Procura por planejamento sucessório agora abrange pessoas abaixo de 60 anos
A segunda onda de covid-19 fez crescer ainda mais a procura por planejamentos sucessórios. Depois de um 2020 movimentado, os cartórios passaram a registrar uma boa demanda por testamentos, partilhas e doações. Constituições de holdings e acordos de sócios em empresas familiares também estão entre as medidas adotadas para a organização do patrimônio.
A demanda por planejamento sucessório não está restrita a pessoas acima de 60 anos, grupo de risco para a covid-19. Advogados relatam a procura por jovens. “São pessoas de 40, 50 anos que estavam despreparadas e que trouxeram a percepção de que a morte pode acontecer a qualquer momento”, conta Alessandro Fonseca, sócio da prática de Gestão Patrimonial do escritório Mattos Filho.
Luiz Kignel, sócio do PLKC Advogados, aponta que o perfil do cliente mudou com a pandemia. Antes, eram empresários que buscavam estruturar mudanças na empresa familiar no médio e longo prazos. Agora, são pessoas abaixo dos 40 anos de idade que não pretendem se aposentar ou transferir patrimônio, mas que querem ter um plano caso algo aconteça. “Fazem isso porque a cada dia que abrem o jornal eles tomam o susto. Todos têm histórias de perda no seu círculo social”, diz.
Os registros de testamentos, por exemplo, aumentaram 14% no segundo semestre de 2020, em comparação ao mesmo período do ano anterior, de acordo com o Colégio Notarial do Brasil, que reúne os cartórios de notas. Foram pouco mais de 19 mil no ano zero da pandemia. Nos primeiros três meses deste ano, cerca de 6 mil testamentos foram feitos, superando a média mensal do segundo semestre de 2020. A maioria nos Estados de São Paulo, Rio Grande do Sul e Maranhão.
O aumento é considerado significativo porque o testamento não é obrigatório por lei. Faz quem quer. “Testamento sempre foi tabu porque há certo constrangimento em falar dos próprios bens e de como quer a partilha”, diz o tabelião Andrey Guimarães, diretor do Colégio Notarial do Brasil - Conselho Federal. “Noto que há uma mudança de comportamento no momento em que o tema morte está mais presente nas famílias.”
No caso do Maranhão, o aumento também é justificado por uma questão tributária. Desde 2015, o Estado possui uma das maiores diferenças de alíquota do Imposto sobre a Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) — de até 2% sobre doações feitas em vida e de 3% a 7% sobre o patrimônio transferido depois da morte. “É provável que os testamentos tenham regulado a distribuição do patrimônio feito em vida”, afirma Daniel Tardelli Pessoa, sócio do FCAM Advogados.
Embora em número menor, o volume de doações também vem aumentando. Cresceu 7% na comparação entre os segundos semestres de 2019 e 2020. Foram quase 70 mil transferências de bens em vida. E só nos três primeiros meses deste ano foram registradas 20,5 mil. Uma das formas de doar é com reserva de usufruto, em que o doador, por exemplo, passa a titularidade de ações para os herdeiros, mas continua com o direito de votar e receber dividendos.
Um dos objetivos das doações é evitar o condomínio, quando há vários donos de um bem. “Normalmente há conflito porque um quer vender, o outro não. Ou ainda discussões sobre preço”, afirma o advogado Rodrigo da Cunha, presidente Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).
Alessandro Fonseca, do Mattos Filho, conta que todos os testamentos que fez foram acompanhados das chamadas diretivas antecipadas de vontade, também conhecidas como testamento vital. Por meio desse documento, regulamentado pelo Conselho Federal de Medicina, a pessoa nomeia alguém para tomar decisões no seu lugar caso fique incapacitada por problemas médicos.
Ainda há poucos registros de antecipações de vontade. Mas é possível identificar uma maior preocupação em indicar um curador para situações de incapacidade. No segundo semestre de 2020, foram registrados 332 testamentos vitais. Apenas nos primeiros três meses deste ano, foram 110 — a maioria no Estado de São Paulo.
Advogados afirmam que o atual contexto é convidativo para criar estratégias de planejamentos sucessórios, que envolvem antecipar disputas entre herdeiros, divórcios e outras situações que podem impactar no patrimônio ou na gestão da empresa familiar. “O planejamento é uma foto, mas o filme da vida continua. Então é preciso que o plano seja flexível para poder aparar as arestas”, afirma a advogada Mariana Dias, do FCAM Advogados.
No planejamento sucessório, dizem os especialistas, é preciso analisar as características da família e o tipo de patrimônio que o grupo possui, ou seja, se há mais bens imóveis ou liquidez nos ativos. Uma das ferramentas para blindar as empresas de conflitos familiares, acrescentam, é a governança, que pode envolver acordos de sócios e estruturas empresariais, como as holdings.
Outro instrumento, menos jurídico, é fazer os integrantes da família se sentirem parte do objetivo comum da empresa, seja como administradores ou acionistas. “É preciso separar a sala de jantar da sala de reuniões”, afirma o advogado Luiz Kignel.
Para Márcia Setti, do escritório PLKC Advogados, essa separação envolve, por parte dos pais, tratar os filhos como profissionais, cobrar e remunerar pelo mercado, além de fazer avaliações periódicas de resultado.
De acordo com a advogada Martha Deliberador, que trabalha com empresas familiares há mais de 20 anos, a resolução de conflitos internos é essencial para determinar o futuro da companhia. “Já testemunhei um problema de gestão que remontava ao Natal de 1978, quando um irmão roubou um carrinho do outro”, afirma. “Eles se consideravam rivais, mas eram igualmente importantes e complementares. Só eles não enxergavam isso”.
Por Bárbara Pombo, Valor — São Paulo
Fonte: Valor Econômico