toda e devida vênia, proposta de decreto legislativo que tenha por objetivo e consequência prática o fim efetivo e completo do Sicaf para estrangeiros é inconstitucional e ilegal. Isso sim é fechar mercado onde a lei não fechou.
Se a discussão avançar para a parte da norma administrativa que permite ao licitante estrangeiro não ter representante legal no Brasil, aquela norma foi alterada e sua redação, em curto período, retornou a ter a figura do representante legal, um simples procurador residente domiciliado no Brasil. Nisso, também, a proposta de decreto legislativo não se sustenta.
Se a discussão for então, a outro nível, pelo qual se alega que brasileiro deve preencher todas as condições dentro do Sicaf e estrangeiro não precisaria, isso não é bem como parece.
É preciso lembrar que Sicaf, como um registro cadastral a evitar repetições de mesmos documentos, tem função apenas de viabilizar acesso e compor documentos, mas o fato é que, tanto para brasileiro como para estrangeiro, Sicaf com os requisitos mais básicos já é suficiente para o acesso ao sistema de pregão, bastando que a empresa, brasileira ou estrangeira, cumpra a sua parte de juntar 100% dos documentos nos campos próprios de cada pregão, se assim o preferir fazer.
Há necessidade de se pensar de forma mais realista e prática: Sicaf ainda que incompleto, para qualquer que seja a empresa, não causará inabilitação de licitante se ele, realmente, tiver o cuidado de completar tudo o que se exige para aquele determinado pregão, por exemplo.
Por fim, se a discussão é relativa ao aparente descompasso da norma administrativa em relação à lei nos aspectos de consularização ou apostilamento e à tradução juramentada, tem-se, talvez, o único ponto de polêmica, mas aqui já merecendo um esclarecimento: se igualdade é tratar os desiguais desigualmente, essa formalização de papéis sempre existiu para os estrangeiros por terem documentos vindos do exterior, mas vale notar que os estrangeiros continuam obrigados a apresentar o documento de idioma original e sua tradução, ainda que inicialmente simples, de modo que a habilitação em termos de atos constitutivos, balanço social, atestações técnicas e outros documentos, continuou existindo.
Em resumo, a cada ponto que se analisa, com todo respeito, o decreto legislativo que visa fechar mercado onde a Constituição Federal e nem lei alguma fechou, vai caindo, por partes.
Resta, assim, o que seria o cerne das alegações de desigualdade: empresas brasileiras teriam que juntar os documentos de habilitação com autenticações de cópias, enquanto as estrangeiras poderiam apresentar suas documentações em sem essas formalidades e em traduções simples, enquanto as formalidades similares, consularização ou apostilamento e tradução juramentada, ficariam apenas para fins de assinatura de ata de registro de preços ou de contrato.
Ora, com a Lei nº 13.726/2018 nem o cidadão precisa mais de cópia autenticada para tratar com entes públicos e os editais de licitação, em sua maioria, já deixaram de exigir cópias autenticadas de licitantes brasileiros, sendo que que, para a realidade de isonomia, considerando que estrangeiro tem perda de tempo em obter documento no exterior, legalizar no exterior e depois traduzir no Brasil, por isso, surgiu a ideia de assegurar a isonomia constitucional para estrangeiros.
Se o passado fosse ressuscitado, pela dificuldade e tempo de obtenção de documentos no exterior, formalização no exterior e tradução juramentada no Brasil, continuaria sendo muito, muito irrisória, a participação de empresas estrangeiras nas licitações no Brasil, como de fato ocorria.
Resumindo, a norma administrativa não dispensou a habilitação de estrangeiros, pois eles precisam apresentar todos os documentos a cada licitação, assim como brasileiros, sendo que ambos conseguem acesso aos pregões mesmo com Sicaf incompleto, bastando apresentar, repita-se, tudo que se exige dentro da licitação.
O ponto de polêmica, que é o afastamento temporal da formalidade sobre os documentos de estrangeiros, é discutível se considerado que os estrangeiros não conseguiriam acesso e isonomia se tivessem que formalizar em tão curtos prazos que se tem nas licitações brasileira, de modo a se ter competitividade e resultado mais vantajoso para a Administração.
No fim, são importantes duas reflexões:
1ª) a norma administrativa que alterou o acesso ao Sicaf de estrangeiros apenas repetiu o afastamento "temporal" da legalização dos documentos de estrangeiros que já constava do artigo 41 do Decreto nº 10.024/2019, que regula o pregão eletrônico (assim, discutível seria o decreto, até hoje vigente); e
2ª) a Lei nº 14.133/2021, nova Lei de Licitações e Contratos, que já está vigente, visando a acessão do Brasil ao Acordo de Compras Públicas — GPA, da Organização Mundial do Comércio, não mais trouxe a formalização prévia de documentos estrangeiros para registro cadastral ou para se ter participação em licitações, salvo única menção a tradução de atestados e documentos hábeis à sua substituição, mas nem sequer mencionando o termo "juramentada".
Muita coisa vem pela frente, a respeito dessas matérias, mas o certo é que a realidade mudou e o acesso de empresas estrangeiras às licitações teve uma revolução a partir do Sicaf, trazendo milhões em economia ao Brasil e sem alegação de quebra de empresas locais.
Jonas Lima é advogado especialista em licitações e contratos, pós-graduado em Direito Público e Compliance Regulatório e sócio de Jonas Lima Sociedade de Advocacia.
Fonte: Conjur