I – O ENTENDIMENTO DO STJ
Segundo o Globo, em seu site, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu, no dia 20 de abril do corrente ano, que condomínios podem proibir moradores de alugarem imóveis por temporada por meio do site Airbnb.
A 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que convenções de condomínio podem ser usadas para a vedação desse tipo de locação. O placar foi de 3 votos a 1.
O processo que trata de um caso específico de um condomínio de Porto Alegre que foi à Justiça contra condôminos por uso do aplicativo para alugar seus imóveis foi o primeiro a chegar à Corte, mas não terá o entendimento aplicado automaticamente a outras ações do gênero. No entanto, abre um precedente que pode ser utilizado em decisões futuras.
Para a corrente vencedora na Corte superior, se a convenção decidir vedar qualquer destinação dos imóveis que não seja a meramente residencial, os proprietários são obrigados a cumprir a determinação, sob pena de penalidades como o pagamento de multa.
“Um condomínio estritamente residencial não se amolda a esse tipo de hospedagem. O condômino é obrigado a dar às suas unidades a mesma destinação que a edificação, ou seja, a residencial, carecendo de expressa autorização para destinação diversa, inclusive para hospedagem remunerada”, votou o ministro Raul Araújo.
De acordo com o ministro, cujo voto conduziu o julgamento, os próprios réus reconheceram, nas instâncias inferiores da Justiça, terem usado os imóveis como uma espécie de “hostel” — o que caracteriza justamente o fim comercial conferido aos apartamentos.
O ministro Antônio Carlos afirmou que não está em questão a legalidade do Airbnb, apenas a possibilidade de o condomínio poder ou não proibir os aluguéis de imóveis por meio da plataforma. “A convenção tem poderes para disciplinar e vedar essa espécie de uso não residencial do imóvel”, disse.
Segundo ele, essa restrição não viola o direito de propriedade. O ministro observou, entretanto, que eventuais abusos e exageros fixados pela convenção deverão ser examinados caso a caso pelo Poder Judiciário.
Vencido, o relator, ministro Luís Felipe Salomão, presidente do colegiado — que já havia votado no início do julgamento do caso, em outubro de 2019 —, afirmou não concordar que um argumento de restrição genérico, como o chamado “desvirtuamento da finalidade residencial do prédio”, possa estabelecer a proibição.
Ele observou que a restrição vai de encontro aos avanços da sociedade moderna, que vive em meio à economia do compartilhamento, e que a locação via Airbnb incentiva a inovação e estimula os direitos à livre iniciativa e à concorrência.
Formaram maioria os ministros Araújo, Isabel Galotti e Antônio Carlos Ferreira. O ministro Marco Buzzi estava ausente por motivos de licença médica.
II – A LOCAÇÃO POR TEMPORADA
A locação é contrato em que há uso da coisa em que o locador se obriga a ceder ao locatário o uso e o gozo da coisa infungível, por tempo determinado ou não, mediante certa retribuição(aluguel).
Como ensinam Rogério Lauria Tucci e Álvaro Villaça Azevedo(Tratado de Locação Predial Urbana, primeiro volume, 1ª edição, pág. 26), na locação de prédio urbano, o contrato evidencia o relacionamento jurídico entre locador e locatário, pelo qual, sendo para fins residenciais, aquele se compromete a ceder o uso, ou o uso e o gozo, de um imóvel para que este o habite, com sua família, temporariamente, pagando o inquilino sempre, em sua retribuição, o aluguel.
Tem-se do Código Civil:
Art. 23 – O locatário é obrigado a: II – servir-se do imóvel, para o uso convencionado ou presumido, compatível com a natureza deste e com o fim a que se destina, devendo tratá-lo com o mesmo cuidado com o se fosse seu.
Observo a questão da locação por temporada.
Artigo 48 da Lei 8.245 de 1991, o qual diz:
“Considera-se locação para temporada aquela destinada à residência temporária do locatário, para prática de lazer, realização de cursos, tratamento de saúde, feitura de obras em seu imóvel, e outros fatos que decorrem tão-somente de determinado tempo, e contratada por prazo não superior a noventa dias, esteja ou não mobiliado o imóvel.”
