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04/12/2020

“O Registro Civil das Pessoas Naturais é a externalização de todas as conquistas do Direito das famílias”

Em entrevista à Serjus-Anoreg/MG, a registradora civil e presidente da Comissão Nacional de Notários e Registradores do IBDFAM, Márcia Fidelis, abordou a evolução do Direito de Família e sua repercussão nos atos realizados pelos Cartórios de Registro Civil.  

Os cartórios brasileiros têm acompanhado a evolução do Direito Civil no decorrer dos anos e, em um movimento de desjudicialização, atuam diretamente em questões relacionadas aos processos identitários e de formação familiar da sociedade. Nesse sentido, a luta das minorias por igualdade social e representatividade legal, influenciou as definições e o resguardo jurídico das relações familiares. Divórcio, união estável, relações homoafetivas, famílias mono e multiparentais, paternidade e maternidade socioafetivas, são exemplos de situações que antes eram inconcebíveis e tornaram-se reconhecidas e previstas em Lei.

Em entrevista à Associação dos Notários e Registradores de Minas Gerais (Serjus-Anoreg/MG), a Registradora Civil em Minas Gerais, e presidente da Comissão Nacional de Notários e Registradores do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), Márcia Fidelis abordou a evolução da referida especialidade do Direito e sua repercussão nos atos praticados pelos Cartórios de Registro Civil.

Leia a entrevista.

Serjus-Anoreg/MG: A Constituição, que é norte para o ordenamento jurídico, estabelece a pluralidade de famílias. No entanto, foi preciso o julgamento conjunto da ADPF 132 e da ADI 4.277 pelo Supremo Tribunal Federal para que a união homoafetiva fosse reconhecida como entidade familiar, com os mesmos direitos e deveres dos casais heteroafetivos. Do ponto de vista jurídico, como isso se explica?

Márcia Fidelis: Quem se contrapõe, com fundamento no texto constitucional, ao reconhecimento jurídico das famílias homoafetivas, alega que o artigo 226, que dispõe sobre a proteção do Estado às famílias, cita expressamente a união estável entre o homem e a mulher. E defende que somente terão a proteção do Estado as famílias enumeradas na Constituição Federal. A jurisprudência e a doutrina majoritárias entendem ser um rol meramente exemplificativo e o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal deu a palavra final, com a legitimidade e autoridade do órgão máximo do Poder Judiciário, a quem cabe interpretar as palavras da Carta Magna. A interpretação restritiva do artigo 226 não corrobora com os princípios constitucionais que alicerçam o super princípio da dignidade da pessoa humana.

Serjus-Anoreg/MG: A Lei identificava família com o casamento e acabava por excluir da chancela estatal outros vínculos que levavam a comunhão de vidas e patrimônios. Hoje o conceito de família tem como parâmetro principal o afeto e não mais a relação sexual ou o potencial de se procriar. Como se deu esta evolução no direito e quais as consequências para a sociedade?

Márcia Fidelis: O Direito brasileiro é fortemente fundado no Direito Canônico, precipuamente em relação ao reconhecimento jurídico de uma entidade familiar. O conceito de família adveio dos padrões morais impostos pela Igreja Católica que sempre pregou que a relação sexual somente deixa de ser pecado se for durante o casamento. O velho testamento e a história da origem do cristianismo demonstra com clareza que era necessário o controle das famílias para se ter o controle do Estado e com isso, do poder e das riquezas. Grosso modo, daí a origem do casamento religioso, que foi replicado para a criação do casamento civil no século XIX. E para a concretização de tudo isso a família tinha um “chefe", o patriarca (homem) a quem todos os demais membros deviam obediência. Numerosa prole garantia muita força de trabalho para defender o patrimônio da família. A esposa, após o casamento, tornava-se dependente do patriarca e não gozava de direitos políticos e, sequer, de capacidade civil plena.

A vida real, porém, nunca deixou de ter as mais diversas formações familiares. Desde o início dos tempos existem famílias paralelas, famílias poliafetivas, filhos “legítimos” e filhos das mais diversas origens “não legítimas” e relações homoafetivas. O que não existia era o reconhecimento dessas realidades como objeto de proteção jurídica. Estar “fora do padrão” condenava as pessoas no Brasil ao alijamento social.

Serjus-Anoreg/MG: E como se deu a evolução do divórcio no Direito?

