Como é a aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos contratos de alienação fiduciária?
Está em discussão perante o STJ sob rito dos recursos repetitivos (Tema 1.095/STJ) a “definição de tese alusiva à prevalência, ou não, do Código de Defesa do Consumidor na hipótese de resolução do contrato de compra e venda de bem imóvel, com cláusula de alienação fiduciária em garantia”, para a qual estão afetados como representativos de controvérsia os Recursos Especiais 1.891.498 e 1.894.504.
Os casos concretos têm por objeto pedidos de restituição de quantias pagas em contratos de compra e venda a crédito com garantia fiduciária de bens imóveis, que, em razão de inadimplemento dos devedores fiduciantes, foram levados a leilão.
O tribunal de origem desprezou o procedimento especial definido pelos arts. 26 e 27 da Lei 9.514/1997 e aplicou em seu lugar o critério de liquidação decorrente de resolução de promessa de venda, definido pela Súmula 543 do STJ,[1] julgando procedentes os pedidos e determinando a restituição aos devedores fiduciantes de 90% das quantias pagas, desprezando o fato de não ter sido apurado saldo no leilão dos imóveis.[2]
As discussões sobre a aplicação do CDC aos contratos de alienação fiduciária
O que está em questão são os termos da coexistência no sistema de duas normas relacionadas ao tema: de uma parte, o art. 53 do CDC, que considera nula a cláusula de contratos de promessa de venda, bem como de alienação fiduciária, que preveja a perda total das quantias pagas, em caso de resolução do contrato por inadimplemento da obrigação do devedor,[3] e, de outra parte, o art. 27 da Lei 9.514/1997, que, em caso de execução de crédito garantido por propriedade fiduciária de imóveis, obriga o credor fiduciário a entregar ao devedor fiduciante o saldo, se houver, do produto do leilão do imóvel.[4]
Embora a orientação jurisprudencial do STJ já se encontre uniformizada no sentido da prevalência da regra especial da Lei 9.514/1997 sobre a regra geral do CDC[5], registram-se decisões divergentes nas instâncias ordinárias, situação que justifica a apreciação da questão pelo rito dos recursos especiais repetitivos. A afetação torna oportuna a revisitação dos fundamentos em que se sustenta a diretriz jurisprudencial do STJ e traz à baila o acórdão proferido em 2008 no Agravo de Instrumento 932.750-SP, que pode ser tomado como marco inaugural dessa orientação jurisprudencial.
Recorde-se que a venda de imóveis a crédito com garantia fiduciária só passou a ser praticada em meados dos anos 2000 e, nessa ocasião, não raras vezes decisões das instâncias ordinárias submetiam essa operação de crédito ao mesmo tratamento da promessa de venda, talvez por influência do grande acervo de jurisprudência formado desde 1937, quando o Decreto-lei 58 disciplinou a comercialização de imóveis a crédito mediante promessa de venda.
A grave distorção caracterizada pela equiparação da alienação fiduciária à promessa de venda veio a ser corrigida pelo STJ no acórdão do Agravo de Instrumento 932.750-SP, que destacou as distinções estruturais e funcionais entre essas espécies de contrato e demonstrou a inviabilidade de equiparação dos efeitos do inadimplemento em cada deles, concluindo que a solução da controvérsia “leva à prevalência da norma específica de regência da alienação fiduciária de bens imóveis.”[6]
Orientação jurisprudencial
Desde então a orientação jurisprudencial do STJ firmou-se sem qualquer discrepância no sentido da prevalência da regra especial dos arts. 26 e 27 da Lei 9.514/1997 sobre a regra geral do art. 53 do CDC, com fundamento nos critérios da especialidade e da cronologia,[7] vindo a ser positivada pela Lei 13.786/2018, que incluiu o § 14 no art. 67-A da Lei 4.591/1964 (Lei das Incorporações) e o § 3º do art. 32-A da Lei 6.766/1979 (Lei de Loteamento).
