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04/11/2021

Conjur – Artigo: Repetição do indébito no CDC não exige prova do dolo ou má-fé do fornecedor

A cobrança de dívida é ato lícito decorrente do exercício regular de direito reconhecido ao credor. Entretanto, a cobrança indevida de dívida é reputada como ato ilícito e, portanto, passível de imposição de sanção civil. A função principal da sanção civil decorrente da cobrança indevida de dívida é promover a segurança jurídica diante de eventuais abusos do direito de ação por parte do credor. A cobrança indevida de dívida foi disciplinada no âmbito do Direito Privado pelos artigos 1.530, 1.531 e 1.532 do Código Civil de 1916.

O Código Civil de 2002 reiterou a regulação da matéria por intermédio dos artigos 939, 940 e 941, mantendo as mesmas regras do Código Civil de 1916, porém com pequenas alterações na redação dos artigos 940 e 941. O artigo 42, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor prevê que o consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, em montante correspondente ao dobro do valor que pagou em excesso, com correção monetária e juros legais, ressalvada a hipótese de engano justificável do fornecedor.

O Código Civil estabelece três hipóteses de cobrança indevida de dívida, cujas sanções são pré-fixadas em lei. A primeira hipótese refere-se à cobrança de dívida antes do respectivo vencimento (artigo 939 do Código Civil). Observe-se que o Código Civil contempla expressamente alguns casos que possibilitam a exigência da dívida antes do vencimento [1]. A segunda hipótese fundamenta-se na cobrança de dívida previamente paga, no todo ou em parte, sem ressalvar as quantias anteriormente recebidas (artigo 940, primeira parte, do Código Civil). A terceira hipótese relaciona-se à cobrança além do montante devido (artigo 940, segunda parte, do Código Civil). As duas últimas hipóteses referem-se às denominadas cobranças excessivas de dívidas. O artigo 940 do Código Civil ressalva, na parte final, que a pretensão à repetição do indébito se extingue pela prescrição, cujo prazo é decenal (artigo 205 do Código Civil) [2].

As sanções civis para a cobrança indevida de dívida previstas no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor têm natureza punitiva, podendo ser aplicadas ainda que não se alegue qualquer prejuízo do devedor. As sanções civis estabelecidas no Código Civil (artigos 939 e 940) e no Código de Defesa do Consumidor (artigo 42, parágrafo único) para a cobrança indevida de dívida têm natureza material ou substancial, que não se confundem com as sanções processuais ou aquelas geradoras de dano processual derivadas da litigância de má-fé (artigo 79 a 81 do Código de Processo Civil).

A exigência do dolo, má-fé ou culpa para a aplicação das sanções civis previstas para a cobrança excessiva de dívida foi recorrentemente debatida nos tribunais brasileiros. O Supremo Tribunal Federal, no início da década de 1960, à época competente para decidir sobre a aplicação e a uniformização da legislação federal julgada pelos tribunais estaduais e federais, analisou as duas hipóteses de cobrança excessiva de dívida disciplinadas pelo artigo 1.531 do Código Civil de 1916 e editou a Súmula nº 159, fixando o entendimento de que a "cobrança excessiva, mas de boa-fé, não dá lugar às sanções do artigo 1.531 do CC [3]".

A cobrança indevida de dívida foi qualificada como ato ilícito pelo Código Civil de 1916, matéria vinculada ao tema da responsabilidade civil. Visava coibir, como acima ressaltado, o abuso do direito de ação do credor, pois equiparava-se a ato extorsivo a exigência em juízo de dívida paga, no todo ou em parte, sem as devidas ressalvas, ou em excesso. O sistema de responsabilidade civil adotado pelo Código Civil de 1916 era baseado na culpa do agente causador do dano. A análise da culpa do sujeito imputado era necessária para configurar a obrigação de indenizar.

A avaliação do elemento subjetivo do credor para a condenação da sanção civil decorrente de cobrança excessiva de dívida não estava prevista no artigo 1.531 do Código Civil de 1916, como também não está contemplada no artigo 940 do Código Civil de 2002. O Supremo Tribunal Federal entendeu que a interpretação literal do artigo 1.531 do Código Civil de 1916 poderia resultar na conclusão equivocada de que toda ação de cobrança julgada improcedente autorizaria a aplicação da referida sanção civil. Tal conclusão ensejaria injustiças aos credores de boa-fé, motivo pelo qual foi estabelecido jurisprudencialmente o requisito subjetivo da comprovação do dolo ou má-fé do autor da ação de cobrança para incidir a sanção civil pela cobrança excessiva de dívida. Argumentou-se que o entendimento sumulado pelo Supremo Tribunal Federal se coadunava com o sistema de responsabilidade civil subjetiva, orientação que prevaleceu durante toda a vigência do Código Civil de 1916, ratificando a exigência da prova do dolo ou má-fé na vigência do atual Código Civil [4]. Contudo, a aplicação da Súmula nº 159 do Supremo Tribunal Federal para as relações civis regidas pelo Código Civil de 2002 sofre críticas procedentes da doutrina [5].

