O ano que se encerra foi atípico. Depois de um século, voltamos a enfrentar uma pandemia e o normal foi definitivamente alterado. A economia brasileira sofre. Fecharemos o período com um déficit em torno de 5,8%. Só um setor parece ter escapado da turbulência: o agronegócio, que deverá crescer 1,8% nesse ano. Isso já é assim desde 1996. Completa o cenário o fato de que as contas públicas, já deficitárias, tiveram uma piora expressiva.
Ser o melhor setor da economia colocou o agro no centro das atenções. O sucesso tem seu preço. No caso do agro, é o aumento da carga tributária. A ideia é simples: o setor que vai bem deve ser tributado. Essa majoração ocorrerá pela prometida reforma tributária, a revogação de regimes específicos ou o incremento brutal da fiscalização. Esse setor, que opera em torno de mais de 95% como pessoa física, recebeu a instituição do Livro Caixa Digital do Produtor Rural (LCDPR), a mais eficiente ferramenta de fiscalização tributária do agronegócio desse ano.
Como sabemos, a tributação da atividade rural desenvolvida pelas pessoas físicas é distinta e tem regras próprias para apuração da incidência de imposto de renda. Este resultado é composto pela diferença das receitas e despesas de custeio e investimento percebidas no curso da atividade rural, sendo possível ainda a dedução de eventual prejuízo apurado nos anteriores. Para possibilitar a apuração, a legislação prevê a necessidade da escrituração da apuração da atividade rural em livro caixa. A segregação da atividade rural em relação às demais atividades é algo antigo e será tratado em tópico futuro. Historicamente, este registro fiscal era realizado de forma física. Recentemente, esse registro passou a ser eletrônico ou em papel, desde que: se físico, não tivesse intervalos em branco, nem entrelinhas, borraduras, raspaduras ou emendas; se eletrônico, em formulários contínuos, com subdivisões numeradas, em ordem sequencial ou tipograficamente.
Aperfeiçoando tais mecanismos de fiscalização, a Instrução Normativa 1.848/2018 criou o LCDPR.
Na nova modalidade, todos os produtores rurais que tiveram receita bruta superior a R$ 4,8 milhões deverão utilizar o sistema, seguindo o layout e cumprindo com o manual — além de entrega e assinatura digitalmente. Por meio dele, há uma padronização e centralização das informações decorrentes das atividades dos produtos rurais pessoas físicas como, por exemplo, imóveis nos quais a atividade é desempenhada, parceiros envolvidos, percentual de partilha dos resultados, despesas, receitas auferidas e trabalhadores envolvidos.
Embora não seja parte do sistema Sped, o LCDPR segue a mesma estrutura, com a geração de arquivos por meio de blocos e informações correlacionadas. Ou seja, por meio dele, há uma padronização e centralização das informações decorrentes das atividades dos produtores rurais pessoas físicas como, por exemplo: imóveis nos quais a atividade é desempenhada, parceiros envolvidos, percentual da partilha de resultados, despesas, receitas auferidas e trabalhadores envolvidos.
Há de se ressaltar que, apesar da similaridade com um livro diário, o LCDPR é um registro fiscal e não contábil.
Considerando o universo de mais de 30 milhões de declarações de IRPF recebidas anualmente, até então não havia um cruzamento maciço de informações entre contribuintes das várias fontes que afetam o resultado de processamento. Mas com a chegada do LCDPR, com certeza ocorrerá.
Para efeito de fiscalização, pode se afirmar que qualquer discrepância de dados resultará em uma fiscalização futura. Não é novidade que a troca de informações digitais é a ferramenta chave da fiscalização tributária federal. Ao observar o Plano Anual de Fiscalização para 2020, disponível no site da Receita Federal, fica evidente que a principal fonte de dados será o cruzamento das informações, vide:
"Omissão de rendimentos e despesas fictícias da atividade rural exercida pelo contribuinte, utilizando também as informações das notas fiscais eletrônicas para identificar eventuais divergências".
