O Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) nº 898.060, em sede de repercussão geral, Tema nº 622, reconheceu a possibilidade da parentalidade se manifestar também pela afetividade, avalizando e reforçando a previsão contida no artigo 1.593 do atual Código Civil, no sentido de que o parentesco é natural ou civil, conforme resultante de consanguinidade ou outra origem.
Na busca da simplificação e da desjudicialização de procedimentos, objetivando a racionalização do volume de demandas submetidas à apreciação do Poder Judiciário, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou o Provimento nº 63/2017, posteriormente alterado pelo Provimento nº 83/2019, que entre as suas disposições prevê a possibilidade de reconhecimento extrajudicial da paternidade ou da maternidade socioafetiva envolvendo pessoas com idade acima de 12 anos.
O Provimento nº 63/2017 aduz que tal reconhecimento extrajudicial se dará perante os oficiais de registro civil das pessoas naturais, sem, entretanto, apontar os critérios a serem observados para apontar quais seriam os registradores competentes para conduzir tal procedimento.
Ante tal omissão, o caminho para definir tal competência deve ser encontrado através da interpretação sistemática das normas processuais específicas.
O procedimento previsto nos mencionados Provimentos publicados pelo CNJ, por analogia, pode ser equiparado a uma produção antecipada extrajudicial de provas, onde o prévio conhecimento e comprovação dos fatos evita o ajuizamento de uma ação judicial.
Assim, os oficiais de registro civil competentes para conduzir os procedimentos de reconhecimento de maternidade ou paternidade socioafetiva, serão tão somente aqueles localizados na área de cobertura (municípios ou distritos) do foro no qual está inserido o Juízo competente para conhecer de eventual ação judicial (§2º, artigo 381 do Código de Processo Civil c/c §1º, artigo 109 da Lei nº 6.015/1973).
Nesta situação, se a pessoa que pretende ter sua filiação socioafetiva reconhecida extrajudicialmente for adolescente, fatalmente atrairá a regra contida no artigo 147, inciso I, da Lei nº 8.069/1990, que, em interpretação moderna, informa que a competência será determinada pelo domicílio da criança ou adolescentes, do local onde esses exercem com regularidade sua convivência familiar e comunitária, ou seja, os registradores competentes serão exclusivamente os sediados na área de cobertura do foro no qual está incluso o distrito ou o município no qual o adolescente está domiciliado.
O princípio do juiz imediato vem estabelecido no artigo 147, I e II, do ECA, segundo o qual o foro competente para apreciar e julgar as medidas, ações e procedimentos que tutelam interesses, direitos e garantias positivados no ECA, é determinado pelo lugar onde a criança ou o adolescente exerce, com regularidade, seu direito à convivência familiar e comunitária. Embora seja compreendido como regra de competência territorial, o artigo 147, I e II, do ECA apresenta natureza de competência absoluta, nomeadamente porque expressa norma cogente que, em certa medida, não admite prorrogação. (STJ. AgInt nos EDcl no CC 160.102/SC, relatora ministra Nancy Aandrighi, Segunda Seção, julgado em 14/5/2019, DJe 16/05/2019).
Noutro giro, caso o cidadão que almeja ter sua filiação socioafetiva reconhecida tenha idade superior a dezoito anos, abrem-se dois caminhos, utilizar o mesmo raciocínio aplicado aos adolescentes, por força da previsão inserta no artigo 1.619 do Código Civil, ou adotar uma interpretação mais flexível, admitindo que o procedimento extrajudicial possa ter curso tanto no domicílio do pretenso filho socioafetivo, como no do suposto pai ou mãe socioafetiva, na hipótese de pluralidade de domicílios, situados em área de jurisdição de foros diversos.
A estrita observância de tais competências é de fundamental relevância para garantir a lisura e validade do procedimento extrajudicial de reconhecimento de parentalidade socioafetiva, uma vez que o Provimento nº 63, em seu artigo 12, determina que em caso de suspeita de fraude, falsidade, má-fé, vício de vontade, simulação ou dúvida sobre a configuração do estado de posse de filho, o registrador fundamentará a recusa, não praticará o ato e encaminhará o pedido ao juiz competente nos termos da legislação local, qual seja, Regimento Interno ou normativo específico expedido pelo respectivo Tribunal Estadual.
Além disso, mais um motivo para que sejam observadas as regras de competência acima expostas, sob pena até mesmo de nulidade do procedimento extrajudicial de reconhecimento, é o fato de os requerentes terem que declarar o desconhecimento da existência de eventual processo judicial em que se discuta a filiação do reconhecendo, sob pena de incorrer em ilícito civil e penal (parágrafo único, artigo 13 do Provimento nº 63), sendo certo que apenas os foros competentes, onde os interessados estão domiciliados, poderão expedir as certidões que atestam a inexistência de ação judicial que tenha por objeto o reconhecimento da parentalidade socioafetiva.
Por fim, cabe lembrar que o fato de a filiação que se busca o reconhecimento ter origem socioafetiva e não biológica, não tem o condão de afastar a incidência das mencionadas regras legais de competência, por força do mandamento presente no §6º, do artigo 227 da Constituição, que determina que os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.
Fernando Salzer é advogado, procurador do estado de Minas Gerais e membro do IBDFam.
Fonte: Conjur