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02/02/2022

Migalhas - Artigo: Entendendo o Princípio da Cindibilidade Registral (parte II) – Por Marcel Edvar Simões e Felipe Bizinoto Soares de Pádua

  1. Área de abrangência da cindibilidade registral: para além do Registro de Imóveis.

Dando continuidade às reflexões sobre o princípio da cindibilidade registral iniciadas no artigo anterior, devemos agora analisar o seu âmbito de abrangência.

Cumpre, antes, reforçar a noção de cindibilidade registral que já tivemos oportunidade de referir: trata-se de um princípio registral que determina como estado de coisas a produção dos efeitos jusreais imobiliários, tendo como demanda contra o Oficial de Registros o máximo aproveitamento do título (em sentido) formal no que é registrável. Ou, conforme conceito de Ademar Fioranelli1, cindibilidade "significa a separação do que pode e deve ser aproveitado no título apresentado para registro, ou seja, aquilo que é possível de registro e o que não é possível. Em outras palavras: extrai-se do título apenas o que comporta inscrição, embora apresente algum tipo de falha". Eduardo Sócrates Sarmento Filho explica que, por intermédio de tal princípio, a requerimento dos interessados, pode haver o registro de certos atos contidos em um único título, deixando-se o registro de outros para um momento futuro, seja em razão da necessidade de se realizar uma retificação, seja por algum entrave de ordem burocrática2. Um fundamento legal para a cindibilidade pode ser extraído, segundo entendemos, a partir da interpretação teleológica e sistemática do art. 187 da lei 6015/73, o qual prescreve: "Art. 187 - Em caso de permuta, e pertencendo os imóveis à mesma circunscrição, serão feitos os registros nas matrículas correspondentes, sob um único número de ordem no Protocolo"3.

Bem compreendida a noção de cindibilidade, insta nesse passo lembrar que a LRP - Lei de Registros Públicos trata do sistema brasileiro de registros públicos e contempla no seu Título I as disposições gerais, que são aquelas aplicáveis a todas as espécies de atividade registral. É dentro desse trecho breve e geral que constam previsões normativas sobre o expediente, a ordem de serviço, e consta especificamente que "Todos os títulos, apresentados no horário regulamentar e que não forem registrados até a hora do encerramento do serviço, aguardarão o dia seguinte, no qual serão registrados, preferencialmente, aos apresentados nesse dia'' (art. 10). Se em uma disposição geral de uma lei que trata dos ofícios registrais há menção à palavra "título", isso significa que não apenas o Registro de Imóveis, mas todas as demais espécies modalidades de registro constantes do art. 1º, § 1º da lei 6.015 atuam a partir do conceito de título.

Logo, algumas dúvidas surgem a partir dessa interpretação - simplista - de que o Registro Público como um todo atua com a categoria "título" citada: (i) qual será a definição tratada na disposição geral?; (ii) se houver alguma delimitação terminológica que encontre compatibilidade com o que tratado sobre o Registro Imobiliário, poderia haver cisão do título noutros expedientes, p. ex., no Registro de Pessoas Jurídicas, ou no Registro de Pessoas Naturais?

Em suma, a indagação mais certeira a ser feita é se a cindibilidade se restringe apenas ao seu berço, isto é, a seara registral imobiliária, ou se ela encontra horizontes maiores, aplicando-se noutras atribuições constantes da LRP. Tal diploma, além do que trata nas suas disposições gerais, estatui especificamente um rol de títulos para o Registro de Pessoas Naturais (art. 29), outro para Registro de Pessoas Jurídicas (art. 114), outro para o Registro de Títulos e Documentos (art. 127) e, finalmente, outro para o Registro de Imóveis (art. 167). De uma forma mais ou menos alinhada, os dispositivos legais que tratam do que é registrável para as várias atribuições citadas mencionam a estrutura documental (instrumentos particulares, atos constitutivos, carta de arrematação em hasta pública, sentenças que declaram a ausência).

Não seria possível um mesmo título formal poder ser cindido em outro Registro que não o imobiliário? Imagine-se uma contenda levada ao Judiciário na qual uma pessoa pleiteia a dissolução conjugal e consequente partilha de bens, obtendo como resposta da contraparte que esta não se opõe ao divórcio, mas demonstra que, apesar do vínculo conjugal, houve separação há muito tempo e, inclusive, a constituição de uma união estável da qual resultou prole, pugnando-se pela averbação de tal relação familiar no seu assento de nascimento. O demandado obtém êxito no feito quanto à partilha, eis que o regime de bens cessou desde a separação. Na sentença consta a desconstituição da sociedade conjugal e o reconhecimento judicial da união estável, servindo a decisão como mandado para fins de averbação da união estável, mas, por descuido, nada tratando do divórcio em si. O réu leva o documento judicial (com a coisa julgada) ao Registro de Pessoas Naturais e obtém resposta no sentido de que não há como averbar o teor da decisão, pois em um mesmo documento há carga mandamental quanto à união estável, mas não sobre a dissolução do casamento.

