Dia nacional de adoção é dedicado ao tema e chama a atenção para a disparidade entre desejo dos pais e perfil de crianças e adolescentes que esperam ser adotados
A história de uma família foi transformada desde o fim de janeiro deste ano. Depois de 20 anos de casados e desde 2019 na fila de adoção, o casal Leila e Vilmar acolheu a filha que aguardava, Ana Sofia*, de 13 anos.
Moradores de Goiânia/GO, eles percorreram 750km até a Comarca de Várzea da Palma, no Norte de Minas, para encontrar a filha, que morava em uma instituição de acolhimento havia pouco mais de um ano. Para os três, o Dia Nacional da Adoção, celebrado nesta terça (25/5), tem um significado diferente e especial, que em muito ultrapassa o que dizem as campanhas. Para além dos trâmites judiciais e burocráticos, a adoção para eles é sinônimo de amor, de afeto e de laços que têm sido fortalecidos dia a dia na convivência familiar.
Para o casal, ainda é impossível contar a história sem se emocionar. Os detalhes da adoção têm coincidências que parecem ter saído de um roteiro de novela. E nem se pode falar ainda em final feliz, porque, para eles, a jornada de alegrias e desafios está apenas começando. “Fizemos diversos tratamentos, fertilização e investigações. Mas o fato é que nunca conseguimos ter filhos biológicos. Em 2019, decidimos entrar na fila da adoção. Fizemos o curso e em pouco mais de três meses já estávamos habilitados”, disse Leila.
Inicialmente, a filha pretendida deveria ter entre 2 e 4 anos. “Começamos a participar de grupos de apoio à adoção e fomos amadurecendo a ideia de aumentar um pouco a idade. Ampliamos para até 6 anos; depois, para 8; e, por fim, para 11”, lembra Leila. O casal foi então adicionado a um grupo de busca ativa de pretendentes. No dia seguinte à inclusão no grupo, a foto da adolescente foi publicada (com autorização do juiz), com a identificação “Sofia, de 13 anos”.
Coincidências
A publicação da foto mexeu com o casal, que viu e reviu a imagem, buscando na fé e no coração uma direção para tomar a decisão. “Quando escolhemos as localidades onde estávamos dispostos a adotar, colocamos Goiás, Distrito Federal e Minas Gerais. E, naquele dia da inscrição, o Vilmar disse que achava que nossa filha viria de Minas Gerais.” Vilmar ainda teve outra surpresa. “Ao longo do casamento, sempre disse que teríamos uma filha que se chamaria Ana Sofia. Então, quando apareceu o nome 'Sofia', já ficamos felizes com a coincidência”, relata o pai. Porém, quando a assistente social fez o contato para iniciar a aproximação, ela informou ao casal que o nome da menina era, na verdade, Ana Sofia.
No Brasil, a adoção de crianças na faixa etária de Ana Sofia é rara, porque os pretendentes aguardam anos na fila, à espera de bebês ou crianças com até 4 anos. “Realizamos campanhas com o objetivo de mostrar para as pessoas que desejam exercer a maternidade e a paternidade que o ideal não é o real. O perfil das crianças idealizadas não coincide com as que estão nos abrigos. Por isso, a disparidade é tão grande entre o número de pessoas dispostas a adotar e o número de crianças e adolescentes que podem ser adotados”, afirma a desembargadora Valéria Rodrigues Queiroz, superintendente da Coordenadoria da Infância e da Juventude (Coinj) do Tribunal de Justiça de Minas Gerais e integrante da Comissão Estadual Judiciária de Adoção (Ceja).
Diagnóstico
Atualmente, há 3.404 adolescentes acolhidos em Minas Gerais e 4.777 pretendentes. Este ano, 25 adoções foram finalizadas no estado. Em 2020, foram 115 (uma delas foi uma adoção internacional) e, em 2019, 644. O número de crianças e adolescentes disponíveis para adoção vai aumentando, à medida que a faixa etária também é maior.
No fim da última semana, o Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA) registrava 1.223 pretendentes em Minas Gerais aguardando crianças até 2 anos e apenas sete pretendentes dispostos a adotar um adolescente com até 16 anos. Para os jovens com grupos de irmãos ou com doenças e/ou deficiências identificadas, as chances de encontrar uma nova família são ainda mais remotas.
Conforme um relatório diagnóstico, publicado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em maio de 2020, Minas Gerais ocupa o quarto lugar no cenário nacional em relação aos números de adoção no período avaliado (de outubro de 2019 a maio de 2020).
