Somente a ação proposta pela família real brasileira reivindicando da União a posse do Palácio Guanabara – que levou 120 anos em tramitação – foi mais antiga que a Ação Civil Originária (ACO 158), que corre há mais de meio século no Supremo Tribunal Federal (STF) e envolve interesses de mais de mil famílias desprovidas de recursos.
Trata-se de um episódio acontecido no tempo do Império e que vem marcando a vida de quase 5 mil pessoas em bairros populares na cidade de Iperó, interior do estado de São Paulo. As terras onde moram são disputadas pela União e pelo Estado de São Paulo. O conflito se transformou na Ação Civil Originária (ACO) 158, atualmente o feito mais antigo em tramitação no Supremo, que deve entrar em pauta em março desse ano.
A longevidade da disputa teve origem na visita que Dom Pedro II fez à Fábrica de Ferro da Fazenda Ipanema, em 1840, quando pediu para a Província de São Paulo anexar toda a área – chamada de “Campos Realengos” – à Coroa, para que pudesse ser utilizada na expansão das atividades da Fazenda Ipanema. Nas instalações daquela que foi a primeira siderúrgica brasileira, se produziram arados, enxadas, cruzes, máquinas e até material bélico, usado na Guerra do Paraguai.
A exploração do ferro na área começou no século XVI com o bandeirante Affonso Sardinha e foi se consolidar com a vinda de Dom João VI para o Brasil, que modernizou a fábrica e trouxe em 1810 uma equipe de metalúrgicos suecos, especialistas na construção e manejo de altos-fornos. A questão era economicamente tão relevante para o Brasil que envolveu até José Bonifácio, Patriarca da Independência, geólogo de formação, sendo nomeado Intendente de Minas do Império.
Quando as atividades da fábrica foram encerradas em 1895, a gleba de terras foi revertida para a Coroa portuguesa. Um século depois, o Estado paulista considerou aquelas terras devolutas – sem destinação de uso especial – reconhecendo os moradores como proprietários e outorgando-os as respectivas matrículas durante a República Velha. A União, sucessora do Império, contestou a validade das matrículas e ingressou com uma medida judicial em 1958, durante o governo JK, tentando anular os títulos de propriedade e demolir todas as construções que já formam um pequeno povoado, junto ao Supremo Tribunal Federal, ainda localizado no Rio de Janeiro. Passados mais de 60 anos, a indefinição sobre a posse dura até hoje, pois o STF simplesmente não conclui o julgamento do processo.
O tempo é um dado inquietante quando falamos de uma população de cidadãos vulneráveis, que aguardam há várias décadas por uma solução para um impasse que norteia seu dia a dia.
No local, atualmente, encontram-se mais de 1.200 famílias de baixa renda, sendo aproximadamente 30% de crianças e adolescentes. Como os moradores não podem ser considerados os proprietários de suas casas, a Prefeitura de Iperó precisou pedir judicialmente que a SABESP instalasse o serviço de água nas casas, além de ter construído escolas e um posto de saúde no local.
O processo de Iperó é o mais antigo em tramitação no STF e me remete à exposição de cascas de árvores da artista plástica Ludmilla Alves, porque envolve a ação deletéria do tempo. Embora seja exposta em museu, a mostra é perecível, porque o material é recolhido da natureza e está em processo de decomposição, exigindo um novo olhar dos observadores à medida que o tempo passa. A ACO 158 também envolve vidas e exige uma análise além da letra fria da lei.
*Solano de Camargo é sócio sênior da LBCA, mestre e doutor pela Faculdade de Direito da USP e pós-doutorando em Direito Internacional pela Faculdade de Direito de Coimbra (Portugal).
Fonte: O Estado de S. Paulo