Portanto, é inegável a importância do LCPDR para a tributação do agronegócio. Resta agora saber quais as possibilidades e informações que serão extraídas pela fiscalização fazendária desse novo documento fiscal digital. Com a implementação do Sped, que possui foco nas pessoas jurídicas, e o LCDPR, com foco nas pessoas físicas, certamente a maior fonte do cruzamento das informações será essa.
Constatado a evidência do aumento da fiscalização por meio do LCDPR, pensamos que a ferramenta poderá auxiliar a Secretaria da Receita Federal (SRF) em um antigo problema da tributação do agro: os contratos agrários de exploração da terra. Como sabemos, eles se dividem entre arrendamento e parceria rural. Com alíquotas diversas, cada tipo contratual conta com suas peculiaridades. O arrendamento, tratado como aluguel, é sempre mais caro que a parceria. Diferenciar os tipos de contrato e sua correta incidência tributária é tema controverso nessa área.
Ao analisar as jurisprudências do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) dos últimos dez anos (2010-2019), pode-se afirmar que a ausência de riscos é fator determinante para descaracterizar os contratos de parceria e qualificá-los como de arrendamento. Portanto, se os frutos forem certos, a existência de quantia fixa de pagamento, ainda que estipulada em produtos, e a ausência de responsabilidade por danos ecológicos evidencia a ausência de risco.
Interessante que esse conceito de risco não é o que está descrito no Estatuto da Terra. Sendo assim, pode-se dizer que o conceito foi ampliado pelo órgão julgador. Melhor do que acreditar no conceito genérico de risco, seria investigar a questão do gozo. Só existe arrendamento quando se transfere o uso e gozo da propriedade, conforme consta no artigo terceiro do Decreto nº 59.566/66. Além disso, de acordo com o rol taxativo da Lei nº 8.023/90, o que configura atividade rural é muito restrito.
Seja como for, com a nova ferramenta será possível enxergar discrepâncias que indiquem a existência de risco como o recebimento de valores fixos e imutáveis; adiantamentos fixos e não variáveis, percentuais em desrespeito ao estabelecido na parceria e muitos outros.
Entretanto, entendemos que o layout do programa, especificamente no campo três, requer o tipo de contrato que é explorado o imóvel, mas isso não permitirá desclassificar contratos. Valerá como ferramenta eficaz para a criação de uma malha de contratos a serem investigados, mas não permitirá a lavratura de auto de infração automaticamente.
Nesse ano, temos nos deparado com fiscalizações que intimam produtores rurais para a apresentação do Livro Caixa da Atividade Rural visando: a) informação dos valores relatados como rendimentos tributáveis da atividade rural; b) a documentação comprobatória dessas receitas e despesas; c) a eventual diferença entre valor de comercialização (apurado pelas notas fiscais eletrônicas capturadas do Sped); d) e o valor dos rendimentos tributáveis declarados para a atividade rural dentre outras.
Todos esses documentos solicitados estarão à disposição da fiscalização a partir da instalação da versão digital do referido documento. Eventual sonegação de valores da atividade ou despesas indevidas ali alocadas serão facilmente localizáveis e automaticamente apontadas pelo cruzamento das informações digitais disponíveis. O campo será modernamente fiscalizado.
Outras questões serão fiscalizadas de forma severa. Quando o livro for estendido a todo o agronegócio, independentemente do valor do faturamento, não haverá margens a erros ou inexatidões.
Tenho a impressão de que cada conquista do agro é tributada pelo Fisco. Existem duas curvas ascendentes: a da produção rural e a da taxação. Precisamos conferir para que a segunda não supere a primeira. Se isso ocorrer, o setor deixará de ser atraente e a fiscalização terá asfixiado o contribuinte.
Eduardo Diamantino é sócio do escritório Diamantino Advogados Associados e vice-presidente da Academia Brasileira de Direito Tributário (ABDT) e especialista em agronegócios.
Fonte: Conjur