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26/03/2018

Evolução da união estável no ordenamento jurídico brasileiro

Artigo: Evolução da união estável no ordenamento jurídico brasileiro – Por Renata Rocha

Atualmente reconhecida como uma entidade familiar a união estável nem sempre foi assim. Pessoas que se relacionavam, mas não se enquadravam nos padrões legais do casamento, além de não terem seus direitos amparados juridicamente não possuíam respaldos da sociedade. O “affectio maritalis” (vontade de constituir família) não era quesito relevante e os Tribunais possuíam critérios distintos de hoje para solução dos casos. Felizmente os costumes e as estruturas sociais sofreram transformações ao longo do tempo ao que se permitiu uma mudança de valores, morais e culturais, abrindo possibilidades ao tratamento isonômico das relações conjugais.

Desde os primórdios de nossa colonização o casamento considerado válido sempre foi aquele celebrado com todas as formalidades religiosas e legais (a partir do Decreto 181 de 1890 que regulamentou o casamento civil), sendo este a única forma de se instituir família. Ainda com o Código Civil de 1916 somente o casamento civil nos trâmites legais estabelecidos era possível a formação familiar. Suas disposições deixaram clara a defesa do instituto do casamento formal e nada foi mencionado sobre a possibilidade das uniões de fato.  No entanto, leis esparsas juntamente com diversas jurisprudências, passaram a beneficiar pessoas em concubinato, pelo seu esforço em comum, até chegarmos a Lei do divórcio (Lei 6515\77) o que abriu uma porta para o reconhecimento dos relacionamentos de fato. 

Importante salientar que os termos concubinato e união estável são distintos e que o significado do concubinato sempre foi algo controverso na história do direito brasileiro. Durante um bom tempo o termo concubinato foi atribuído às pessoas que tinham relacionamento extraconjugal, portanto impedidas de casar, e não podendo assim constituir família (vivia-se em concubinato). Posteriormente tanto a doutrina quanto a jurisprudência passou a considerar o termo sendo qualquer relacionamento que não houvesse o vínculo matrimonial, inclusive aqueles mantidos por pessoas que não estivessem impedidas para o casamento, chamado de concubinato puro. Havia também o impuro, de pessoas de parentesco próximo e adulterino de pessoas onde pelo menos uma era casada.

Esclarecido isso, ainda nas primeiras decisões nos casos de relacionamento fora dos padrões do casamento civil, bastava comprovação da existência da relação conjugal para concessão de direitos. Reforçando o que foi dito acima, a parte que não era casada era considerada concubina, e dava-lhe o direito à parte dos bens adquiridos pelo esforço comum, e a natureza jurídica entre eles foi reconhecida como sociedade de fato. “Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum” (Sumula 380 STF – 03\04\64).

Se para um lado a sumula 380 exigiu apenas a comprovação da existência de uma sociedade de fato e o esforço em comum, as decisões judiciais exigiam a comprovação da contribuição efetiva do companheiro (ou concubino) ao patrimônio. Entendimentos controversos foram comuns nos Tribunais, e ainda não havia nada bem definido quanto aos contornos jurídicos para o reconhecimento da união estável e os termos companheiro e concubino ainda se confundiam na sua interpretação.

Surgiu ainda a súmula do Supremo Tribunal Federal (STF) n 382, “A vida em comum sob o mesmo teto, more uxório, não é indispensável à caracterização do concubinato”, reforçando ainda mais a existência das sociedades de fato, às quais os direitos deveriam ser atribuídos a quem merecesse. Até o momento os casos eram fundamentados em jurisprudências, súmulas, doutrinas e entendimentos monocráticos os quais não proporcionavam segurança jurídica, e o termo união estável ainda não era comum. Os julgados vinham quase sempre pautados de questionamentos baseados em um relacionamento paralelo ao do matrimônio, tendo em vista que as pessoas que se relacionavam sem os tramites do casamento eram mal vistas pela sociedade e consideradas à margem da legislação. Quando havia um julgado de concubinato puro (nenhuma das partes impedidas de casar) a relação era reconhecida como sociedade de fato. Urgia uma legislação mais clara e determinante para esses comportamentos os quais vinham aumentando cada vez mais.