Resistência
A juíza Aldina de Carvalho Soares, que é auxiliar da Corregedoria-Geral de Justiça e superintendente da Ceja, afirma que a adoção tardia é pouco comum no Brasil. “A preferência dos pais adotivos é por crianças com pouca idade. Até 12 anos, a procura é pequena. E, após essa idade, as chances diminuem ainda mais. Apenas 0,3% dos pretendentes desejam adotar adolescentes, que representam 77% do total de crianças e adolescentes disponíveis no SNA”, detalha.
O juiz Pedro Fernandes Alonso Alves Pereira, titular da 2ª Vara Cível, Criminal e da Infância e da Juventude de Várzea da Palma e também membro da Coinj, confirma que o maior desafio à adoção hoje é a discrepância entre o perfil das crianças que estão no cadastro nacional e o perfil de filho ou filha imaginado pelos pretendentes. “Os dados do SNA evidenciam que a quantidade de pessoas dispostas a adotar no Brasil é superior à quantidade de crianças disponíveis para a adoção. As crianças pequenas de até 3 ou 4 anos conseguem ser adotadas rapidamente, pois esse é o perfil preferido dos adotantes. As crianças maiores e aquelas que possuem irmãos na mesma condição encontram resistência. Há uma baixa disposição dos pretendentes para adotar mais de uma criança ao mesmo tempo”, descreve o magistrado.
Para o juiz, que acompanha o desenrolar do processo de adoção de Ana Sofia, outro entrave para o avanço dos números da adoção no País é a estrutura muitas vezes insuficiente para atuar nessa área. “Em muitas comarcas, faltam profissionais, o que acaba dificultando tirar do papel a prioridade absoluta que é a infância. Além disso, os processos de adoção exigem a intervenção de equipes técnicas multidisciplinares, também escassas. Tudo isso impede que os processos sejam julgados com agilidade.”
Cadastro
O magistrado defende a necessidade de combater a adoção dirigida, que é quando os pretendentes burlam o cadastro nacional de adoção, e de esclarecer aos pais que não querem ficar com seus filhos que a entrega da criança pode ser feita judicialmente, sem medo de sofrer constrangimento ou exposição.
A desembargadora Valéria Rodrigues Queiroz ressalta a importância de que os pretendentes compreendam que a adoção é o exercício da maternidade e da paternidade. “São pessoas que desejam ser mães ou pais e que, por questões biológicas ou fatores diversos, terão filhos do coração”, diz. A magistrada destaca que a adoção não é um ato de caridade. “Para quem quer ser solidário ou praticar atos de amor, há outros mecanismos e projetos, como o apadrinhamento afetivo e/ou financeiro das crianças e adolescentes que estão institucionalizados”, sugere.
“Muito mais do que dar um filho a quem não tem, seja por não poder ou por qualquer outra motivação, o real sentido da adoção é dar uma família a crianças e adolescentes que não a têm, e efetivar seu direito fundamental à convivência familiar previsto na Constituição e no Estatuto da Criança e do Adolescente”, afirma o juiz Pedro Fernandes Alonso Alves Pereira.
Convivência
A juíza Aldina de Carvalho Soares ressalta a importância que a convivência familiar e a inserção em um contexto social têm para o desenvolvimento de qualquer pessoa. “A adoção é o instituto jurídico que permite que crianças e adolescentes, órfãos ou cujos pais foram destituídos do poder familiar por razões de abandono, negligência e/ou maus-tratos, tornem-se filhos de pessoas que não os geraram”, afirma. A magistrada acrescenta que a estrutura familiar é imprescindível para que os sujeitos possam se constituir psiquicamente e se desenvolver na sociedade.
A juíza afirma ainda que o período de pandemia trouxe mais desafios para o acolhimento e a adoção de crianças no estado. A covid-19 atingiu os serviços de acolhimento, com o adoecimento dos profissionais, dos membros das famílias acolhedoras e até das crianças e adolescentes institucionalizados. “Mais impactante do que a doença em si foram as mudanças necessárias para manter os acolhidos e os educadores protegidos, além das questões trazidas com a restrição de contatos e da longa permanência no mesmo espaço coletivo”, conta a magistrada.