A locação por temporada é aquela praticada tanto por pessoa física quanto pessoa jurídica patrimonial (pessoa jurídica patrimonial diz respeito, por exemplo, as empresas abertas por famílias para administrar seus bens), que transfere a posse do seu imóvel a outra pessoa mediante pagamento, sem que o período de locação ultrapasse o prazo de 90 dias.
A formalização pode ocorrer diretamente entre o locatário/inquilino e o administrador de temporada ou com intermediação de um prestador de serviços regulamentado, no caso um corretor de imóveis.
Diversa é a hospedagem prevista nos artigos 23 e 24 da Lei Federal nº 11.771 de 2008:
“Consideram-se meios de hospedagem os empreendimentos ou estabelecimentos, independentemente de sua forma de constituição, destinados a prestar serviços de alojamento temporário, ofertados em unidades de frequência individual e de uso exclusivo do hóspede…’’
“Os meios de hospedagem, para obter o cadastramento, devem preencher pelo menos um dos seguintes requisitos:
I – possuir licença de funcionamento, expedida pela autoridade competente, para prestar serviços de hospedagem, podendo tal licença objetivar somente partes da edificação;
II – no caso dos empreendimentos ou estabelecimentos conhecidos como condomínio hoteleiro, flat, flat-hotel, hotel-residence, loft, apart-hotel, apart-service condominial, condohotel e similares, possuir licença edilícia de construção ou certificado de conclusão de construção, expedidos pela autoridade competente…”
A locação por temporada entrou na legislação através do artigo 54, II, da Lei 6.649/79. Ao instituí-lo aquela lei limitou, de forma desnecessária, a situação do prédio a orla marítima e ás estações climáticas.
A Lei 8.245/91 deu a essas locações o prazo não excedente a 90 dias, como dito. Como explicou José da Silva Pacheco(Tratado das Locações, Ações de Despejo e outras, 9ª edição, pág. 384), a finalidade pode ser, indiferentemente, para residência, prática de lazer, realização de cursos, tratamento de saúde, feitura de obras no imóvel em que reside, definitivamente, e outros fatos que decorram não-somente de determinado tempo, tais como estágio, convenção, conferência, simpósio, exposição, ópera, balé, recital, campeonato etc. o imóvel pode estar mobiliado ou vazio. Assim o traço essencial consiste na duração não superior a 90 dias.
A Lei 8.245/91, no parágrafo único do artigo 48, dispõe, em complementação ao artigo 22, inciso V, como obrigação do locador, a descrição, como a prevista no inciso V do artigo 23, em relação ao imóvel, pode constar do próprio contrato de locação ou de anexo, mas sempre com a assinatura do locador e locatário e testemunhas.
A locação por temporada constitui uma exceção a regra proibitiva da cobrança antecipada do aluguel(artigo 20). Pode constar, explicitamente, no contrato. O recibo deve ser discriminado, com as parcelas correspondentes ao aluguel e encargos(artigo 22, VI).
O artigo 37 da Lei 8.245/91 admite a exigência, além do pagamento antecipado de garantias previstas naquele artigo.
Se, ao final do contrato para temporada, o locatário não sair do imóvel, e continuar a habitá-lo, poderá ocorrer: a) imediata ação do locador para reaver o imóvel; b) omissão do locador, fato que fará prorrogar o contrato por tempo indeterminado.
III – OS PROBLEMAS GERADOS PELA LOCAÇÃO POR TEMPORADA
Ora, para o problema em discussão há conhecida cláusula contratual em que consta:
“O LOCATÁRIO, desde já, declara ter a inteira ciência das regras que regem o condomínio do Edifício…, onde situa-se o imóvel locado, comprometendo-se a observá-las e cumpri-las.”
Nos casos dos Condomínios com destinação exclusivamente residencial, há notícias de muitos condôminos-proprietários que estão realizado várias locações em curto espaço de tempo (ex. 1, 2, 3 dias ou para um final de semana), locando o imóvel para diversas pessoas, estranhas ao condomínio, semelhante ao que ocorre nas estadias em hotéis, flats e pousadas.
Há notícias até mesmo de um comércio paralelo, para a exploração de atividades sexuais, com a frequência e circulação de inúmeros desconhecidos no Condomínio.