O caso acima, lendo-se o art. 97 da LRP, envolve um título que tem parte registrável (= união estável) e outra irregistrável por pendência de providência (= divórcio). Em tese, em se admitindo a aplicabilidade do princípio da cindibilidade do título também em sede do Registro Civil de Pessoas Naturais, poder-se-ia admitir que o interessado, réu no processo judicial, teria permissão para se valer da instância registral e requerer a aplicação da cindibilidade, averbando-se no nascimento a entidade familiar atual (união estável). Trata-se de consequência que precisa ser devidamente refletida pela doutrina e pela jurisprudência em matéria registral. 

Desnuda-se uma acepção mais ampla do princípio da cindibilidade, que determina como estado de coisas a produção dos efeitos jurídicos no seio registral, tendo como demanda contra o Oficial de Registros o máximo aproveitamento do título (em sentido) formal no que diz respeito ao imediato ingresso do que é registrável.

Além da abertura legal para a aplicação da parcelaridade ao sistema registral público como um todo, e não apenas ao segmento imobiliário, há o argumento geral de que a sociedade contemporânea é verdadeiramente hipercomplexa, hipercomplexidade esta que pode resultar em anseios direcionados ao extrajudicial registral que tenham elementos insuscetíveis de ingresso no sistema e outros que tenham aptidão de imediato ingresso.

É dizer: em algum momento, presente ou futuro, a norma-princípio da cindibilidade poderá ser utilizada no exercício de outra atividade registral que não a imobiliária, pois notamos que há abertura textual legal e anseios e demandas sociais para o manejo do aproveitamento dos elementos registráveis dentro de um título.

  1. Síntese conclusiva sobre a cindibilidade do título no Sistema Registral brasileiro atual.

A cindibilidade tem como origem o sistema registral imobiliário, que passou por profunda mudança a partir de um marco legal que mudou sensivelmente o seu foco: antes com um tipo de ênfase específica no título e na sua transcrição; depois, com a lei 6.015/73, com a ênfase mais nítida no chamado sistema modo-título e no exercício da inscrição, mantendo-se de forma mais pontual o ato transcritivo.

Com o advento da LRP, houve a consagração do princípio da unitariedade matricial, norma esta que estabelece como estado ideal o de que para cada imóvel deve haver apenas uma matrícula, cabendo aos envolvidos na atividade registral imobiliária o exercício de atos jusreais atrelados a bens imóveis de forma concentrada no fólio real.

Como a matrícula concentra todos os dados relativos a quem titulariza posições jurídicas reais, totais ou parciais, e relativas ao bem sobre o qual recaem tais posições, isto é, o imóvel, o perfil de Registro Imobiliário enfatizou sua adequação ao sistema de modo e título, que se baseia na ideia de que só é possível constituir, modificar ou extinguir posições jurídicas reais imobiliárias por meio da apresentação do título, o qual será inscrito na matrícula do bem através de um outro ato, o ato registral lato sensu, vale dizer, a averbação ou o registro stricto sensu.

É a partir da ideia de que a matrícula é o centro sobre o qual gravita toda a atividade registral imobiliária e, por outro lado, também da ideia que os títulos levados a registro lato sensu poderiam contemplar uma pluralidade de condutas ou eventos que constituem posições jusreais, que a cindibilidade se destaca: aproveitar-se o que é registrável no título apresentado, enquanto aquilo que não é registrável é devolvido ao interessado.

Para identificar o que é registrável ou não, o Oficial - sempre fiel ao caráter prudencial da sua atividade jurídica - exerce a qualificação registral, para identificar em qual das categorias o documento (e seus atos) se amoldam da melhor forma. Tal prudência se refere à atividade que todo operador do Direito realiza, qual seja, a qualificação jurídica (que tem a qualificação registral imobiliária como uma de suas espécies). Toda qualificação jurídica tem um duplo aspecto: (i) de forma apriorística ou nomogenética (= processo de criação da norma jurídica), na identificação dos elementos do mundo dos fatos que irão compor a moldura normativa geral e abstrata; e (ii) de forma posterior ou ex post norma, na aplicação da norma geral e abstrata elaborada aos fatos, e verificação de como essa relação de conformação fáctica ao desiderato jurídico se enquadra, se qualifica juridicamente.

Noutra perspectiva, qualificar diz respeito ao fato de que o operador do direito extrai do plano fáctico elementos para desenvolver um enunciado fáctico, o que também é realizado no plano jurídico, do qual se extrai um enunciado jurídico, sendo a norma jurídica o ponto de encontro entre os dois mundos, a correlação entre preceito maior (= enunciado jurídico) e preceito menor (= enunciado fáctico), resultando na criação da norma jurídica concreta e na sua aplicação, para atribuição dos efeitos de direito.

