A questão posta a exame é no sentido de atestar a possibilidade jurídica de entidades familiares simultâneas obterem, uma e outra, seus devidos efeitos jurígenos, a exemplo da hipótese de uniões estáveis paralelas ou nomeadamente envolvendo, a um só tempo, a união sobressaída do casamento (artigo 1.521, Código Civil) e a decorrente de relações concubinárias (artigo 1.727, Código Civil).
O tema ganha maior relevo, em face de recente julgamento do Superior Tribunal de Justiça quando para efeito da incidência da Lei 8.009, de 29 de março de 1990 – que tutela o bem de família em sua impenhorabilidade, como aquele que serve de residência familiar ou a ele se equipara – cuidou da aplicação da lei, diante da situação fática de mais de uma família.
No caso, a família nuclear, primária e convencional, a do devedor com esposa e filhos, residente em determinado imóvel e aquela outra, fixada em imóvel diverso e formada por outras filhas do devedor, com a genitora delas.
O julgado admitiu que o devedor, possuindo famílias simultâneas, não pode ter penhorados imóveis seus que sirvam, em respectivo, às suas famílias (STJ – 3ª Turma, REsp 1.126.173/MG, 9 abr. 2013), nada obstante o mesmo tribunal superior não esteja admitindo como entidade familiar uma relação concubinária não eventual (Resp 1.096.539, 27 mar. 2012).
O acórdão, da relatoria do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, é paradigmático e pode ser sintetizado assim:
"1. A interpretação teleológica do artigo 1º, da Lei 8.009/90, revela que a norma não se limita ao resguardo da família. Seu escopo definitivo é a proteção de um direito fundamental da pessoa humana: o direito à moradia" (REsp 182.223/SP, Corte Especial, Relator Ministro Humberto Gomes de Barros, DJ 6 fev. 2002). 2. A impenhorabilidade do bem de família visa resguardar não somente o casal, mas o sentido amplo de entidade familiar. Assim, no caso de separação dos membros da família, como na hipótese em comento, a entidade familiar, para efeitos de impenhorabilidade de bem, não se extingue, ao revés, surge em duplicidade: uma composta pelos cônjuges e outra composta pelas filhas de um dos cônjuges. Precedentes. 3. A finalidade da Lei 8.009/90 não é proteger o devedor contra suas dívidas, tornando seus bens impenhoráveis, mas, sim, reitera-se, a proteção da entidade familiar no seu conceito mais amplo”. Vejamos, então:
De saída, tenha-se como diretiva imediata a premissa de que “a regra inserta no artigo 5º da Lei 8.009/1990, por se tratar de garantia do patrimônio mínimo para uma vida digna, deve alcançar toda e qualquer situação em que o imóvel, ocupado ou não, esteja concretamente afetado à subsistência da pessoa ou da entidade familiar”. (STJ – REsp 1.400.342/RJ, julgado em 8 out. 2013). Demais disso, pontifica-se, nesse conduto, que a impenhorabilidade do bem de família, prevista no artigo 1º, da Lei 8.009/90, objetiva amparar não somente o casal, mas a própria entidade familiar.
Com efeito, o Superior Tribunal de Justiça já sedimentou o entendimento de que “no caso de separação dos cônjuges, a entidade familiar, para efeitos de impenhorabilidade de bem, não se extingue, ao revés, surge uma duplicidade da entidade, composta pelos ex-cônjuges varão e virago”, como proclamado no REsp 859937/SP, julgado em 4 dez. 2007.
Em ser assim, expressou o Relator Ministro Luiz Fux, com a devida clareza: “ainda que já tenha sido beneficiado o devedor, com a exclusão da penhora sobre bem que acabou por incorporar ao patrimônio do ex-cônjuge, não lhe retira o direito de invocar a proteção legal quando um novo lar é constituído”.
Pois bem. Induvidosa que se apresenta indeclinável a “proteção da entidade familiar no seu conceito mais amplo”, a tanto permitir multiplicidade da entidade, em hipóteses que tais, quando, por exemplo, os filhos não estiverem mais em sede do lar originário, questão subjacente é a especial circunstância de em outro imóvel do devedor situar-se uma entidade decorrente do concubinato. Estas posições ditas contrapostas reclamam verticalidade.
Em primeiro, observa-se que o acórdão paradigma compreendeu pela existência de outros filhos do devedor, independente da presença, ali no imóvel, da concubina.
Mas é certo pensar que desconstituir-se-á o bem de família, quando ali vir a permanecer somente a mulher, sem os seus filhos? Pensamos que não. Isto porque esta já integrava uma célula familiar, também nuclear, uma família dita monoparental, independente de sua origem. Eis a questão.
Mas não é só. A jurisprudência vem admitindo famílias simultâneas, alcançando não apenas uniões estáveis dúplices. Ao reconhecer efeitos jurídicos também à união estável concomitante ao casamento não desfeito, no sentido de partilha de bens, chega a meação a transmudar-se em “triação”, pela duplicidade de uniões. Neste sentido: Apelação Cível 70022775605/RS, 8ª Câmara Cível, Relator Desembargador Rui Portanova, julgado em 7 ago. 2008).
Em segundo, imperativo se torna colocar em discussão aprofundada o exato alcance do caput do artigo 226 da Constituição Federal de 1988, ao assinalar que “a família merece especial proteção do Estado”, quando é certo que o novo texto constitucional já não mais define a família, em suas diversas variáveis de entidade familiar específica.
Ora. Em não mais prevalecente o tratamento conceitual de todas as Constituições anteriores que definia a família como apenas aquela constituída pelo casamento (artigo 175, CF-67/69), haverá, então, de serem admitidas, a partir da Carta de 1988 e diante do elevado espectro das famílias (em suas estruturas autônomas), todas aquelas formadas a partir do essencial liame das relações de afeto.
Antes, no ditame constitucional, a leitura era a seguinte: “A família é constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos Poderes Públicos”. Agora, famílias de outras origens, assentados os seus vínculos e identidades, recebem a mesma proteção legal, para fins patrimoniais e nisso situa-se o instituto do bem de família, para a inteira incidência da Lei 8.009/1990.
Bem é certo admitir, então, o axioma jurisprudencial, referido em acórdão lavrado pelo desembargador José Fernandes de Lemos, da 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Pernambuco:
“Em uma democracia pluralista, o sistema jurídico-positivo deve acolher as multifárias manifestações familiares cultivadas no meio social, abstendo-se de, pela defesa de um conceito restritivo de família, pretender controlar a conduta dos indivíduos no campo afetivo.” (Apelação Cível 196.007-2/PE, 5ª Câmara Cível, julgado em 12 jun. 2013).
Jones Figueirêdo Alves é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco, diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e coordenador da Comissão de Magistratura de Família. Autor de obras jurídicas de direito civil e processo civil. Integra a Academia Pernambucana de Letras Jurídicas (APLJ).