Coerentemente com a diretriz emanada do STJ, a Lei 13.786/2018 põe em relevo os distintos efeitos da extinção forçada da operação de crédito hipotecário ou fiduciário daqueles decorrentes da resolução de promessa de compra e venda, deixando claro que, nestes casos, “a restituição far-se-á de acordo com os critérios estabelecidos na respectiva lei especial ou com as normas aplicáveis à execução em geral” (CPC, arts. 771 e seguintes; Decreto-lei 70/1966; Código Civil, arts. 1.364, 1.365 e 1.419, ou Lei 9.514/1997, arts. 26 e 27, conforme o caso)[8].
Assim, no que tange às promessas de venda de imóveis integrantes de incorporação imobiliária ou de loteamento, a vedação da cláusula comissória de que trata o art. 53 do CDC se articula às normas especiais do art. 67-A e seus §§ 1º ao 9º da Lei 4.591/1964 e do art. 32-A e seus §§ 1º e 2º da Lei 6.766/1979.
Modos de extinção por efeito de inadimplemento da obrigação do devedor
De outra parte, em relação à compra e venda de bem imóvel a crédito com garantia hipotecária ou fiduciária, a regra geral do art. 53 do CDC e dos arts. 1.365 e 1.428 do Código Civil se articulam às regras especiais dos arts. 26 e 27 da Lei 9.514/1997, dos arts. 29 e ss. do Decreto-lei 70/1966, além de outras normas especiais, como preveem o § 14 do art. 67-A da Lei 4.591/1964 e o § 3º do art. 32-A da Lei 6.766/1979.
De fato, a flagrante distinção estrutural e funcional entre, de um lado, o contrato de promessa de venda e, de outro lado, o de crédito com garantia real, ainda que destinado ao financiamento da compra e venda de imóvel, sujeita-os a diferentes modos de extinção por efeito de inadimplemento da obrigação do devedor.
A promessa é passível de resolução em razão da interdependência ou correspectividade das prestações e da quebra do sinalagma provocada pelo inadimplemento da prestação de uma das partes, que autoriza a parte lesada a demandar o remédio resolutório de que trata o art. 475 do Código Civil.
Já a operação de crédito equivalente ao mútuo está excluída do campo de incidência dessa regra, dada a impossibilidade de caracterização de inadimplemento da prestação do credor, pois este já a terá efetivado ao entregar o crédito, classificando-se tal contrato como título de crédito extrajudicial (CPC, 784, V), sujeito a execução, seja com fundamento nos arts. 771 e ss. do CPC ou de normas especiais, entre elas as dos arts. 26 e 27 da Lei 9.514/1997, e não a resolução.
No caso da operação de crédito para aquisição de imóvel, uma vez celebrado o contrato de compra e venda com pagamento integral do preço, com recursos de financiamento bancário ou do próprio incorporador, e tendo sido entregue o imóvel ao adquirente, não há a interdependência de prestações que legitime a “parte lesada pelo inadimplemento” a postular o remédio resolutório.[9]
A eventualidade de a alienação fiduciária caracterizar-se como relação de consumo não altera esse modo de extinção forçada do contrato e, portanto, não a afasta do campo de incidência dos art. 26 e 27 da Lei 9.514/1997, até porque essas disposições se conformam à regra da vedação do pacto comissório enunciada pelo art. 53 do CDC, ao obrigar o credor fiduciário a promover a venda do bem para satisfazer seu crédito em dinheiro (Código Civil, arts. 1.365, 1.419 e 1.428, e Lei 9.514/1997, art. 27).
Afinal, todas essas disposições reproduzem a regra geral da vedação do pacto comissório, mas há que se ter presente que essa regra repercute nas normas procedimentais em conformidade com as singularidades das diversas espécies de contrato, “à luz de uma regra de adaptabilidade inerente à condição instrumental do processo.”[10]
Sobre a possibilidade de eleição arbitrária
Ainda que caracterizada incompatibilidade entre a norma especial e o art. 53 do CDC, a situação antinômica há de ser solucionada pelo critério da especialidade[11], em razão da diferenciação de categorias,[12] e da cronologia, não se admitindo a possibilidade de eleição arbitrária, seja pela parte, seja pelo magistrado, de critério distinto daquele particularizado pela lei.