A interpretação e aplicação do Código Civil, conforme acima exposto, quanto à repetição do indébito, não podem ser transpostas integralmente para solucionar os mesmos problemas nas relações de consumo. As regras previstas no Código Civil para a cobrança indevida de dívida são diversas do modelo normativo determinado pelo Código de Defesa do Consumidor. O sistema de responsabilidade civil do Código Civil tem base teórica diferente daquele previsto no Código de Defesa do Consumidor. As distinções entre os dois sistemas devem ser consideradas pelo intérprete na solução da questão entre partes iguais (Direito Civil) e partes desiguais (Direito do Consumidor).

Registre-se que inexiste regra jurídica nos dois sistemas normativos (Código Civil e Código de Defesa do Consumidor) que obrigue a avaliação do elemento subjetivo do credor (dolo, má-fé ou culpa) para que a sanção civil prevista em lei relativa à cobrança indevida de dívida seja aplicada ao caso concreto. O requisito da prova do dolo, má-fé ou culpa do credor na cobrança judicial de dívida foi introduzido pela jurisprudência durante a vigência do Código Civil de 1916 e mantida, conforme retro mencionado, pela Súmula nº 159 do Supremo Tribunal Federal no início da década de 1960, em contexto sócio-econômico absolutamente diverso da atualidade.

A cobrança indevida de dívida civil ou empresarial prevista no Código Civil regula relação jurídica entre sujeitos iguais (credor e devedor). Exige-se que haja cobrança judicial de dívida, configurando-se o abuso do direito de ação do credor ao provocar a atuação do Poder Judiciário mediante instauração de processo de conhecimento ou de execução de título extrajudicial, manifestando a pretensão de recebimento de dívida ainda não vencida; já paga, no todo ou em parte, sem as devidas ressalvas; ou em excesso. A mera cobrança extrajudicial não enseja a aplicação das sanções civis da cobrança indevida de dívida civil ou empresarial cominadas no Código Civil. Não há necessidade de pagamento da dívida cobrada indevidamente em juízo para a incidência das respectivas penas civis.

Por outro lado, a repetição do indébito disciplinada no Código de Defesa do Consumidor dispõe sobre relação jurídica entre sujeitos desiguais, dotada naturalmente de cunho protetivo do sujeito vulnerável. Portanto, o Código de Defesa do Consumidor reconhece o direito à repetição em dobro do indébito quando a cobrança de dívida de consumo ocorrer simplesmente pela via extrajudicial. O pagamento da dívida de consumo é requisito necessário para a devolução em dobro do valor indevidamente cobrado pelo fornecedor. Importante notar que se a cobrança indevida de dívida de consumo ocorrer pela via judicial, o consumidor deve se valer das mesmas regras dos artigos 939 a 941 do Código Civil de 2002, aplicados subsidiariamente às relações de consumo, dispensado, nesse caso, o requisito do pagamento prévio da dívida para a imposição das respectivas sanções civis.

A principal discussão acerca da incidência da sanção civil decorrente da cobrança extrajudicial de dívida de consumo é a necessidade ou não de comprovar o dolo, má-fé ou culpa do fornecedor. As soluções criadas pela doutrina e jurisprudência para a cobrança indevida de dívida no sistema normativo do Código Civil não podem ser simplesmente transpostas para as relações de consumo. São regimes jurídicos distintos, com requisitos diferentes, especialmente quanto à exigência da prova do elemento subjetivo do fornecedor na cobrança indevida de dívida, incompatível com a responsabilidade objetiva fixada pelo Código de Defesa do Consumidor.

O elemento volitivo do fornecedor não é fator determinante para a aplicação da sanção civil decorrente de cobrança indevida de dívida no sistema do Código de Defesa do Consumidor, razão pela qual o intérprete não pode criar tal requisito, especialmente quando acarreta prejuízo ao consumidor, sujeito vulnerável e destinatário da proteção legal. Não se trata de lacuna legal, mas corresponde a inequívoca opção do legislador, de acordo com o sistema de responsabilidade civil objetiva adotado no Código de Defesa do Consumidor, de não estabelecer requisito subjetivo para a imposição da referida sanção civil.