A partir do momento que o Oficial de Registro de Imóveis qualifica, ele pode extrair o que é passível de ingresso imediato no fólio real do que não e, por isso, pode aplicar a norma jurídica relativa à produção de efeitos jurídicos reais quanto à primeira espécie. Dentro de uma pluralidade de fatos jurídicos que justificam a constituição, modificação ou extinção de posições jusreais constantes em um mesmo ato de revestimento é que o delegatário imobiliário pode cindir o aspecto formal do título e fazer ingressar no sistema registral o que pode imediatamente ser, justamente, registrado.

É com essas bases da unicidade da matrícula e da atividade qualificadora do jurista, que dizem respeito ao Oficial de Registro de Imóveis, que se destaca o princípio da cindibilidade ou parcelaridade.

Pela necessidade do labor jurídico envolver definições, não se escapou de conceber o princípio da cindibilidade como a espécie normativa registral que determina como estado de coisas a produção dos efeitos jusreais imobiliários, tendo como demanda contra o Oficial de Registros o máximo aproveitamento do título (em sentido) formal no que é registrável.

Apesar da origem imobiliária, a parcelaridade tem como foco a figura do título (tanto em sua acepção formal quanto material), que aparece em diversas disposições atreladas aos demais segmentos registrais públicos, e não apenas o imobiliário - como se nota a partir da leitura do arts. 29, 114, 127 e 167 da lei 6.015/73. Logo, a norma-princípio em comento não se restringiria ao Registro de Imóveis, mas poderia ser reconhecida como um princípio geral do Sistema de Registros Públicos brasileiro.

Em razão da amplitude constante nos dispositivos sobre o que é registrável em cada espécie de atividade registral, bem como do argumento geral da hipercomplexidade social é que se definiu o princípio da cindibilidade de forma mais ampla e apta a abraçar o exercício não só do registro imobiliário: trata-se de norma-princípio registral que determina como estado de coisas a produção dos efeitos jurídicos no seio registral, tendo como demanda contra o Oficial de Registros o máximo aproveitamento do título (em sentido) formal no que diz respeito ao imediato ingresso do que é registrável.

Importante advertir, contudo, que a cindibilidade não pode encontrar aplicação ampla e irrestrita na seara registral, havendo um requisito absolutamente fundamental que deve estar sempre presente para que se verifique sua aplicação: o requisito da possibilidade de dissociação dos fatos jurídicos constantes do título, pela sua não vinculação. Vale dizer: deve haver ausência de um vínculo de interdependência cabal entre os atos jurídicos constantes do título formal, que impeça a sua cisão sob pena de ela acarretar total ruptura de sentido jurídico4.

Notas

1 FIORANELLI, Ademar. A cindibilidade dos títulos. Exemplos práticos. In: AHUALLI, Tânia Maria; BENNACHIO, Marcelo (org.). Direito Notarial e Registral. Homenagem às Varas de Registros Públicos da Comarca de São Paulo. São Paulo: Quartier Latim, 2016, p. 403.

2 SARMENTO FILHO, Eduardo Sócrates. Direito Registral Imobiliário - Teoria Geral. Curitiba: Juruá, 2017, v. 1, p. 85.

3 Para alguns autores, como Decio Erpen e João Pedro Lamana Paiva, a cindibilidade se refereria fundamentalmente aos imóveis no título (isto é, quando apenas um ou alguns se encontram aptos, mas outros não, precisando de regularização). Exemplo: formal de partilha com um imóvel perfeitamente descrito e caracterizado, e outro não.

4 "Contudo, a aplicação do princípio não pode ser excessivamente abrangente. Vindo a registro uma escritura pública contendo dois negócios jurídicos distintos, porém interligados, como, por exemplo, uma doação com reserva de usufruto, não seria aceitável requerer apenas o registro de um deles" (SARMENTO FILHO, Eduardo Sócrates. Direito Registral Imobiliário - Teoria Geral. Curitiba: Juruá, 2017, v. 1, p. 85).

Autores:

Marcel Edvar Simões é procurador Federal. Doutor e mestre em Direito Civil, e bacharel em Direito, todos pela Faculdade de Direito de Universidade de São Paulo. Professor de Direito Civil e Direito Digital na Universidade Paulista. Professor-convidado nos cursos de Pós-Graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie, da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo e no Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Membro do Instituto Brasileiro de Estudos em Responsabilidade Civil (IBERC).

Felipe Bizinoto Soares de Pádua é advogado. Pós-graduado em Direito Constitucional e Processo Constitucional, em Direito Registral e Notarial, em Direito Ambiental, Processo Ambiental e Sustentabilidade, todos pelo Instituto de Direito Público de São Paulo/Escola de Direito do Brasil (IDPSP/EDB), e graduado em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (FDSBC). É membro do grupo de pesquisa Hermenêutica e Justiça Constitucional: STF, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), e membro do grupo de pesquisa Direito Privado no Século XXI, do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).

 

Fonte: Migalhas


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