Bem a propósito, em relação à alienação fiduciária de bens móveis infungíveis, Nelson Nery Jr observa que o art. 53 do CDC se limita a dispor que “não se poderá pactuar a perda total das prestações pagas”, remetendo ao critério definido pelo Decreto-lei 911/1969 para “venda do bem alienado fiduciariamente, a fim de que seja pago todo o débito do consumidor junto ao fornecedor, credor fiduciário, revertendo-se o saldo, se houver, para o patrimônio do consumidor.” [13]
Bem ponderados os fundamentos em que se baseiam a diretriz jurisprudencial do STJ e as normas do § 14 no art. 67-A da Lei 4.591/1964 e o § 3º do art. 32-A da Lei 6.766/1979, com a redação dada pela Lei 13.786/2018, a superação da controvérsia delimitada no Tema 1.095/STJ mostra-se necessária de modo a assegurar previsibilidade capaz de infundir nos cidadãos e nos agentes econômicos a confiança legítima em que seus direitos e suas obrigações serão exigíveis tal como previstos nas normas legais que os disciplinam.
Referências:
[1] Súmula 543/STJ: “Na hipótese de resolução de contrato de promessa de compra e venda de imóvel submetido ao Código de Defesa do Consumidor, deve ocorrer a imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador – integralmente, em caso de culpa exclusiva do promitente vendedor/construtor, ou parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento.”
[2] “Apelação cível. Compra e venda de imóvel com cláusula de alienação fiduciária. Consolidação da propriedade em favor da ré. Pedido de devolução dos valores pagos. (…). Existência de pacto acessório de alienação fiduciária em garantia não impede o desfazimento do negócio jurídico. Confusão entre credora fiduciária e alienante. Situação que evidencia o intuito de burlar o direito dos adquirentes de desfazer o negócio jurídico. Impossibilidade. Considerada a natureza jurídica de compromisso de compra e venda do imóvel. (…). Devolução das parcelas pagas. Aplicação dos princípios da equidade e da boa-fé que regem as relações de consumo, bem como o do equilíbrio contratual. Interpretação dos artigos 51 e 53 do Código de Defesa do Consumidor. (…). Alteração da r. sentença para determinar que a ré devolva aos autores 90% dos valores pagos. Sucumbência invertida. Resultado. Recurso provido parcialmente.” (TJSP, 9ª Câmara de Direito Privado, Apelação Cível 1007775-16.2018.8.26.0100).
[3] Lei 8.078/1990: “Art. 53. Nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado.”
[4] Lei 9.514/1997: “Art. 27. (…). § 4º Nos cinco dias que se seguirem à venda do imóvel em leilão, o c redor entregará ao devedor a importância que sobejar…”
[5] “Agravo interno. Recurso especial. Direito civil e processual civil. Promessa de compra e venda. Incorporação imobiliária. Alienação fiduciária em garantia. Desistência do comprador. Restituição de parcelas pagas nos termos da súmula 543/STJ. Descabimento. Necessidade de leilão extrajudicial do bem. Prevalência da Lei 9.514/1997 ante o CDC. Critério da especialidade. Jurisprudência pacífica desta corte superior. Pedido de restituição julgado improcedente.” (AgInt no REsp 1823174-SP, rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, 3ª Turma, DJe 17.6.2021).
[6] “Agravo regimental em agravo de instrumento. Alienação fiduciária de bem imóvel. Alegada violação do art. 53 do CDC. Restituição dos valores pagos. Prevalência das regras contidas no art. 27, §§ 4º, 5º e 6º, da Lei 9.514/1997. Decisão reconsiderada. Agravo de instrumento improvido” (AgRg no Agravo de Instrumento 932.750-SP, rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa; AgRg nos EDcl no AgRg no AgIn 932.750-SP, rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 8/6/2010). Destaca-se do voto do relator para o Agravo Regimental, Ministro Quaglia Barbosa: “Em verdade, a situação fática dos autos discrepa daquela em que firmado o entendimento desta Corte Superior, conforme julgados colacionados; trata-se, in casu, de alienação fiduciária em garantia de bens imóveis e não de simples promessa de compra e venda (…); a solução da controvérsia, seja ela buscada no âmbito do conflito de normas, seja pela ótica da inexistência de conflitos entre os dispositivos normativos em questão, leva à prevalência da norma específica de regência da alienação fiduciária de bens imóveis, concluindo-se, por conseguinte, pelo descabimento da pretensão”.