A prova do dolo, má-fé ou mesmo da simples culpa do fornecedor é tarefa praticamente impossível atribuída ao consumidor, merecendo o qualificativo de prova diabólica. A impessoalidade nas relações de consumo acentua-se cada vez mais, a contratação por sistemas eletrônicos, a formação de vínculo com empresas multinacionais ou transnacionais com sede ou filiais no exterior, dentre outros fatores característicos da economia globalizada e da sociedade de consumo, revelam que o consumidor não tem como avaliar e provar em juízo que o fornecedor atuou com dolo, má-fé ou culpa pelo simples fato de que, na maioria das vezes, não tem contato pessoal com o fornecedor, ou quando tem um envolvimento pessoal direto, este ocorre por intermédio de representantes que simplesmente cumprem apenas as determinações da empresa.

A exigência de prova do dolo, má-fé ou culpa do fornecedor no caso de cobrança indevida de dívida reduz a proteção do consumidor e torna ineficaz o artigo 42, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor. A aplicação da Súmula nº 159 do Supremo Tribunal Federal, editada no início da década de 1960, a partir de pressupostos legais diversos e modelo sócio-econômico absolutamente diferente, vai de encontro com a teoria do risco do negócio ou da atividade que informa a responsabilidade objetiva prevista no Código de Defesa do Consumidor.

O engano justificável é a única alternativa prevista legalmente para eximir o fornecedor da sanção civil da devolução em dobro do valor indevidamente pago pelo consumidor. A avaliação do elemento volitivo do fornecedor que promove cobrança extrajudicial de dívida de consumo, consoante demonstrado acima, não é requisito para a repetição do indébito no Código de Defesa do Consumidor. A cobrança indevida de dívida caracteriza conduta contrária ao princípio da boa-fé objetiva. Desse modo, o fornecedor tem o ônus de provar o engano justificável na cobrança da dívida, única defesa apta a excepcionar a imposição da sanção civil. A prova de ausência de dolo, má-fé ou culpa não é suficiente para eximir o fornecedor de devolver em dobro o valor indevidamente pago pelo consumidor.

A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça superou o dissídio existente entre a Primeira e a Segunda Seções e fixou a tese de que "a repetição em dobro, prevista no parágrafo único do artigo 42 do CDC, é cabível quando a cobrança indevida consubstanciar conduta contrária à boa-fé objetiva, ou seja, deve ocorrer independentemente da natureza do elemento volitivo". Restou decidido que a questão deve orientar-se pelas diretrizes hermenêuticas próprias do microssistema de defesa do consumidor, especialmente o princípio da vulnerabilidade (artigo 4º, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor), o princípio da boa-fé objetiva (artigo 4º, inciso III, do Código de Defesa do Consumidor) e o direito básico da facilitação da defesa do consumidor em juízo (artigo 6º, inciso VIII, do Código de Defesa do Consumidor) [6].

O REsp. 1.823.218/AC, relator ministro Paulo de Tarso Sanseverino, foi afetado sob o rito dos recursos repetitivos em 14.5.2021 e, portanto, aguarda-se a reafirmação do entendimento fixado pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça no EAREsp 664.888/RS e EAREsp 676.608 (paradigmas). A nova orientação jurisprudencial promoverá a eficácia plena do artigo 42, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor e resultará, como previsto pelo legislador, em meio apto a coibir os abusos nas cobranças de dívidas e pagamentos indevidos que ocorrem reiteradamente no mercado de consumo brasileiro.

[1] Código Cívil. Artigos 333, incisos I a III, 590, 1.425, incisos I a V, 1.465.

[2] STJ, EAREsp 738.991/RS, Corte Especial, relator ministro Og Fernandes, DJe 11.6.2019.

[3] FERNANDES FILHO, Carlos Antônio; SANTANNA, Héctor Valverde. A desnecessidade da prova da má-fé para a repetição em dobro do indébito nas relações de consumo. "Revista de Direito do Consumidor", São Paulo, v. 125 ano 28, p. 380, set/out 2019.

[4] STJ, REsp 390.075/ES, Quarta Turma, relator ministro Aldir Passarinho Junior, DJU 12.11.2007.

STJ, AgInt no AREsp 1.625.737/PR, Quarta Turma, relator ministro Antonio Carlos Ferreira, DJe 1º.10.2020.

[5] GODOY, Claudio Luiz Bueno de. "Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência". Coordenador Cezar Peluso. 5ª ed. Barueri-SP : Editora Manole, 2011. p. 950-951.

[6] STJ, EAREsp 664.888/RS, Corte Especial, relator ministro Herman Benjamin, DJe 30.3.2021.

Autor: 

 Héctor Valverde Santanna é doutor e mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP, professor de Direito do Consumidor e desembargador do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios.

 

Fonte: Conjur


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