Promulgação da Constituição de 1988

Somente com o advento da Constituição Federal em 1988 o instituto da união estável obteve um respaldo jurídico legível, trazendo a tona a força desse fenômeno social, inclusive colocando essas relações no patamar de entidade familiar:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (...) §3º. Para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre homem e mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento”.

Estabeleceu assim que a formação da família não mais dependia apenas do casamento civil, mas inclusive entre quaisquer dos pais e seus descendentes. “Art. 226 - ... § 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.”

No entanto, apesar desse grande avanço ainda não existia nenhuma regulamentação ordinária determinando os contornos jurídicos do instituto união estável. Apenas em 1994 veio a primeira norma específica, Lei 8971, concedendo, inclusive, direitos de alimentos entre os companheiros, fato também controverso na doutrina e jurisprudência antes da promulgação da lei supra citada. A lei estabelecia uma necessidade de 5 (cinco) anos de relacionamento conjugal, ou existência de filhos com o companheiro e não bastava ser separado de fato para caracterizar uma união. Era necessário ser solteiro, separado judicialmente, viúvo ou divorciado.

Deveras foi um grande passo na caracterização do instituto, facilitando os requerimentos e decisões judiciais. Abrangeu também a sucessão referente aos usufrutos dos bens do falecido, na quarta parte ou na metade, conforme existência de filhos ou não, e na falta de descendentes e ascendentes, o companheiro sobrevivente ficaria com toda herança. O que fora uma grande inovação no mundo jurídico das relações de fatos, uma vez que vigorava à época o código civil de 1916 e neste nada foi mencionado sobre direitos do companheiro na abertura da sucessão.

Percebemos até aqui a existência de dois regimes de sucessão tendo em vista o regime dos cônjuges, expressados no art. 1.603 e seguintes do código civil de 1916, e o regime dos companheiros expressados em Lei 8971\94.

Poucos anos depois, em 1996, veio a Lei 9278 trazendo o conceito da união estável: “convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição da família”. Percebe-se aqui a indeterminação do prazo e existência de filhos para caracterização da união, deixando claro também, a lei, a igualdade de deveres e obrigações entre os casais, sem pesar mais pra um ou pra outro.

Ainda nesta nova lei constava a possibilidade da partilha de bens, mas desde que fossem onerosamente adquiridos na constância da união. Pra isso precisaria a comprovação, por parte do companheiro, que contribuiu financeiramente na aquisição do patrimônio, o que nos remete ao início das interpretações da sumula 380 de 1964. Ou seja, a comprovação na a aquisição de bens entre companheiros parece sempre ter sido fator determinante na hora da partilha.

No entanto, quanto à sucessão, a Lei 9.278\96 deixou muito a desejar. Diferente da Lei anterior possibilitou o direito de Habitação ao companheiro e somente ao imóvel considerado moradia do casal. Cada vez mais a sucessão parecia ser um tema complexo e de entendimento diverso na doutrina e nos Tribunais, continuando à margem da Lei aqueles optantes pela informalidade do casamento.

Um fato inovador está no art. 8 da Lei 9.278\96, em que possibilita a conversão da união estável em casamento diretamente ao Registro Civil das Pessoas Naturais pelos próprios conviventes. Esse dispositivo foi de extrema relevância, pois tornou ágil o processo, uma vez que dispensou a apreciação judiciária prévia, e ainda estabeleceu de uma vez por todas a competência da vara de família para dirimir os casos das relações de fato.

União Estável após o novo Código Civil de 2002 e as uniões homoafetivas

No ano de 2002, com a promulgação da Lei 10.406, a qual trouxe em vigor o novo código civil brasileiro, a união estável obteve um título específico, inserido dentro do direito de família, e assim reforçou ainda mais os contornos jurídicos do instituto. Sua inclusão no novo código foi determinante para o reconhecimento desse fator social, pois deixava de ser regulamentada apenas por leis esparsas após a CF\88, e consagrou ainda mais o caráter familiar das uniões e os direitos dos companheiros.

