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11/03/2022

Artigo: Pequena nota a uma grande obra: Qualificação registral imobiliária à luz da Crítica Hermenêutica do Direito, de Jéverson Luís Bottega.

Décadas de difusão do pensamento de Dworkin, Wittgenstein, Heidegger, Gadamer, Warat et al na classe jurídica nacional teria que, evidentemente, produzir frutos.

As críticas, construções e modelos produzidos por autores com a visão de mundo dos ora citados, geraram enormes tensões no meio jurídico e teriam que chegar, de modo inexorável, ainda que com atraso, ao Registro de Imóveis.

O positivismo, com todas as suas variações, legalista e cruento, frente às realidades interpessoais, sempre incapaz de ver além de uma linguagem retrógada, se mostrou o arruinador de si mesmo, e finalmente foi reconhecido como aquilo sempre fora: uma limitada (por auto-definição) fórmula de resolver questões ou conflitos humanos; estes, sempre mais pronunciados e complexos, necessitam de instrumentos apropriados, não sendo mais cabível que a sutileza de marreta e bigorna conduza às soluções almejadas pela sociedade aberta. Não, o positivismo não tem a resposta para os dramas jurídicos numa sociedade aberta; sim, há que encontrar outros fundamentos para o agir registral.

Já o jusnaturalismo, coitado, feneceu antes mesmo de se propor como alternativa viável no contexto legalista de nossas escolas, de nossas cartas magnas, leis, portarias, resoluções, provimentos e outras espécimes normativas, tanto menos cotadas, quanto mais exigentes. Para cada José Pedro Galvão de Souza surgiam dez Warat e os seus alternativos.

Diante dessa dualidade, sendo por certo o mundo mais rico e variegado, exigindo mais esforços do intérprete, o jusnaturalismo em terra brasilis ao menos produziu singular obra: a teoria do saber prudencial, tendo por mentor o magistrado paulista Ricardo H. M. Dip. O Des. Dip pontifica que os registros são instituições da comunidade, dotadas de autonomia diante do Estado; os registradores seriam como que juízes do certo, devendo deslindar todos os casos que lhes são apresentados com um saber prudencial. Esse saber prudencial próprio dos registradores, guarda certa analogia com o saber jurisdicional, onde labutam os juízes do justo. Nesse contexto, os registradores são independentes, não temem melindrar o Estado, tampouco se olvidam de interpretar a norma, quando o caso assim estiver a exigir. Estão aí os valiosos princípios registrais, que se contam em dezenas, aptos a formar na cabeça do registrador um norte preciso; tudo isso é amalgamado pelo juízo de prudência, virtude criada e desenvolvida quando se contempla a grandeza do mister qualificador. Tais princípios são evidentes para aqueles que reconhecem a natureza das coisas; basta, portanto, aplicá-los.

E assim ficaríamos na faina diária, equilibrando os conceitos vetustos do legalismo com a obra da prudência. Eis que surge a lume a obra Qualificação Registral Imobiliária à Luz da Crítica Hermenêutica do Direito, do registrador e professor gaúcho Jéverson Luis Bottega, mestre por Coimbra e pela UNISINOS, a nos mostrar que sim, o fenômeno registral também carece de navegação por águas mais profundas.

O autor pretende demonstrar que a verdadeira face da qualificação registral deve residir, num Estado Democrático de Direito, na aplicação dos preceitos hermenêuticos críticos, sendo sem dúvida o registrador antes um agente público, secundado não por normativas estanques ou por uma subjetiva e indefinida sabedoria prudencial (indefinível hoje, diga-se, quando tudo e todos são questionados, num tempo em que as verdades auto-demonstráveis foram como que abandonadas).

O objetivo da obra de dissertação é ousado (porém factível, já que tal desiderato também está presente naquelas duas vertentes antes mencionadas e que granjearam amplo sucesso até o presente): "criar um ferramental necessário para blindar o [desamparado] registrador contra discricionariedades interpretativas".

