Tema é debatido após Tribunal de Contas de SC considerar gênero do registro civil para calcular aposentadoria
As regras da aposentadoria dos homens e das mulheres sempre tiveram requisitos diferentes. Até 2019, a mulher se aposentava cinco anos mais cedo do que o homem. E depois da reforma da Previdência essa distância diminuiu para três anos.
O tema voltou ao debate depois que o Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina sinalizou que a alteração de gênero, antes do protocolo do benefício previdenciário, pode agilizar a aposentadoria do servidor que se assumiu mulher no registro civil.
A orientação da corte de contas foi destinada a servidor público, mas pode servir de influência aos segurados do INSS, já que ambos têm regras semelhantes. O assunto merecia maior atenção por parte do legislativo. Não há no país uma regulamentação clara e coesa, nem tampouco a legislação previdenciária se adaptou para essa realidade social. Enquanto isso não ocorre, cabe à administração pública, e ao próprio Judiciário, dirimir sobre os conflitos que chegam nesse sentido.
O descompasso entre a demora do ajuste da lei e necessidade de resolver novos casos não é algo positivo. Embora o sistema judicial brasileiro disponha de engrenagem que busque unificar as díspares interpretações sobre o mesmo assunto, isso normalmente demora. Costuma levar anos para que um conflito previdenciário entre na pauta dos ministros do STJ (Superior Tribunal de Justiça) ou do STF (Supremo Tribunal Federal), a fim de que eles possam dar decisão com abrangência nacional. O ideal é o poder legislativo definir os critérios. Até lá, fica essa balbúrdia de decisões conflitantes.
Embora o Supremo, na ação direta de inconstitucionalidade nº 4.275, tenha decidido que a autoidentificação das pessoas é um direito fundamental da personalidade em reconhecer a identidade de gênero, a subjetividade dessa decisão não resolve as regras previdenciárias, em caso por exemplo de o segurado mudar de gênero na véspera de se aposentar.
O tribunal catarinense fundamentou que é preciso respeitar os princípios da dignidade da pessoa humana e da vedação à discriminação e, por isso, o ente público responsável pela análise de processos de aposentadoria não deve obstar aposentadorias de servidores que promoveram a alteração de gênero, atestada pelo documento de registro civil.
A questão é polêmica porque a aposentadoria é calculada a partir de planejamento de anos de contribuições, considerando também a situação de gênero e a expectativa de vida diferente entre homens e mulheres. A alteração posterior do registro civil na véspera de se aposentar, com a mudança de gênero, pode gerar a necessidade de aportes financeiros ou, caso não seja feito, repercutir no equilíbrio financeiro das contas previdenciárias, ameaçando a solvência do regime.
É preciso o quanto antes que haja adaptação das normas previdenciárias para questões relacionadas às mudanças de gênero, como requisito etário, carência, expectativa de vida e método de cálculo. Esses aspectos podem, e devem, ser enfrentados para que as regras para aqueles que desejem mudar de sexo fiquem mais claras e justas.
*Rômulo Saraiva é advogado especialista em Previdência Social, professor, autor do livro Fraude nos Fundos de Pensão e mestre em Direito Previdenciário pela PUC-SP.
Fonte: Folha de São Paulo