Cada situação concreta pode ser cotejada com a sua razão finalística e sistêmica, o que permite compreender com muita clareza as eficiências e ineficiências da ordem fundiária brasileira e dos vários tipos legais de relações jurídicas imobiliárias.
Em qualquer cidade, a praça é espaço afetado ao uso de todos que queiram caminhar, descansar nos bancos, apreciar as árvores, conversar. Em regra, não é possível dormir na praça, construir ou modificar a função desse espaço. Isso é afetação, o bem é público e usualmente denominado de uso comum do povo. A casa em frente à praça é de uso exclusivo destinada à moradia de certa família ou qualquer outro uso que o proprietário defina. Esses dois imóveis, a praça e a casa, são regidos por regras diferentes determinadas pelas respectivas finalidades de uso.
Aparentemente, a praça e a casa possuem algo em comum (gênero) e algo que as diferenciam (espécie). Nesse artigo, interessa explorar e compreender o que há de comum em tais relações jurídicas que possa ensejar a noção de gênero que aqui se busca. No plano jurídico, o que há de comum entre a praça e a casa?
A Figura 1 organiza os elementos típicos das duas relações jurídicas e respectivas ordens: sujeitos, objetos, direitos e deveres principais. Dessa forma, fica mais fácil compreender semelhanças e diferenças.
No quadro superior da Figura 1, denominado "relação jurídica potestativa", observa-se que o proprietário é titular do poder (direito) de usar a casa (objeto imobiliário) como coisa própria. Os demais sujeitos são titulares do dever de se submeter ou aceitar tal uso próprio, nos limites legais que autorizam o exercício desse poder (direito).
No quadro inferior da Figura 1, denominado "relação jurídica facultativa", constata-se que o município é titular do dever de manter e assegurar a afetação ao uso comum da praça. Os demais sujeitos (cidadãos) são titulares da faculdade de uso da praça (podem usar ou não), sempre nos limites legais próprios da afetação.
Convém chamar a atenção que bem de uso especial é apenas variação do domínio público, regida pelas mesmas regras lógicas do bem de uso comum.
Na primeira hipótese, usualmente denominada propriedade, a relação jurídica é puramente potestativa porque o proprietário pode usar a casa como residência ou comércio, pode alugar ou ceder, pode vender ou não. Terceiros devem se submeter a essa conduta potestativa. Portanto, o que existe é poder (direito) que dá origem à dever contraposto. A ordem da relação jurídica é do poder (direito) para o dever1.
Na segunda hipótese, usualmente denominado domínio público, o que existe como causa inicial da relação jurídica é o dever de manter e assegurar a afetação do bem de uso comum do povo, cabendo ao terceiro gozar o efeito dessa conduta como faculdade: usar ou não usar a praça. Nesse caso, o que existe é dever que dá origem ao direito (faculdade) contraposto.
Retomando a indagação original, percebe-se que as relações jurídicas de propriedade e domínio público parecem ser bem diferentes, mas o que elas possuem em comum de tal modo que possa definir gênero?
Primeiro, naquilo que parece óbvio: são relações jurídicas que recaem sobre objetos imobiliários (casa e praça).
Segundo, no que diz respeito ao sujeito determinado: são relações jurídicas em que o primeiro titular na ordem das condutas é determinado (o proprietário ou o ente público) e detentor de direito ou dever, conforme a espécie de relação jurídica.
Terceiro, no que diz respeito ao sujeito indeterminado: são relações jurídicas em que o segundo titular na ordem das condutas não é determinado (o terceiro ou o cidadão) e detentor de dever ou direito, conforme o tipo de relação jurídica.
Quarto, no que diz respeito ao efeito jurídico erga omnes: são relações jurídicas em que o efeito é sempre erga omnes; seja para garantir na propriedade o exercício e eficácia do direito contra todos; seja para garantir no domínio público o exercício e eficácia do dever de assegurar afetação contra todos.
