O mercado imobiliário brasileiro tem passado por um processo de crescimento vertiginoso, principalmente na última década, depois de um grande período de estagnação (na década dos anos noventa). Isso ocorre por vários fatores, dos quais podemos citar a estabilidade econômica verificada nos últimos anos, a elaboração por parte do governo federal de políticas de incentivo ao setor, como o programa Minha Casa, Minha Vida e as políticas de concessão de crédito para aquisição da casa própria, além das, não tão recentes, alterações legislativas que acarretaram maior segurança jurídica para a realização de investimentos neste segmento econômico (como alienação fiduciária em garantia de bens imóveis e as demais normas regulamentadoras do mercado de capitais).
Tal aquecimento do setor é, sem dúvida, benéfico, pois combate diretamente o déficit habitacional brasileiro, calculado em mais de 5,4 milhões de habitações, gera empregos e movimenta o mercado de financiamento. Mas esse movimento também teve seu lado negativo.
O Brasil não estava totalmente preparado. Enquanto as empresas do setor comemoravam o aumento gradual e constante do número de unidades comercializadas, verificou-se a escassez de mão de obra qualificada e a falta da matéria-prima para a conclusão de parte das obras.
Isso acarretou atraso na entrega de unidades em todo o país. Como consequência, algumas práticas comerciais adotadas pelas empresas do setor há muitos anos passaram a ser questionadas, inclusive pelo Ministério Público, dando origem a um número expressivo de ações judiciais e à instauração de procedimentos de investigação.
Uma das práticas contestadas, extremamente relevante, refere-se à validade jurídica da cláusula contratual que prevê, em favor das incorporadoras, uma tolerância de até 180 dias para a conclusão das obras dos empreendimentos imobiliários, além do prazo contratual previsto inicialmente: o chamado prazo de tolerância.
Sobre esta questão, deve-se ter em mente que o processo de desenvolvimento de empreendimentos imobiliários é algo extremamente complexo. Agrega a coordenação de um número expressivo de fornecedores, execução de serviços distintos e é um processo sujeito a intervenções e influências externas, das mais diversas naturezas. São estes motivos que tornam a previsão dessa “tolerância” tão essencial para as empresas do setor.
A previsão do prazo de tolerância não é recente. Justamente o contrário. É uma condição consolidada e amplamente utilizada (inclusiva sobre a vigência do Código de Defesa do Consumidor) e, em momento algum, pode ser interpretada como uma afronta a qualquer disposição das normas aplicáveis à matéria — uma vez que não faculta ao incorporador prorrogar o prazo para a entrega da obra conforme sua conveniência e por período indefinido. Trata-se de um prazo de pleno e prévio conhecimento do adquirente.
Em uma tentativa de disciplinar a questão, o Secovi/SP (Sindicato das Empresas de Compra, Venda, Locação e Administração de Imóveis Residenciais e Comerciais de São Paulo) celebrou com o Ministério Público do Estado de São Paulo, por meio da Promotoria de Justiça do Consumidor, em 26 de setembro de 2011, um Termo de Ajustamento de Conduta, pelo qual o MP reconhecia a validade do prazo de tolerância, prevendo-se penalidades pelo atraso na conclusão das obras. Contudo, esse TAC não foi homologado pelo Conselho Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo, permanecendo a matéria sem qualquer orientação.
No Congresso Nacional tramita o Projeto de Lei 178/2011, de autoria do deputado Eli Correia Jr., que visa alterar a Lei 4.591/64, ao inserir o artigo 48-A, para tornar nula de pleno direito, qualquer disposição referente ao prazo de tolerância para a entrega de obras, bem como para instituir multas contra as incorporadoras nas hipóteses de atraso no cumprimento dessa obrigação. A alteração legislativa proposta, mais radical, foi elaborada com base exclusivamente na preocupação com o adquirente da unidade autônoma, sem qualquer consideração com as reais necessidades das empresas do setor e sobre seus impactos, uma vez sancionada.
Em apenso, existem outros dois projetos de lei, o de 1.390/2011, de autoria do deputado Manoel Júnior, que visa instituir tolerância para o atraso na entrega de imóvel de no máximo 90 dias, e o projeto 2.606/2011, de autoria do deputado Aureo Ribeiro, que visa disciplinar o a aplicação das multas às construtoras e às incorporadores no caso de atraso na entrega das obras e que limita o prazo máximo de tolerância em seis meses.
Este último projeto, com algumas ressalvas, é o mais condizente com a realidade do mercado. Todavia, a questão das penalidades previstas — a saber, indenização de 2% do valor do contrato atualizado a partir do término do prazo de carência e multa moratória de 1%, calculado sobre o mesmo valor, a partir do decurso do prazo para a conclusão das obras (independentemente do prazo de carência) — talvez precise ser repensada e reajustada em busca da proporcionalidade.
O Tribunal de Justiça, em decisões recentes, tem se posicionado, na maioria das vezes, pela validade do prazo de carência em contratos desta natureza. Contudo, em razão da existência de uma corrente contrária à validade dessa condição comercial, é provável que a questão ainda gere grandes debates até que, finalmente, seja editada norma regulamentadora.
Daniel Cardoso Gomes é advogado especializado em Direito Imobiliário e sócio do Mannrich, Senra e Vasconcelos Advogados.