Márcia Fidelis: O cerne desta transformação toda foi a autonomia feminina. Que passou pelo fim da incapacidade civil e o exercício dos direitos políticos. Na segunda metade da década de 1970, o divórcio foi um dos maiores marcos desse processo, porque inaugurou o exercício da autonomia da vontade até mesmo para a escolha sobre a manutenção ou não de um casamento. A possibilidade da escolha, mesmo com divórcio condicionado a uma série de requisitos, foi afastando cada vez mais o conceito de família como sendo uma imposição social, para garantir e proteger o patrimônio e para assegurar a legitimidade dos filhos. O direito de escolha abriu espaço para que a família passasse a ser para todos o sonhado lar. Amor, cuidado, responsabilidade, respeito e presença passaram juntos a ser chamados de afeto. E é justamente o afeto que hoje tem o condão de ser a faísca, o catalizador e o amálgama das relações familiares. Assim caminhou a vida real e o Direito, como há de ser, acompanhou.

A Nova Ordem Constitucional foi o divisor de águas, trazendo a expectativa da família plural, da filiação igualitária, da garantia dos direitos fundamentais como inerente a todo ser humano.

Há mais de três décadas que a Constituição Cidadã foi promulgada e até hoje vivemos a sua implementação em muitos pontos. Contudo, a afetividade como mola propulsora da formação familiar foi uma das regras constitucionais que nunca antes deixara de se concretizar. E que se mantenha assim.

Serjus-Anoreg/MG: O Direito de Família é uma das áreas que mais têm sofrido mudanças nos últimos anos. O casamento homoafetivo, a paternidade socioafetiva, a mudança de nome e sexo direto em cartório. Mais recentemente, houve a polêmica em torno do divórcio impositivo. Como avalia as recentes mudanças neste ramo do Direito nos últimos anos?

Márcia Fidelis: O Direito das Famílias no Brasil, até então, estava na vanguarda no combate às desigualdades, na inclusão de minorias, na garantia da observância dos direitos fundamentais, se destacando até mesmo quando comparado a grandes nações do mundo.

Nos últimos 30 anos, a autonomia da vontade na vida privada, a consolidação do afeto como protagonista nas relações conjugais e de parentesco, o respeito às diversidades ligadas ao sexo e ao gênero, estiveram no âmago das discussões dentre os pensadores do Direito, sociólogos, filósofos, antropólogos, dentre outros, que passaram a participar ativamente das discussões políticas, contribuindo em todas as esferas dos poderes com os resultados de seus estudos científicos. E o resultado é o objeto dessa nossa discussão aqui: uma revolução nunca antes vivida na história do País.

Serjus-Anoreg/MG: Apesar da união estável ser uma situação de fato, houve alterações jurisdicionais para estabelecer regramentos, principalmente no quesito de sucessões, a este modelo de relacionamento. Como avalia a entrada do Estado na regulamentação de atos como este?

Márcia Fidelis: A doutrina está bastante dividida quanto a essa gradual e contínua equiparação entre casamento e união estável. Há quem defenda que tem que haver a equiparação total dos efeitos entre as duas modalidades de entidade familiar.

O Supremo Tribunal Federal julgou serem igualitários os efeitos da união estável e do casamento apenas no que diz respeito ao Direito Sucessório. Não houve análise meritória de todas as características de ambas as modalidades de constituição de família, portanto, está equivocado o argumento de quem se fundamenta no entendimento do STF para avaliá-las como idênticas.

Eu já entendo que ambas são entidades familiares e sendo assim, os efeitos das duas modalidades têm que ser equivalentes. Contudo, existem peculiaridades que são pressupostos da formalização pelo casamento e que não podem se estender às uniões meramente fáticas. Exemplo recorrente é o uso de documentos oficiais como prova de existência de união estável. Entendo temerário já que, de acordo com as normas em vigor, para que uma união de fato seja considerada entidade familiar, é imprescindível que sejam cumpridos os requisitos impostos pela lei. Dentre eles o objetivo de constituição de família, a ostensividade e a atualidade da união. Um Instrumento Público ou Particular (mesmo que tenha sido registrado no RCPN), prova, no máximo, a existência dessa união até a data em que foi expedido. Se a união foi desfeita no dia seguinte, não pode mais ser considerada estável e, sendo assim, o documento não faz prova de sua existência atual.

Existem normas locais, de Tribunais de Justiça de algumas Unidades da Federação, que reconhecem, inclusive, presunção de paternidade se provada documentalmente a união estável entre os pais. Entendo que essa equiparação extrapola a razoabilidade, com consequências que vão além da possível insegurança jurídica que pode causar. Entendo que retira do cidadão a possibilidade de se manter em uma união realmente fática, sem qualquer formalização, exatamente como está disposto no Código Civil. Abre-se aí a discussão sobre a necessidade futura de reconhecimento de uma outra entidade familiar, puramente fática.

Serjus-Anoreg/MG: Qual a importância de se lavrar uma escritura pública de união estável para maior segurança jurídica dos conviventes?

