“O destino dos animais de companhia no rompimento da união familiar” é o artigo científico assinado por Rafael Calmon, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, que integra a 35ª edição da Revista IBDFAM – Famílias e Sucessões. O juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Espírito Santos apresenta um estudo transdisciplinar sobre o atual panorama dos direitos dos animais de estimação no Brasil.
O texto atenta à presença dos bichos nos lares brasileiros. Há cerca de cinco anos, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE apontou que existiam mais animais de estimação que crianças nos domicílios. Dados do Instituto Pet Brasil, de 2018, apontam aproximadamente 139,3 milhões bichos de companhia no País.
O ensaio busca sistematizar o tratamento jurídico adequado para os pets quando se rompe a relação familiar mantida entre humanos. Calmon lembra que todo animal é dotado de senciência, ou seja, possui a capacidade de sentir emoções como dor, alegria, entusiasmo e tristeza, e, por isso, merecem atenção legal.
“Os animais não humanos precisam ter seus próprios direitos tutelados, não sob a perspectiva daquilo que possa parecer melhor ao humano, mas sim do ponto de vista que lhes possa conferir maior dignidade (dignidade animal)”, defende o magistrado. Seu artigo atenta que a tutela e até as penalidades previstas em nosso ordenamento jurídico contra maus-tratos não perdem de vista os interesses do proprietário do animal.
Animais não humanos no Direito das Famílias
De acordo com o autor, essa nova forma de enxergar as coisas, que desloca o foco exclusivo das atenções do animal humano para projetá-lo sobre os seres vivos, em geral, gera gigantescas repercussões sobre o Direito das Famílias.
“Se eles moram conosco, não deixam de fazer parte de nossas famílias, ainda que numa compreensão bem extensiva do que esse núcleo possa representar. Portanto, num eventual divórcio ou separação, é preciso que se saiba como tratá-los juridicamente, para que, de alguma forma, seus direitos sejam respeitados e a relação com os humanos possa ser mantida de forma saudável para eles e para nós”, aponta Calmon.
Por serem sencientes, os animais também se apegam, gostam, sentem falta ou até repulsa. Para Calmon, a relação entre humanos e não humanos deve levar em conta esses sentimentos. Por isso, qualquer tentativa de partilhamento ou divisão pelo equivalente em dinheiro deveria ser obstada.
“Em uma separação do casal, os animais podem ser muito mais apegados às crianças do que aos adultos, se sentir muito mais próximos de um dos ex-consortes do que ao outro, ser muito mais bem tratado por um do que por outro, enfim. Esses e outros fatores devem ser levados em consideração no momento de se estabelecerem as regras e limites em torno das responsabilidades sobre eles”, acredita o juiz.
O artigo destaca que dignificar o tratamento jurídico dos bichos não significa equipará-lo ao de crianças e adolescentes. Tampouco se deve humanizar os animais de estimação, que possuem dignidade própria.
“Por si só, eles desempenham um papel tão importante quanto o nosso para o equilíbrio do meio ambiente”, destaca Calmon. A aproximação entre eles não possui cabimento, ainda segundo o magistrado, em razão das enormes diferenças entre uns e outros.
“A circunstância de eles precisarem de tutela adequada, em razão de sua especial condição, aliada ao fato de inexistir (ainda), lei regulamentando seu tratamento jurídico, faz com que, de certa forma, algumas categorias jurídicas lhes sejam aplicadas por analogia ou por aplicação dos princípios do Direito”, pondera o autor.
Jurisprudência está mais atenta ao direito dos animais
Apesar da necessidade de uma série de avanços legislativos, Rafael Calmon acredita que a jurisprudência tem lançado um olhar mais atencioso às questões dos animais. O artigo menciona julgados paradigmáticos dos tribunais superiores, que enfatizaram a necessidade de ser conferida maior proteção aos animais, de estimação ou não.
“Vale mencionar que, no ano de 2009, o STJ condenou a prática de atos cruéis contra animais entendendo que ‘os animais são dotados de uma estrutura orgânica que lhes permite sofrer e sentir dor’. Em 2016, foi a vez de o STF declarar a inconstitucionalidade de lei estadual por reconhecer estar havendo ‘crueldade intrínseca’ aplicada aos animais na vaquejada”, relembra o magistrado.
No tocante ao Direito das Famílias, ele lembra que o STJ garantiu, em 2018, o direito de visita a um pet que ficou com um dos donos após fim da união estável. Vários tribunais estaduais estão seguindo a mesma linha, diz Calmon.
Projetos de lei em tramitação
O trabalho cita projetos de lei que tramitam no Congresso. Calmon destaca o Projeto de Lei da Câmara 27/2018 (PL 6.799/13) e o Projeto de Lei do Senado 542/18, que pretendem, respectivamente, estabelecer um regime jurídico especial para os animais não humanos e regulamentar a custódia e a responsabilidade pelas despesas de animal de estimação pertencente aos cônjuges e companheiros, após a dissolução da união.
O Projeto de Lei 62/2019 dispõe especificamente sobre a custódia dos animais de estimação em ocasião de término do relacionamento. “Embora empregue o não recomendável termo ‘guarda’, tem o grande diferencial de pretender disciplinar o tema de forma um pouco mais detalhada, sendo, por isso, bastante importante”, comenta Calmon.
“No final das contas, não importa qual ou quais desses projetos se convertam em lei. O que realmente importa é que haja regras tratando do tema, para que os animais de estimação tenham sua dignidade respeitada, obrigando os animais humanos a se responsabilizarem por seus cuidados, por sua manutenção e por sua convivência harmônica durante e depois da união por eles mantida”, conclui o juiz.
Fonte: IBDFAM