Embora algumas ações foram tomadas em busca da isonomia dos direitos das uniões estáveis aos do casamento civil, ainda não se podia falar em reconhecimento ou direitos dos casais homoafetivos.  Se a união de fato entre homem e mulher era um tema complexo perante os tribunais e a sociedade, o que dizer das uniões entre casais do mesmo sexo? Assunto também complexo e delicado era demandado pela sociedade e precisava urgentemente ser discutido.

Sabemos que Direito e Sociedade estão intrinsecamente ligados. Uma vez que as mudanças sociais acontecem, os valores também mudam e as normas jurídicas não podem ficar alheias a esses comportamentos. Com o novo conceito de família trazido pela CF\88, em que o vínculo afetivo poderá existir em todas as formas de convívio, já era hora de uma norma infraconstitucional se adequar a um movimento social como ao dos homossexuais.

No entanto, o código civil de 2002 não veio inovar a realidade vivida pelos casais e trouxe um outro problema. No art. 1.723 regulamentou a união estável, mas deixou claro seu reconhecimento apenas entre homem e mulher. Na mesma linha da CF\88 reforçava o preceito de que família constituída por homossexuais não foi reconhecida (art. 226, §3). Entendimentos doutrinários e jurisprudenciais divergentes contribuíram para insegurança jurídica, bem como acrescentou as discussões homofóbicas em torno do tema.

Somente em 2011, através da ADI 4277 e ADPF 132, com o voto do ministro Ayres Britto, acompanhados pela maioria dos demais ministros, foi decidido as ações com efeito vinculante dando interpretação conforme a Constituição Federal para excluir qualquer significado do artigo 1.723 do Código Civil impedindo o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar.

A decisão do STF foi um fator decisivo e de extrema importância. Além de expressar o reconhecimento de família, às relações homoafetivas, trouxe-lhes segurança, estima e acima de tudo respeito pelos seus direitos. Com essa decisão não se pode mais existir tratamento discriminado, obrigando a qualquer juiz ou Tribunal, mesmo não concordando, a observar tal decisão. Igualou-se, então, a união estável homossexual à heterossexual.

Do registro da União Estável no cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais e outras possibilidades

Como dito anteriormente, o comportamento social é algo relevante ao Direito e as normas jurídicas são o reflexo desses fenômenos. A união estável se tornou um acontecimento muito comum entre as pessoas e por isso cada vez mais o Direito vem facilitando sua publicidade a terceiros e dando a todos a possibilidade de exercer seus direitos com mais segurança.

Atualmente com a escritura pública ou documento particular de união estável (ou dissolução de união estável) em mãos, os companheiros poderão se dirigir ao cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais de sua residência e registrar essa união (art. 572 e sgts do Provimento 260\CGJ\2013). Tal registro implicará em informações a terceiros não sobre seu estado civil, mas sobre sua situação conjugal.

O mundo dos negócios vem cada dia mais fazendo exigências para viabilidade de créditos pessoais e um dos requisitos frequentes é o conhecimento do estado civil ou da situação conjugal do interessado. Com o registro do documento de união estável no cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais (RCPN) as informações estarão concentradas em um mesmo documento dando ao processo agilidade, segurança e menor custo com emissão de outros documentos.

Além disso, o registro do documento de união estável no cartório competente se justifica pela obrigatoriamente do oficial de registro ter que fazer anotação em atos anteriores, com remissões recíprocas, e em todas as certidões emitidas haverá a informação da constituição da união estável. Fator relevante pra quem pretende realizar negócios com outrem, como por exemplo, a realização de uma Compra e Venda de imóvel.

Outra possibilidade, apesar de não ter como requisito o registro da união no RCPN, é a averbação da constituição de união estável na matrícula do imóvel, perante o cartório de Registro de Imóveis da localidade do bem, quando contiverem pactos patrimoniais, além de poder ser registrada no Livro 3 do respectivo cartório (art. 728, IV e 730, P.U. Provimento 260\CGJ\2013). Fator importante para publicidade do ato e assim para garantia dos direitos patrimoniais.

