Mesmo em propriedades privadas, locais podem ser uma ferramenta de remodelação das cidades, tornando as áreas urbanas mais atraentes, gerando empregos e contribuindo com a convivência coletiva
Caminhar é bem mais do que percorrer de um ponto a outro da forma mais rápida. Trata-se da troca de experiências em espaços que permitem a convivência coletiva nos centros urbanos. Ver e ser visto. Calçadinhas estreitas, mal ajambradas, resíduos de sistema viários, tipos espaciais, que se repetem à exaustão ainda hoje Brasil afora, inviabilizam e dificultam o exercício da sociabilidade entre cidadãos. Se nas cidades mais antigas a locomoção era feita predominantemente a pé e por tração animal gerando caminhos sinuosos e trilhas marcadas pelo intenso pisoteio, a cidade do século passado foi configurada para facilitar o trajeto de veículos motorizados de alta velocidade, deixando estreitas faixas, conhecidas como calçadas, aos pedestres.
A qualidade do espaço livre destinado ao público nas cidades brasileiras é escasso quando não incapaz de suprir a demanda por locais qualificados em conceito e projeto para atender as novas demandas sociais e ambientais que se apresentam. Como remodelar uma cidade que priorizou ruas e avenidas em detrimento das pessoas? O Plano Diretor de São Paulo, atualmente em processo de revisão, criou ainda em 2014 um novo parâmetro urbanístico denominado Fruição Pública com o objetivo de estimular e melhorar a oferta de espaços qualificados para o uso público no pavimento térreo dos edifícios. Estas áreas estão em processo de transformação, recebendo empreendimentos de grande porte e que reúnem complexos multifuncionais com usos residenciais, comerciais e de serviços. Quando finalizados, os novos conjuntos receberão um fluxo intenso de pessoas como resultado do processo de adensamento e verticalização.
Ampliar e melhorar as áreas de acesso e estar público são fundamentais para a viabilizar a qualidade de vida dos antigos e dos novos usuários. Como incentivo para a ampliação de oferta de áreas de uso público, a prefeitura de São Paulo propôs a geração das novas “pracinhas” nos térreos destes complexos multifuncionais, definindo à época regras conhecidas como concessões: com elas, os proprietários de imóveis poderiam construir acima do coeficiente básico estabelecido mediante contrapartidas. Trata-se de um instrumento urbanístico criado para orientar o uso e a ocupação do solo urbano. No caso dos novos espaços doados ao poder público para fins de fruição pública pelas incorporadoras, devem atender alguns requisitos para poderem utilizar os benefícios da concessão: área de no mínimo 250 m², devem estar localizados junto ao alinhamento da via, ao nível da calçada, sem construções ou passagem de veículos, além de permanecerem abertos ininterruptamente.
Os primeiros complexos multifuncionais estão prontos e, junto com eles, a população está recebendo novos espaços públicos junto aos pavimentos térreos de condomínios multiuso. Os resultados são diversificados e refletem para o bem e para o mal, a mentalidade dos agentes privados na proposição de soluções de desenho compatíveis com as expectativas, comportamento e usos contemporâneos destes novos frequentadores. Exemplos bem-sucedidos de projetos de áreas privadas dirigidas à convivência pública existem há décadas. Alinhados à discussão urbana internacional, profissionais e empresas apresentaram ainda no século passado propostas urbanas cujos lotes davam lugar a espaços livres fluidos, acolhedores e abertos ao convívio coletivo. O BRASCAN Century Plaza é um conjunto de uso misto cujo térreo interliga as calçadas que o rodeiam aos usos comerciais e a uma imensa praça na qual você pode simplesmente sentar-se, tomar sol, passar um tempo e não desembolsar nenhum centavo por isso. Os conceitos de lote x prédio x cercas/muros acoplado às questões de propriedade pública x privada foram implodidos, dando lugar ao convívio público. Manutenção, vigilância e gestão permanecem sob responsabilidade do condomínio.
Tecnicamente, os novos espaços criados após 2014 precisam ser encarados em termos conceituais e projetuais por todos os agentes envolvidos na obra (da incorporadora ao gestor condominial) como pracinhas acopladas às calçadas, abertas 24 horas e prontas para acolher todas as pessoas, independentemente das regras particulares que regem as condutas de vigilância das empresas contratadas como no caso citado. Embora para o cidadão comum estes espaços pareçam públicos, é preciso lembrar que são espaços geridos por empresas privadas. Há restrições de uso? Sou otimista e espero que não, pois, até o momento, nenhum tipo de regulamentação e fiscalização para os eventuais tipos de apropriação da população foram definidos. Do morador em situação de rua que se deita no banco para dormir ao ambulante que vende milho verde, todos devem ser bem-vindos. Este é o caso das incorporadoras que aderiram ao modelo. As áreas nestas situações são consideradas espaços para a fruição pública e encontram-se averbadas como tal em Cartório de Registro de Imóveis.
Tão importante quanto as condições de uso e os tipos de acesso vale ressaltar a qualidade do projeto de arquitetura paisagística das novas pracinhas. A definição de um programa de atividades contemporâneo que atenda as expectativas e necessidades dos usuários que estão de passagem podem ampliar as possibilidades de apropriação e uso dos locais ofertados. Se por um lado muitos locais estão incorporando aos seus térreos jardins floridos, áreas sombreadas, bancos para se sentar, iluminação noturna, fontes de água que transforam as novas áreas de convívio em oásis urbanos, outros locais, por sua vez, são concebidos e construídos de forma tão displicente e preguiçosa que parecem gritar para os pedestres: “não cheguem perto, vocês não são bem-vindos aqui”.
De certa forma, o poder público municipal assumiu a incapacidade financeira e técnica de prover novos espaços livres à população e, em especial, nos eixos que sofrerão com o forte impacto construtivo e populacional quando estiverem consolidados. As calçadas que hoje se mostram espacialmente tímidas nos corredores de transporte público, ficarão não apenas intransitáveis, mas também inseguras frente ao incremento populacional previsto. Espaços públicos, mesmo que em propriedades privadas, se concebidos e projetados como elementos público/privados que se integram à vida da população, podem ser uma excelente ferramenta de remodelação das cidades, tornando as áreas urbanas mais atraentes, gerando empregos e contribuindo com a convivência coletiva. A ampliação de novos tipos espaciais (neste caso, os novos espaços livres que chamei de pracinhas, nem “batizados” foram ainda, sendo formalmente conhecidos como “áreas de extensão de calçadas destinadas à fruição pública”) para a recreação e lazer da população são sempre bem-vindas.
Fonte: Jovem Pan