A criação de um observatório nacional de conflitos fundiários e possessórios e a necessidade de capacitar juízes e juízas sobre temas ligados a esses conflitos. Essas são algumas das recomendações apresentadas na conclusão da pesquisa “Conflitos fundiários coletivos urbanos e rurais: uma visão das ações possessórias de acordo com o impacto do Novo Código de Processo Civil”, divulgada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) nessa quinta-feira (27/5).
Acesse o relatório da pesquisa
O secretário especial de Programas, Pesquisas e Gestão Estratégica do CNJ, Marcus Lívio Gomes, afirmou que o país precisa de um programa de regularização fundiária não só urbana, mas principalmente rural. “A maioria dos males que resulta no desmatamento florestal tem como pano de fundo a desorganização do processo de regularização fundiária. É um problema crônico, que se arrasta há séculos. Um tema sensível e caro à sociedade brasileira. Esse estudo é uma contribuição para avançarmos na superação desses desafios.”
O levantamento foi desenvolvido pelo Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), em parceria com o Instituto Pólis, na quarta edição da Série Justiça Pesquisa. Ele analisou processos ligados a questões fundiárias que tramitaram na Justiça de 2011 a 2019. Entre as várias sinalizações dadas pela equipe de pesquisa, destaca-se que, no período, aproximadamente 260 mil processos sobre o tema foram ajuizados na Justiça brasileira – que pode variar de assunto, passando por processos relativos a ‘rolezinho’ no shopping, desocupação ou ocupação de prédio, questões fundiárias ligadas a terras indígenas ou quilombolas, entre outros.
Os temas são tratados, no entanto, como uma questão de posse e propriedade – e menos como questões relativas ao direito à moradia, à vida, segundo as pesquisadoras. “A função social aparece pouco nos tribunais. Isso ficou revelado na análise dos mil processos no estudo de casos mapeados na cidade de São Paulo”, conta Danielle Klintowitz, coordenadora-geral do Instituto Pólis. Ela aponta que direito à moradia e função social da propriedade são expressões que aparecem em menos de 0,02% nas ações analisadas.
A coordenadora do Instituto Insper, Bianca Tavolari, reforçou a baixa permeabilidade dos conflitos de fundo com um exemplo. “Quase 18% dos imóveis mapeados pela pesquisa em São Paulo estavam em zonas especiais de interesse social [territórios destinados predominantemente à moradia de pessoas com baixa renda]. Das mil ações, apenas uma fala na função social da propriedade. O plano diretor urbanístico da cidade garante o direito à moradia, mas, ainda assim, isso não fica exposto na ação. É como se fosse uma lei menos importante.”
O estudo levantou ainda o impacto do novo Código de Processo Civil – aprovado em 2015 e que passou a vigorar em 2016 –, em relação às questões fundiárias, que trouxe a alteração em relação ao reconhecimento da tutela coletiva da posse (antes de 2015 não era reconhecido) e o estímulo da solução autocompositiva (mediação e conciliação) para lidar com o tema.
Capacitação
A partir do estudo dos problemas, a pesquisa levantou uma lista de recomendações que serão entregues ao CNJ. A criação de um observatório nacional de conflitos fundiários e possessórios busca que – por meio de grupos de estudos – essas ações sejam analisadas de maneira mais atenta e padronizada. Outra sugestão está na determinação de critérios objetivos para citação das partes e na criação de estruturas específicas para permitir audiências de conciliação e ou mediação.
Os especialistas também alertaram para a necessidade de capacitação de magistrados e magistradas sobre os temas ligados a questões fundiárias, assim como a oferta de apoio técnico multidisciplinar na condução de inspeções judiciais, assim como de audiências de justificação e mediação. Outro ponto relevante de destaque é a constatação de violações de direitos no cumprimento das decisões. Segundo o estudo, os juízos precisam estar mais envolvidos na determinação da forma de cumprimento das sentenças e na criação de protocolos públicos para mitigarem essas violações.
A pesquisa também revelou que não houve impacto significativo a implementação do Novo Código de Processo Civil sobre os conflitos fundiários. E que a realização das audiências de conciliação para essas questões ainda é um ponto que precisa ser padronizado e efetivado.
Promotora de Justiça no Pará, Eliane Moreira defendeu o uso do instrumento de autocomposição na questão fundiária. Para ela, o Judiciário começou a mudar de cara quando esse instrumento passou a ser valorizado e colocado em prática. “Ainda temos um gap estrutural para superar, mas destacaria como o DNA do novo CPC nas ações possessórias coletivas a aplicação da mediação. Ainda tem sido usada de forma meio imprecisa; a aplicação precisa ser aprimorada.”
Para o coordenador do Núcleo de Urbanismo da Defensoria Pública de São Paulo, Allan Ramalho Ferreira, um dos pontos mais críticos no trabalho da defensoria nesse tema é a falta de políticas habitacionais que possam oferecer soluções aos impasses. Ele também apontou ser necessário maior aproximação do Sistema de Justiça com a comunidade. “Percebemos o distanciamento dos órgãos pelas poucas inspeções nos locais de conflito.”
O defensor Rafael Negreiros Dantas de Lima destacou a necessidade de capacitação dos diferentes atores, uma vez que os conflitos fundiários variam muito de acordo com as regiões do país. Já o especialista em direito tributário e direito público Heleno Taveira Torres, que coordenou o encontro virtual, afirmou que a pesquisa é um instrumento fundamental que a sociedade passa a ter para lidar com o tema. “São dados que qualificam o debate e permitirão que os órgãos públicos desenvolvam políticas bem direcionadas.”
Seminários
A apresentação da pesquisa “Conflitos fundiários coletivos urbanos e rurais: uma visão das ações possessórias de acordo com o impacto do Novo Código de Processo Civil” faz parte do ciclo de Seminários de Pesquisas Empíricas Aplicadas a Políticas Judiciárias. Os seminários ocorrem todas as quintas-feiras com o objetivo de promover a discussão de pesquisas voltadas ao Poder Judiciário e a troca de experiências entre servidores e servidoras públicos, pesquisadores e pesquisadoras, estudantes e pessoas interessadas na produção de pesquisas empíricas e metodologias de geração de dados.
Fonte: CNJ