Nessa estrutura lógica, parece possível definir o gênero assim:
relação jurídica imobiliária é a que recai sobre objetos imóveis em que um dos titulares é determinado e detêm direitos ou deveres oponíveis a terceiros indeterminados (erga omnes).
No cotidiano da vida, essa definição se manifesta de forma concreta nos seguintes exemplos. Se o vizinho invade o imóvel que pertence ao proprietário, este terá direito e ação para defender a sua propriedade. Se o cidadão qualquer tenta construir quiosque na praça, o município terá o dever e a ação correspondente para impedir o desvio de afetação no imóvel.
Estabelecida essa definição sobre o gênero, pode-se concluir que:
Último detalhe merece ser destacado e valorizado. Tudo que foi dito sobre gênero e espécies de relação jurídica imobiliária tem causa nas finalidades de uso do imóvel. Em síntese, a finalidade do uso do imóvel modela o gênero e as espécies.
Essa finalidade é dual: o uso será exclusivo ou não exclusivo. Imóveis de uso exclusivo são destinados a satisfazer necessidades existenciais dos indivíduos. Imóveis de uso não exclusivo são destinados ao atendimento das necessidades comuns, coletivas ou estatais. Essa diferença entre os imóveis a partir da finalidade a que são destinados modela a relação jurídica imobiliária.
Os motivos que justificam a apropriação exclusiva de imóvel residem nas necessidades humanas que se manifestam como finalidade das pessoas de exercerem certa liberdade existencial, o que importa em escolhas sobre o lugar para viver; na expectativa de segurança que os espaços fechados criam; na privacidade que asseguram ao indivíduo e à sua família; no conforto que podem propiciar; como meio de subsistência ou exploração para os seus ocupantes, segundo as escolhas de cada um; e como fonte de acumulação de patrimônio, o que tem notória relação com o futuro e as incertezas da vida.
Os imóveis de uso não exclusivos são os espaços de circulação (caminhos, ruas, estradas, rios, mares, o ar), de estadia provisória (pontos, estações), de entretenimento e diversão (praia, parque, praça) e abastecimento de água (fontes, cursos de água). Esses espaços são bens usualmente denominados de uso comum do povo, mas podem ser também áreas comuns em condomínios.
Em segundo plano, áreas não exclusivas também são os edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração pública, assim como as unidades de conservação ambiental que são de posse e domínio público ou simplesmente as áreas verdes no território dos municípios. Esses espaços são bens usualmente denominados de uso especial.
A finalidade do uso é a razão ou racionalidade que ampara a relação jurídica imobiliária. Nessa perspectiva, cada situação concreta pode ser cotejada com a sua razão finalística e sistêmica, o que permite compreender com muita clareza as eficiências e ineficiências da ordem fundiária brasileira e dos vários tipos legais de relações jurídicas imobiliárias.
A lei criou no Brasil mais de 30 tipos legais distintos de propriedade ou domínio público, o que indica a complexidade das relações do Governo, da sociedade, dos grupos sociais e dos indivíduos com a terra. Mas, algo deve ser destacado como esperança e rumo: a razão das relações jurídicas imobiliárias é finalística, lógica e objetiva. Basta essa coerência de orientação para que se possa constatar eficiências e ineficiências dos tipos legais e dos fatos jurídicos vinculados.
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1 Existem quatro tipos de relações jurídicas: livre, potestativa, facultativa e imperativa. Esses conceitos estão expostos nos seguintes artigos do Autor publicados no Migalhas: a) Ordem das Condutas e Relação Jurídica (https://www.migalhas.com.br/depeso/316871/ordem-das-condutas-e-relacao-juridica); b) Matemática da Conduta Jurídica (https://www.migalhas.com.br/depeso/323139/matematica-da-conduta-juridica); c) Os Conceitos Matemáticos de Direito e Dever (https://www.migalhas.com.br/depeso/335666/os-conceitos-matematicos-dedireito-e-dever).
Luiz Walter Coelho Filho - Sócio-fundador do escritório Menezes, Magalhães, Coelho e Zarif Sociedade de Advogados.
Fonte: Migalhas