Utilizando sofisticados conceitos filosóficos, uma profunda pesquisa no que há de mais atual, e tendo como premissa, escopo e amparo uma "Crítica Hermenêutica do Direito", cerebrina construção do jurista Lenio Streck, o autor retrata o Registro de Imóveis como sendo o fundamento imprescindível para a livre circulação dos bens numa sociedade justa. Diante dessa realidade fundante do registro e sua cada vez mais renovada vocação, há que se reconhecer o caráter de atividade estatal dos registros, cuja realização é entregue a profissionais do direito mediante um certame, na genial construção da delegação de serviço púbico (dizemos genial, pois ao mesmo tempo em que há inquestionável ganho em eficiência, de outro lado, o Estado desincumbe-se de despesas de sustento de mais uma imprescindível máquina pública).

Sendo atividade estatal, o que incrivelmente ainda não é consenso, mediante o regime próprio da delegação constitucional (que não desnatura, ao contrário, reafirma esta característica), é inexorável que se chegue a outra conclusão: a qualificação registral é um ato administrativo. Ora, se estamos diante de um ato administrativo, impende que desde já afastemos a discricionariedade e o subjetivismo. Atos administrativos não se coadunam com a falta de fundamentação motivada, nem aceitam decisões conflitantes proferidas pelo mesmo órgão (um "cartório" pode decidir de modo oposto a outro vizinho, deixando o usuário perplexo e desamparado; talvez isso seja explicado pelo fato de serem os registros públicos como que entidades solitárias, como que átomos a procura de uma molécula ... talvez daí o grande apreço por normas de serviços e consolidações normativas).

Para Jéverson L. Bottega é preciso perceber o registro de imóveis frente às características do serviço por ele desenvolvido, afastando os pré-juízos (e pré-conceitos, diga-se) do senso comum. Ao distribuir segurança jurídica, única forma de garantir o preceito constitucional da inviolabilidade do direito à propriedade, resta evidente a preponderância do interesse público; se assim ocorre, não é possível descaracterizar o registrador como agente público.

Mas se é agente público, o registrador não se limita a simples executividade, atuando apenas na técnica administrativa. É um jurista, na concepção de que faz o que é correto diante de um arcabouço normativo. Como artífice de um ato administrativo, não pode atuar de modo discricionário, ausentes quaisquer margens de conveniência e oportunidade. Ao contrário, é sempre vinculado ao Direito.

A Crítica Hermenêutica do Direito é a base teórica que conduz o registrador para além dos atuais modelos de qualificação. Por isso, o autor não transige com raciocínios registrais ad hoc num campo em que se deve buscar a coerência e a previsibilidade. O objetivo da qualificação é a resposta correta. Resposta correta somente se tem quando não se é influenciado por elementos não-jurídicos, como a moral, a política, a economia. Afastar a discricionariedade conduz à correção do agir.

Segundo o autor, as teorias do saber prudencial e da legalidade não consideram a "virada ontológica-linguística que ocorreu na filosofia". A filosofia hermenêutica superará a visão que atribui essência natural às coisas, deixando de lado de uma vez tanto o "livre convencimento", quanto o "prudente critério". Rejeita-se de pronto a construção legalista literal bem como aquela que conduz à criação do sentido discricionário de um texto legal.

Ao defender a qualificação registral em diversas etapas, após e caso superadas as antecedentes, o autor pretende, em suma, municiar o registrador de uma teoria hermenêutica que o capacite na tarefa de evitar discricionariedades.

Jéverson L. Bottega maneja filosofia pesada para negar a existência de essência nas coisas, seja na lei, seja na natureza; seu domínio teórico é abundante; sua contribuição à ciência registral é por demais evidente. Resta agora que os outros grandes da ciência façam o devido contraponto, se houver.

 

Fonte: Migalhas


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