O cancelamento do tombamento só tem razão de ser em virtude da criação do instituto do tombamento, instituído por Getúlio Vargas, por meio do famigerado Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937 (DL 25/37), que está em vigor até hoje. Por essa razão, não haveria cancelamento se não houvesse tombamento; aquele, portanto, depende deste, que é o instituto originário.
São poucos os trabalhos historiográficos e/ou jurídicos que abordam o surgimento desse instituto. Mesmo assim, pode-se inferir que o contexto político de criação do destombamento faz parte do conjunto de intervenções empreendidas na seara cultural na "era Vargas", mormente do Estado Novo, objeto de estudo recorrente dos principais teóricos do patrimônio cultural e das políticas culturais.
José Eduardo Ramos Rodrigues, em um dos poucos estudos que fazem menção ao contexto jurídico-político do instituto do cancelamento do tombamento, diz que "esse dispositivo legal é deplorável resquício do autoritarismo centralizador do Estado Novo (...)" e, "em verdade, o destombamento teve origem espúria e casuística, eis que criado especialmente para facilitar a construção da Avenida Presidente Vargas no Rio de Janeiro", ocasião em que "foram destruídas pelo menos duas valiosas igrejas, a de São Pedro dos Clérigos e a do Bom Jesus do Calvário, além de parte dos jardins da Praça da República".
Uma das grandes questões que rondam o instituto do cancelamento do tombamento é sobre sua recepção pela CF/88, uma vez que há dúvidas quanto a isso. Poucos teóricos do Direito se posicionaram sobre o tema, mesmo diante da cada vez mais recorrente aplicação política desse instrumento em âmbito municipal, estadual e, agora mais recentemente, federal.
A norma geral que rege o cancelamento de tombamento é o Decreto-Lei 3.866/41, norma de apenas um artigo, é bom ressaltar. Como já mencionado, há dúvidas quanto à sua recepção pela Constituição Federal de 1988, ao contrário do instituto a ele vinculado, o tombamento, que já foi consagrado no ordenamento jurídico brasileiro, através do caso do Arco do Teles, no Rio de Janeiro. O referido caso foi uma importante oportunidade de afirmação do instituto do tombamento no ordenamento jurídico, focando-se bastante no ainda embrionário princípio da função social da propriedade, não mencionando, entretanto, nada a respeito do Decreto-Lei nº 3.866/41, que estabeleceu o seu cancelamento.
Mas se o DL 3.866/41 não foi objeto de análise no caso do Arco do Teles, que estabeleceu a constitucionalidade do DL 25/37, a dúvida persiste: aquela norma, que prevê o cancelamento do tombamento, por decisão do chefe do Executivo, é constitucional?
José Eduardo Ramos Rodrigues [1] entende que não. Esse jurista defendeu, entre outras argumentações, que a proteção conferida pelo tombamento não é mero interesse da União, mas é um interesse e direito difuso de toda a sociedade brasileira. Nas palavras dele, "o malfadado Decreto-lei nº 3.8666/1941 também é inconstitucional porque, ao viabilizar o destombamento arbitrário de um bem cultural, regularmente tombado, está prejudicando o direito adquirido de toda a sociedade brasileira à sua preservação, novamente ferindo o inciso XXXVI do artigo 5º da Constituição Federal" [2].
Entretanto, a não recepção pela Constituição de 1988 da norma geral que institui o destombamento, refletora de dispositivos similares de leis e decretos estaduais e municipais de proteção do patrimônio, resulta de interpretação literal e canônica de seus requisitos administrativos, sendo necessário para a sua assimilação pelo ordenamento jurídico hodierno interpretação conforme a Constituição.
Portanto, entende-se que o destombamento sobrevive à Constituição de 1988 apenas se o submetemos à interpretação conforme, pois se trata de uma importante ferramenta para salvaguardar outros bens jurídicos que se apresentarem, caso a caso, devendo sua utilização ser norteada por interesse público superveniente — conforme hermenêutica constitucional adequada sobre esse princípio jurídico-administrativo —, apenas em casos extremos e excepcionais, com a devida cautela e seguindo alguns parâmetros que serão explicitados a seguir.
Noutras palavras, o instituto do cancelamento de tombamento é constitucional, mas para ser utilizado ele deve obediência a alguns parâmetros, a fim de evitar distorções na sua aplicação que violem princípios constitucionais culturais e, sobretudo, impliquem desrespeito aos direitos culturais consagrados pela Constituição de 1988, como é o direito à preservação do patrimônio cultural.