Márcia Fidelis: Pelos motivos supra mencionados, a Escritura Pública não faz prova da atualidade da união. Contudo, é de pouco conhecimento público uma garantia interessante que, tanto o Instrumento Público como o Particular trazem, principalmente quando registrados no RCPN (no Livro E) com consequentes anotações nos registros anteriores dos conviventes.

A Escritura Pública é sempre uma garantia entre os conviventes, principalmente para as questões patrimoniais. Apesar de não ser fundamental e não excluir todas as outras formas de prova. Quando ela é submetida a registro no RCPN, essa segurança é ampliada, inibindo ainda mais a chance de má-fé. Qualquer relação jurídica, que exija apresentação de certidão de registro civil, mencionará a união estável e criará um obstáculo para a má administração e eventual transmissão lesiva de patrimônio comum que eventualmente estiver registrado em nome de apenas um dos conviventes. Esse registro no RCPN tem um viés de interesse público porque, indiretamente, garante terceiros quanto a eventual vício por falta de anuência se ela for imprescindível.

O que não seria viável ocorrer - porque descaracterizaria a união como família de fato - é que a Escritura Pública, ou qualquer outra formalidade, seja exigida como condição para que a união estável surta integrais efeitos jurídicos.

Serjus-Anoreg/MG: O reconhecimento da paternidade socioafetiva nem sempre foi facilitado e demandava sentença judicial para sua efetivação. Com a publicação do Provimento 63 pelo CNJ em 2017, os Cartórios de Registro Civil ficaram habilitados a realizar esse reconhecimento. Como avalia a desburocratização do reconhecimento de paternidade?

Márcia Fidelis A parentalidade socioafetiva é a vida como ela é. A necessidade de formalizar o vínculo socioafetivo, por sua natureza fática, impede que haja um procedimento que conceda ao Estado o direito de constituir algo que já existe. Ao Estado cabe reconhecer. Exatamente como ocorre para a formalização da filiação biológica, que também já existe desde a concepção. Basta que se declare ser pai ou mãe para que o Estado, representado pelo registrador civil que está lavrando o registro de nascimento, formalize o estado de filiação. A posse do estado de filho é a origem da filiação socioafetiva. É uma situação fática que precisa ser formalizada para que surta seus jurídicos efeitos. Por isso, sem que haja qualquer empecilho, o estabelecimento da parentalidade socioafetiva deve seguir as mesmas formalidades definidas para a parentalidade biológica. Sem discriminação. Ambos são parentescos pré-constituídos, nos exatos termos do Pacto de San José da Costa Rica e da Constituição Federal de 1988 (conforme interpretação dada pelo STF).

O Provimento nº 63, do CNJ, em sua origem, quando publicado em 14 de novembro de 2017, dispôs regras perfeitamente harmônicas com os preceitos constitucionais e garantia adequadamente a igualdade entre filiações de origens diversas. Foram quase 2 nos em que inúmeras famílias puderam provar com documento oficial, o que já era a sua realidade. Até que sofresse as alterações disciplinadas pelo Provimento nº 83, também do CNJ, publicado no dia 14 de agosto de 2019, 1 ano e 9 meses após início da sua vigência. As alterações limitaram muito as regras para a formalização do vínculo socioafetivo, principalmente porque impôs judicialização obrigatória justamente na fase em que o exercício do poder familiar se faz mais importante na vida da criança. Além de deixar de evitar o alijamento social de uma criança justamente na fase mais ativa da formação da sua personalidade. E aos que entendem ser uma providência com implicações meramente formais, posso afirmar sem nenhum medo de errar: o nome do pai e da mãe na certidão de nascimento é sim, muito importante. Usar o sobrenome do pai e da mãe é sim, muito importante. Formalizar no registro de nascimento a sua realidade faz sim, toda diferença.

Serjus-Anoreg/MG: Ainda se encontra em discussão em âmbito administrativo a possibilidade de escritura de famílias poliafetivas. Como vê esta nova forma de relacionamento e seu impacto no Direito?

Márcia Fidelis: É um conceito novo de uma realidade antiga. E causa repulsa em muita gente por questões de cunho moral. Muito por isso que os Tabelionatos de Notas foram proibidos de receber e formalizar declarações desse tipo.

O Direito é muito maior que as normas escritas. E a vida real contempla a privacidade de cada indivíduo. Famílias compostas por mais de duas pessoas, numa relação de conjugalidade, sempre existiram. Em outros momentos da história e mesmo atualmente, em outros países no mundo, além de existirem, têm proteção jurídica. Há países em que essa é a regra.