Como bem disse Alexandre Callé(Locação para temporada nos condomínios), “sequer existe o mínimo de identificação dos hóspedes no momento de sua chegada ao Condomínio, o que pode ocorrer, inclusive, a qualquer hora do dia ou da noite. Num hotel existe alguém para receber o hóspede e preencher a ficha, mas num condomínio residencial, sequer existe uma portaria 24 (vinte e quatro) horas e toda a responsabilidade cai sobre as costas do síndico.”
Como ainda disse Alexandre Callé(obra citada), ademais, se houver algum dano ou prejuízo ao edifício ou até mesmo aos bens particulares dos condôminos, estes dificilmente serão ressarcidos pelo hóspede que já poderá estar muito longe.
IV – O RESPEITO ÀS REGRAS DO CONDOMÍNIO
Em tese, o proprietário-locador está dando uma destinação diversa da prevista na Convenção, pois, sendo um edifício exclusivamente “residencial”, não poderiam ser realizadas atividades comerciais, lucrativas ou semelhante à um hotel.
Tem-se que:
Segundo o Código Civil, é proibido ao condômino alterar a destinação dada à edificação, fazendo uso de forma diversa da prevista em Convenção:
Art. 1.332. Institui-se o condomínio edilício por ato entre vivos ou testamento, registrado no Cartório de Registro de Imóveis, devendo constar daquele ato, além do disposto em lei especial: III – o fim a que as unidades se destinam.
Art. 1.335. São direitos do condômino: (…) II – usar das partes comuns, conforme a sua destinação, e contanto que não exclua a utilização dos demais compossuidores;
Art. 1.336. São deveres do condômino: (…) IV – dar às suas partes a mesma destinação que tem a edificação, e não as utilizar de maneira prejudicial ao sossego, salubridade e segurança dos possuidores, ou aos bons costumes.
Nesse ponto, lembro que a alteração da destinação do edifício, somente seria possível mediante a realização de assembleia geral, com quórum de aprovação unânime dos condôminos, nos termos do art. 1.351, do Código Civil, in verbis: “(…) a mudança da destinação do edifício, ou da unidade imobiliária, depende da aprovação pela unanimidade dos condôminos”.
Desse modo, sendo o condomínio exclusivamente residencial, não se poderia, a qualquer pretexto, alterar a sua destinação, sem que antes fosse também alterada a convenção pelo quórum exigido na Lei.
Tem-se que do Código Civil:
Art. 1.336. São deveres do condômino: (…) IV – dar às suas partes a mesma destinação que tem a edificação, e não as utilizar de maneira prejudicial ao sossego, salubridade e segurança dos possuidores, ou aos bons costumes.
No artigo 10, inciso II, da Lei do Condomínio e Incorporações, é defeso a qualquer condômino usar a unidade de forma nociva ou perigosa ao sossego, à salubridade e à segurança dos demais condôminos.
Ademais, na linha traçada no antigo Código Civil de 1916, artigo 554, o vizinho que causar prejuízo ao sossego, saúde, segurança, deve ser responsabilizado.
Há correspondência no artigo 1.277 do Código Civil de 2002:
Art. 1.277. O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha.
Parágrafo único. Proíbem-se as interferências considerando-se a natureza da utilização, a localização do prédio, atendidas as normas que distribuem as edificações em zonas, e os limites ordinários de tolerância dos moradores da vizinhança.
A regra limita o conteúdo do direito de propriedade do proprietário vizinho, nascendo no outro proprietário o direito de vizinhança.