Inicialmente, cabe ressaltar o caráter excepcional de tal instituto. Ele só deve ser utilizado em casos extremos que demandem a retirada de proteção da coisa tombada. É importante ressaltar também que o cancelamento de tombamento não somente afasta a proteção conferida, mas também desvaloriza a coisa tombada, no sentido de lhe retirar o valor que antes fora atribuído oficialmente pelo Estado. Noutras palavras, o cancelamento de tombamento retira o manto protetor e a aura de patrimônio, razão pela qual deve ser usado somente em casos excepcionais. Nesse raciocínio, quando há o cancelamento de tombamento, o procedimento adotado tem sido o de averbação do cancelamento no livro do tombo, mantendo-se a inscrição de tombamento intacta, a fim de preservar o registro histórico e documental de tal ato.
Umas das principais condicionantes na aplicação do cancelamento de tombamento é que tal ato deve ser precedido não só de manifestação do conselho, mas de mecanismos que garantam a participação popular nesse processo decisório, tal como preconizam as modernas políticas culturais e, sobretudo, as políticas de patrimônio, através do conceito de referência cultural.
Nesse sentido, entende-se que as principais hipóteses de aplicação do cancelamento de tombamento são: a) atendimento de interesse público superveniente; b) desaparecimento do valor; e c) perecimento da coisa tombada.
A primeira hipótese — tomada com ressalvas — é a mais comum, isto é, o possível cancelamento de tombamento com vistas a atender a interesse público superveniente ao direito cultural — direito difuso — de preservação ao patrimônio cultural.
A segunda hipótese diz respeito ao desaparecimento do valor atribuído à coisa, levando-se em consideração que o valor se altera no tempo e no espaço, podendo, em casos excepcionais, ser retirado da coisa através de critérios técnico-científicos, em processo administrativo próprio, com participação popular e respaldo do conselho consultivo do Iphan.
A terceira possibilidade diz respeito à inexistência física da coisa tombada, ocasionada por fatores naturais ou similares, não se admitindo, entretanto, destombamento decorrente de qualquer ação dolosa com o fito de causar dano irreversível ao patrimônio cultural, sem prejuízo da responsabilização civil e criminal para tais atos. É muito importante fazer essa ressalva, pois, infelizmente, não são raros os casos em que se destrói o patrimônio cultural, intencionalmente, a fim de extinguir a coisa tombada, no intuito de se driblar a proteção conferida, em razão da impossibilidade de aplicação do tombamento sobre coisa não corpórea.
Em todas as hipóteses, há de se cumprir fielmente para o destombamento: 1) o devido processo administrativo, segundo as fases previstas para o tombamento compulsório na lei, respeitadas as normas gerais federais e suplementares estaduais de observância obrigatória, garantidos a ampla defesa e o contraditório do(s) particular(es) direta ou indiretamente (entorno) afetados e da sociedade; 2) proceder à audiência e à manifestação técnica do conselho de patrimônio; e 3) garantir a ampla participação popular e o acesso à informação, a fim de subsidiar o debate público, por meio dos mecanismos de democracia direta, previstos na Constituição de 1988 e no Estatuto das Cidades.
Assim, conclui-se que, em interpretação conforme, o cancelamento de tombamento foi, sim, recepcionado pela Constituição de 1988. Contudo, para se aplicar o instituto, é necessário, previamente, ouvir o(s) conselho(s) de patrimônio vinculado(s) diretamente pelo interesse federativo exposto na proteção do bem tombado. Além da audiência do(s) conselho(s) de patrimônio, é necessário garantir a participação popular nesse processo de despatrimonialização de bens culturais, já que o interesse público não pode ser invocado como mero ato discricionário do poder público, ainda que motivado.
[1] RODRIGUES, José Eduardo Ramos; MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Estudos de direito do patrimônio cultural. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 60.
[2] RODRIGUES, José Eduardo Ramos; MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Estudos de direito do patrimônio cultural. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 260.
Mário Pragmácio é professor do Programa de Pós-Graduação em Cultura e Territorialidades da Universidade Federal Fluminense (UFF), conselheiro do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult), mestre em Museologia e Patrimônio e especialista em Patrimônio Cultural e doutor em Teoria do Estado e Direito Constitucional.
Rodrigo Vieira Costa é professor do Programa de pós-graduação em Direito da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (Ufersa) e membro associado do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult).
Fonte: Conjur