Diante desse cenário, foi necessário desenvolver inúmeras estratégias, que exigiram esforço, criatividade e compromisso dos profissionais dos serviços de acolhimento, de forma a minimizar os impactos da pandemia. “Sem contar imediatamente com a ação articulada da rede intersetorial, os serviços de acolhimento se reinventaram. Eles foram obrigados a trabalhar com menos profissionais. Muitos descobriram saídas antes inimagináveis, que reafirmaram o sentido da transitoriedade da medida protetiva e a priorização da reintegração familiar e comunitária”, lembra.
Pandemia
A juíza explica ainda que outros fatores foram desafiadores, como a dificuldade de os pretendentes se deslocarem para iniciar a aproximação e/ou o estágio de convivência, a diminuição da renda econômica de muitas famílias que estavam na fila da adoção e até processos de luto, em razão da perda de familiares. Nesse contexto, os atendimentos por meio das tecnologias de informação e comunicação foram fundamentais.
“Logo após o início da crise sanitária, o CNJ regulamentou o teletrabalho no âmbito do Poder Judiciário, os processos começaram a ser virtualizados e as audiências passaram a ser realizadas de forma remota, por videoconferência”, relata o juiz Pedro Fernandes Alonso Alves Pereira.
Ele conta que, em Várzea da Palma, a assistente social forense passou a utilizar recursos tecnológicos e aplicativos de celular para realizar os estudos sociais. Os oficiais de justiça também adotaram as novas ferramentas para os expedientes de citação e intimação. “Além disso, o TJMG passou a oferecer o curso de capacitação aos pretendentes à adoção por meio da educação a distância”, descreve, explicando que houve uma adaptação à nova realidade, mantendo a prioridade absoluta a esse tipo de processo e zelando pela proteção integral de crianças e adolescentes.
Ações
No TJMG, a Coinj vem desenvolvendo várias outras ações voltadas para a adoção. Entre elas, está o incentivo ao uso do aplicativo A.dot, por meio do qual os pretendentes têm como conhecer melhor o perfil das crianças e adolescentes disponíveis para a adoção. Já o programa Entrega Legal conscientiza as mães que não desejam ficar com seus bebês de que é possível entregá-los legalmente para a adoção, mantendo o anonimato, em vez de se desfazerem das crianças por medo de serem presas.
Outra linha de ação da Coinj é o apadrinhamento. “Muitas pessoas, com seus medos e preconceitos, preferem apadrinhar a adotar. Muitas vezes, contudo, ao longo do apadrinhamento, esses medos são superados, e a criança apadrinhada acaba adotada”, disse a desembargadora Valéria Rodrigues Queiroz.
A magistrada antecipa que, em breve, a Coinj fará o lançamento da campanha “Adote um Futuro”. O objetivo dessa nova iniciativa é que as pessoas que não desejam adotar, mas têm interesse em ajudar os adolescentes que vivem em abrigos, possam patrocinar cursos profissionalizantes para os que têm mais de 16 anos. “São jovens que sairão do abrigo em pouco tempo, sem destino nenhum e sem família, e que, portanto, precisam aprender a se sustentar”, detalha.
Nova vida
Para quem percorre o caminho da adoção, Leila e Vilmar aconselham: “Amadureçam a ideia. Há partes difíceis e burocráticas, mas tudo compensa. Não desistam. A hora vai chegar”. No fim de abril, Ana Sofia chegou a sua nova casa, em Goiânia. A família, muito unida, preparou a festinha de boas-vindas. Os colegas de trabalho do pai enviaram presentes. A adolescente ganhou bolsa, tênis, fone de ouvido, relógio. Ainda não deu tempo de conhecer a família inteira, mas Ana Sofia conta que a visita à casa dos avós nos finais de semana é sagrada e obrigatória. “Meus avós me enchem de doces e minha mãe fica dizendo para eles não fazerem isso”, ri, com a alegria de quem ganhou família, vínculos, paparicação, histórias para contar e, acima de tudo, um futuro.
“Antes, eu gostava de ficar na rua e quase não ia à escola. Eu não gosto muito de estudar”, revela. Mas a nova vida já trouxe suas responsabilidades. Tão logo chegou, a adolescente foi matriculada numa escola particular. Os pais querem que ela se esforce nos estudos e se concentre nas aulas online e presenciais. “Eu gostaria de fazer Medicina. E o meu pai diz que, para isso, preciso estudar muito”, afirma Ana Sofia. A rotina, em casa, inclui a colaboração na hora de preparar as refeições e a participação nas atividades diárias comuns a qualquer família com um adolescente. Ansiosos, pais e filha aguardam a última audiência, agendada para junho, para a finalização do processo de adoção.
Fonte: TJMG