IV – JURISPRUDÊNCIA
Observo jurisprudência do TJSP sobre a matéria:
“Os autores proprietários de um apartamento de veraneio no condomínio requerido, confessadamente utilizado para locação por temporada ou fim de semana, insurgem-se contra a limitação de ocupantes por unidade residencial, estabelecida em assembleia geral, para os casos de locação ou empréstimo. A convenção condominial estabelece que (…) as unidades autônomas do edifício (…) se destinam exclusivamente a fins residenciais, vedado, portanto, seu uso para qualquer outro fim, tendo cada proprietário o direito de usar, gozar e dispor de sua propriedade exclusiva, como melhor lhe aprouver, desde que não prejudique igual direito dos demais condôminos, e não comprometa a segurança, solidez e o nome do edifício, e nem de às unidades autônomas destinação diversa da finalidade do prédio. (…) Ao que se tem, não estipulou a assembleia geral nenhuma alteração na convenção condominial nem no regimento interno. Ao revés, e sem interferir no direito de propriedade dos autores, apenas fixou regra para casos específicos. Estabelecendo, como lhe era permitido até mesmo por imperativo de segurança e do bom nome do edifício -, diretrizes para hipóteses de empréstimo ou locação a terceiros estranhos ao quadro de proprietários do condomínio. Ademais, a anulação da decisão assemblear perquirida pelos autores confessadamente busca resguardar unicamente a exploração econômica do bem. O que, em assim sendo, além da segurança, deixa de observar o direito dos outros condôminos em não se verem às voltas com toda sorte de aborrecimentos causados pelo excesso de ocupantes nas unidades locadas ou emprestadas, mormente nos festejos de fim de ano e férias (v. G., falta d’agua ocasionada pela excessiva demanda decorrente da desmesurada lotação de unidades). Por outro lado, como bem consignado pela r. Sentença, “a anulação de assembleia de condomínio somente deve ser decretada quando presentes motivos fortes e suficientes que evidenciem ruptura ao sistema legal ou prejuízo concreto à sociedade condominial. Afora esses casos, as deliberações adotadas por coletividade de condôminos, regularmente reunidos em assembleia, devem ser preservadas. Por fim, consigno que a análise de mérito das matérias tratadas nas normas condominiais, uma vez provenientes de deliberações em assembleias, deve-se restringir à legalidade dos comportamentos dos sujeitos nela inscritos, e não à justeza das deliberações, caso em que os interessados deverão se acudir da própria assembleia geral, seara apta a tratar destes assuntos”. (Apelação nº 0020327-73.2012.8.26.0477. Rel. Luiz Ambra. Praia Grande; 8ª Câm. De Dir. Privado; julgado em 19/01/2015).
Trago ainda, a partir do artigo de Alexandre Callé(obra citada), Acórdão julgado pelo extinto Segundo TAC-SP, em 29.02.2000, nos autos do recurso de Apelação nº 609.498/0-9, da lavra do relator Vieira de Moraes, privilegiando aos interesses coletivos da massa condominial em detrimento ao interesse particular do condômino, fazendo mau uso da unidade naquela edificação:
“Por regra encontrada no artigo 10, inciso II, da já citada Lei do Condomínio e Incorporações, é defeso a qualquer condômino usar a unidade de forma nociva ou perigosa ao sossego, à salubridade e à segurança dos demais condôminos. Essa espécie de propriedade, pois, por sua natureza, apresenta restrições ao exercício do respectivo direito muito mais amplas que aquelas preconizadas pela recorrente. “Consoante lição de João Batista Lopes, ilustre magistrado que já integrou esta Corte, no seu Condomínio, “… A vida em comum, no mesmo edifício, sujeita os condôminos a uma disciplina jurídica especial, em que não há lugar para o individualismo ou o egoísmo… Na solução de conflitos, deverá o juiz dar prevalência, sempre, aos direitos da coletividade condominial e não aos interesses de um único condômino, por mais respeitáveis que sejam… Essa orientação se ajusta perfeitamente aos fins sociais da lei e às exigências do bem comum, na medida em que evita a desarmonia e o dissentimento entre os condôminos, preservando a ordem, a disciplina e a tranquilidade do edifício”. (…) “O exercício da propriedade não pode ser colocado em nível de extremado individualismo, que ignore os interesses coletivos” (in 6a ed. Págs. 153 e 154). Por fim, conclui, “Para que se preserve a harmonia, possível a limitação do número de ocupantes de cada apartamento, desde que o condomínio ou seu representante, com delegação para tal não aja abusivamente.”
V – CONCLUSÕES
Aquele que utiliza a propriedade e aluga seu imóvel a terceiro por temporada, em detrimento das regras de condomínio, está em abuso de direito, pois em confronto com os direitos dos demais proprietários que são postos em Convenção de Condomínio, onde estão reservados os direitos e obrigações dos condôminos.
Concluindo direi que foi correta a decisão emanada do Superior Tribunal de Justiça, a quem cabe a guarda da lei federal.
O programa normativo dos artigos citados e seu domínio da norma foram expressamente respeitados, de sorte a fazer a correta comunhão entre o direito de propriedade e as regras do condomínio, previstas no Código Civil e na Lei nº 4.591/64.
*Rogério Tadeu Romano, procurador regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado
Fonte: Estadão