[7] AgInt no REsp 1856772, rel. Min. Moura Ribeiro, DJe 22.3.2021; REsp 1.792.003 – SP – Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 15.06.2021; AgInt no REsp 1.876,090-SP – Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, 15.6.2021.
[8] Lei 4.591/1964: “Art. 67-A. (…). § 14. Nas hipóteses de leilão de imóvel objeto de contrato de compra e venda com pagamento parcelado, com ou sem garantia real, de promessa de compra e venda ou de cessão e de compra e venda com pacto adjeto de contratos de alienação fiduciária em garantia, realizado o leilão no contexto de execução judicial ou de procedimento extrajudicial de execução ou de resolução, a restituição far-se-á de acordo com os critérios estabelecidos na respectiva lei especial ou com as normas aplicáveis à execução em geral.”
Lei 6.766/1979: “Art. 32-A. Em caso de resolução contratual por fato imputado ao adquirente, respeitado o disposto no § 2º deste artigo, deverão ser restituídos os valores pagos por ele, atualizados com base no índice contratualmente estabelecido para a correção monetária das parcelas do preço do imóvel, podendo ser descontados dos valores pagos os seguintes itens: (…). § 3o O procedimento previsto neste artigo não se aplica aos contratos e escrituras de compra e venda de lote sob a modalidade de alienação fiduciária nos termos da Lei n° 9.514, de 20 de novembro de 1997.”
[9] Tratamos dos pressupostos da resolução e do interesse processual na 7ª edição da obra Alienação Fiduciária – Negócio Fiduciário, pp. 357/392.
[10] DINAMARCO, Cândido Rangel, Instituições de Direito Processual Civil. São Paulo: Malheiros, 8. ed., 2016, v. I, p. 251.
[11] Ao apreciar aparente conflito entre as normas gerais do CDC e as da Convenção de Varsóvia, que se classifica como lei ordinária especial, a respeito de indenização por extravio de bagagem, o Supremo Tribunal Federal, no RE 636.331-RJ, com repercussão geral, fixou tese segundo a qual “devem prevalecer, mesmo nas relações de consumo, as disposições previstas nos acordos internacionais a que se refere o art. 178 da Constituição Federal, haja vista se tratar de lex specialis.”
[12] “A passagem da regra geral à regra especial corresponde a um processo natural de diferenciação das categorias, e a uma descoberta gradual, por parte do legislador, dessa diferenciação. Verificada ou descoberta a diferenciação, a persistência na regra geral importaria no tratamento igual de pessoas que pertencem a categorias diferentes, e, portanto, numa injustiça. Entende-se, portanto, por que a lei especial deva prevalecer sobre a geral: ela representa um momento ineliminável do desenvolvimento de um ordenamento. Bloquear a lei especial frente à geral significaria paralisar esse desenvolvimento” (BOBBIO, Norberto, Teoria do ordenamento jurídico. Brasília: Editora UNB, 1997, p. 90).
[13] NERY JR., Nelson et alii, Código Brasileiro de Defesa do Consumidor – Comentários pelos autores do anteprojeto – Comentário ao art. 53. Rio de Janeiro: Gen-Forense, 10. ed., 2011, p. 622/623/624. GRINOVER, Ada Pelegrini, BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcellos e, FINK, Daniel Roberto, FILOMENO, José Geraldo Brino, NERY Jr., Nelson e DENARI, Zelmo.Melhim Namem Chalhub
Especialista em Direito Privado pela Universidade Federal Fluminense. Membro efetivo do Instituto dos Advogados Brasileiros, da Academia Brasileira de Direito Civil e da Academia Brasileira de Direito Registral Imobiliário. Autor. Advogado.
Fonte: GenJurídico