Não entendo que o Estado tenha legitimidade para interferir na vida privada a esse ponto, ditando regras sobre a vida íntima dos cidadãos. Ao Estado, em relação às escolhas afetivas, cabe a garantia de que essas escolhas não interfiram em direitos alheios.

Serjus-Anoreg/MG: Qual a importância da atuação dos cartórios nas práticas do Direito Civil?

Márcia Fidelis: A noção do extrajudicial como uma atividade puramente técnica, de rotinas repetitivas e quase que meramente cadastrais, deu lugar a uma profissão do Direito de grande importância para a garantia de uma segurança jurídica efetiva e humanizada.

O Direito Civil é, ao mesmo tempo, o alicerce, as paredes e o telhado das relações humanas em sociedade. E o extrajudicial atua tanto como fornecedor de segurança jurídica - através dos documentos que dão publicidade do real e atual estado da pessoa natural e da pessoa jurídica nelas envolvidas - como também, dos negócios jurídicos praticados entre elas. Os atos jurídicos impõem a comprovação de legitimidade e capacidade das partes. Toda e qualquer situação pactuada entre pessoas, com o intermédio do extrajudicial, terá atestado de autenticidade garantida pela fé pública de um registrador ou de um notário, que são agentes delegatários de serviços públicos com legitimidade para atuar em nome do Estado.

A atribuição constitucional desses determinados serviços públicos a registradores e notários, demonstra sucesso quando analisamos normas dos últimos anos que objetivam a desburocratização e a desjudicialização dos procedimentos. Essa simplificação é possível quando o ato a ser praticado não requer, necessariamente, a subjetividade da análise do Estado-Juiz.

A necessidade de repaginação da atividade judiciária ganhou visibilidade com a criação dos juizados especiais no final do século passado e obteve maior impulso com a desjudicialização do fim do casamento e dos inventários, com a usucapião administrativa, com as retificações de registros com procedimentos exclusivamente extrajudiciais, com o registro tardio de nascimento exclusivamente extrajudicial (ressalvadas sempre as suspeitas de má-fé e os casos em que sejam necessárias maiores diligências ou subjetividades), com as alterações de prenome e sexo por ato declaratório diretamente perante o registrador civil, assim como a revolução vivida no âmbito das relações de parentesco, dando maior ênfase (em muitos casos prevalência) às relações cujo amálgama seja o afeto. É o Estado, enfim, enxergando a vida real e valorizando a autonomia da vontade na esfera privada.

Serjus-Anoreg/MG: Como você percebe a atuação e a participação extrajudicial dos cartórios na evolução do direito de família?

Márcia Fidelis: A aplicação prática da ciência jurídica, quando se trata de registrar a dinâmica da vida civil das pessoas naturais, impõe ao profissional do direito o estudo constante do Direito Civil, mormente o Direito das Famílias que, com a transformação da visão jurídica das entidades familiares, passa a ter um viés constitucional e principiológico que vai além da legislação civil.

O Registro Civil das Pessoas Naturais é o serviço extrajudicial que tem como atribuição a externalização de todas as conquistas do Direito das Famílias. Nas últimas décadas, conhecidas como um período revolucionário enquanto transformador da visão tradicional do conceito de família, o compromisso do registrador civil com o Direito das Famílias se desloca automaticamente dos arredores das profissões jurídicas para o seu âmago, juntamente com outras atividades igualmente fundamentais como a magistratura, a advocacia, as defensorias públicas, as procuradorias e promotorias. Porque qualquer nova norma inserida no ordenamento jurídico, bem como quaisquer decisões judiciais que estabeleçam alterações no estado da pessoa natural, demandam a atuação do registrador civil para que inscreva nos registros públicos e dê publicidade e eficácia ao novo estado da pessoa. O exercício da cidadania, para que esteja em consonância com referida alteração, está condicionado à apresentação de uma certidão de registro civil, sem a qual nem mesmo o Registro Geral do indivíduo poderá ser atualizado.

O registrador civil, ciente da nova visão plural de família, do fim da exclusividade dicotômica e heteroafetiva da filiação e dos efeitos jurídicos de tudo isso, emitirá certidões entendendo e atendendo aos dispositivos do Provimento nº 63, do CNJ. Esses documentos devem ser expedidos sem que sejam mencionadas origens de filiação, estado civil dos pais, ordem de nascimento de um irmão em relação a outros, campos de filiação e de avós sem caracterizar as pessoas como “pai", "mãe", “avô ou avó materna ou paterna”; menos ainda constar elementos que necessitam cair no desuso, por não mais espelhar a atualidade como “genitor(a)", pátrio-poder, dentre outros.

 Fonte: Assessoria de Imprensa Anoreg/MG

 

 

 


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