Filho de pernambucana, Patrick Noordoven, hoje com 41 anos, foi registrado no Brasil como filho legítimo de holandeses; há casos semelhantes envolvendo crianças de outros países
BRUXELAS - O governo holandês interrompeu todas as adoções internacionais no país em 8 de fevereiro. Na origem da decisão está um bebê brasileiro levado para a Holanda com documentos forjados, em 1980. Patrick Noordoven tem hoje 41 anos. Tentando descobrir a própria história por meio da Lei de Acesso à Informação (Wet Openbaarheid van Bestuur, na versão holandesa), ele acabou por demonstrar ao Estado holandês a existência de práticas ilícitas relacionadas à adoção em um passado recente. As ilegalidades encontradas no caso de Patrick motivaram o Ministério da Proteção Legal da Holanda a criar um comitê em 2018 para investigar as adoções internacionais.
Patrick viu sua mãe biológica pela primeira e última vez em uma maternidade em São Paulo, antes de ser encaminhado para o Lar Jumbinho, administrado, à época, por uma mulher de origem holandesa. No local, o filho de uma pernambucana de Caruaru, que vivia e trabalhava na Vila Mariana, foi entregue aos Noordovens, até então um casal de turistas holandeses que visitava o Brasil.
As investigações demonstraram que para “evitar a fila” e o procedimento de adoção oficial no Brasil, um adido de emigração do consulado-geral da Holanda em São Paulo registou Patrick como filho biológico do casal holandês. Em posse dos documentos emitidos pelo Consulado, não foi difícil para os Noordovens conseguir um passaporte carimbado pela Divisão de Estrangeiros e Passaportes do Dops – serviço que hoje é feito pela Polícia Federal - e voltar para a Holanda com um bebê nascido no Brasil.
A versão completa do dossiê em holandês, ao qual a reportagem teve acesso, indica que Patrick não foi a única vítima de adoção ilegal. O relatório registra que, de 1973 a 2008, ocorreram 1.433 adoções com origem no Brasil. O Ministério Público da Holanda suspeita da existência de “centenas de casos”, além de “abusos sistemáticos” em grande escala. “Existem provas concretas e documentadas de falsificação de documentos, apropriação indébita, fraude e corrupção. Roubo e tráfico de crianças também ocorreram,” afirma do dossiê.
Na página 65, o relatório informa que pelo menos “desde a primavera de 1971, o governo holandês estava cada vez mais ciente dos abusos acima. Em dezembro de 1981, uma investigação policial nacional em larga escala foi iniciada contra a admissão ilegal de crianças estrangeiras adotadas”.
A investigação confirmou que 42 casais adotaram seus filhos no Brasil de forma ilegal. “Os resultados da investigação policial não levaram a medidas concretas”, descreve o texto. “Os casais em questão não foram processados, os casos foram arquivados. Alguns deles mais tarde adotaram um segundo (ou terceiro) filho.”
Os investigadores holandeses encontraram práticas semelhantes às que ocorreram no Brasil em países como Bangladesh, Colômbia, Indonésia e Sri Lanka. Em coletiva de imprensa, o ministro da Proteção Legal, Sander Dekker, veio a público pedir perdão às vítimas de todos os países. “O sentimento positivo em torno da adoção no século passado - com a ideia norteadora de que fizemos bem com a adoção - oferece uma explicação, mas nenhuma justificativa”, disse Dekker. “Pedimos desculpas por essa atitude do governo.”
O ministro prometeu um centro nacional para oferecer ajuda psicológica e apoio jurídico a todos os adotados em busca de suas origens e destacou que o Estado não mais invocará a prescrição em caso de reclamações relacionadas à adoção internacional. A reportagem do Estadão solicitou ao Ministério da Proteção Legal um esclarecimento sobre como fica a investigação dos casos anteriormente arquivados e qual a consequência jurídica para os funcionários holandeses envolvidos, mas não obteve resposta até o fechamento desta edição.
Na cidade de Haia, a representação diplomática do Brasil tomou conhecimento do relatório pela imprensa local. A Embaixada do Brasil informou que “o governo brasileiro não foi contatado pelo governo neerlandês a respeito do tema” e que “o relatório está sendo examinado pelas autoridades competentes”. A assessoria lembrou que o Conselho das Autoridades Centrais Brasileiras (CACB) suspendeu as adoções para os Países Baixos em 2007, devido ao estudo de um caso envolvendo uma criança brasileira. No entanto, a reportagem apurou que em 2016 houve revogação dessa suspensão, com envio de comunicação formal à Autoridade Central da Holanda.
Por outro lado, a Embaixada do Brasil em Haia destacou que qualquer cidadão, na Holanda ou em outras partes do mundo, buscando conhecer suas origens brasileiras pode buscar o site do Ministério da Justiça e Segurança Pública. O site foi criado em 2020, o serviço é gratuito e está disponível em português e inglês.
Cerca de 30 mil crianças foram adotadas no Brasil por estrangeiros desde 1970, segundo indica o historiador brasileiro Fabio Macedo na tese de doutorado intitulada Escolher as Crianças: Nacionalidade, Raça e Qualidade na Histo?ria Global da Adoção Internacional (1830-1980). Em escala global, o trabalho indica que a adoção internacional movimentou, desde os anos 1940, cerca de 1 milhão de adoções.
Fonte: Estadão