O casamento homoafetivo

Interessante salientar que a equiparação ocorrida foi somente no instituto da união estável com o casamento, o que não pressupunha a viabilidade do casamento homoafetivo. As serventias extrajudiciais seguem o princípio da legalidade e em razão disso não podem realizar nenhum ato que não esteja expressamente autorizado em lei ou norma específica. Fator relevante, pois isso fazia com que os pedidos de conversão da união estável em casamento, dos companheiros, tivessem que ser levados ao judiciário para autorização do ato. Cada juiz possuía uma interpretação e quase sempre a autorização era concedida após recorrer aos Tribunais. 

No entanto, na tentativa de sanar as interpretações controversas, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), mediante a Resolução 175\2013, determinou a realização do casamento de casais do mesmo sexo, por todos os cartórios do Brasil, vedando as autoridades a recusar a habilitação e a celebração do casamento civil, bem como a conversão a união estável em casamento (art. 522 e seguintes do Provimento 260\CGJ\2013). Porém, a determinação do CNJ não sobressai á Lei, o que ocasionou muitas interpretações divergentes de alguns juízes.

Em Minas Gerais com o Provimento 260 da Corregedoria Geral de Justiça de Minas Gerais de 2013, foi expressamente autorizado o casamento homoafetivo nas serventias de Registro Civil das Pessoas Naturais, determinando que o processo de habilitação seja processado regularmente (art. 481, P.U.), bem como deixou claro em outras cláusulas o respeito e a inclusão da relação homoafetiva no ordenamento (art. 510, P.U., art. 524).

Atualmente ainda não possuímos nenhuma lei federal que autorize o casamento homoafetivo no país. Apesar da luta de diversos grupos em prol da igualdade dos direitos, muita polêmica existe sobre o tema, causando desconforto aos casais. O que se tem de legislação até o momento é um projeto de lei em tramitação no Senado, PLS 612/2011, para alterar o artigo 1.723 do Código Civil\02, e assim permitir o reconhecimento legal da união estável entre pessoas do mesmo sexo. O objetivo nada mais é exaurir entendimentos divergentes dos juízes e assim estabelecer uma legislação adequada e imune a subjetividade.

Sucessão das Uniões Estáveis

Muito recentemente tivemos mais uma equiparação entre os institutos da união estável e do casamento. O STF entendeu ser inconstitucional o art. 1.790 do c.c\02, o qual trata a sucessão de bens dos companheiros, e determinou a aplicação do regime do art. 1.829 c.c\02. Este último implica na sucessão de bens dos cônjuges e o mesmo deve ser utilizado para o direito de herança dos companheiros. 

Conforme Luís Roberto Barroso, ministro relator do processo decidido no RE 878.694, em maio de 2017, se o Estado tem por finalidade a vida digna de todos os indivíduos, com a participação da família, sendo esta hoje reconhecida como aquelas caracterizadas pelo vínculo afetivo e pelo projeto de vida em comum, como é o caso das uniões estáveis, uniões homoafetivas, as famílias monoparentais, pluriparentais ou anaparentais (formada por irmãos ou primos), não justifica o código civil de 2002 trazer dois regimes de sucessão diversos. Uma para família constituída pelo casamento civil e outro para família constituída pelas uniões de fato.

Ainda segundo o excelentíssimo ministro:

 “...não há espaço legítimo para que o legislador infraconstitucional estabeleça regimes sucessórios distintos entre cônjuges e companheiros, chega-se à conclusão de que a lacuna criada com a declaração de inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC/2002 deve ser preenchida com a aplicação do regramento previsto no art. 1.829 do CC/2002, e não daquele estabelecido nas leis revogadas.”

Após essa ilustríssima decisão do STF, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu o primeiro caso ocorrido, aplicando a sucessão do casamento para a união estável, em agosto de 2017.

Vejamos aqui a força dessas decisões, pois eleva o companheiro à qualidade de herdeiro necessário, assim como o cônjuge, concorrendo com descendentes, ascendentes e, não havendo ascendentes ou descendentes, terá direito à totalidade da herança, não sendo mais possível concorrer com os colaterais.

A evolução no regime da sucessão das uniões estáveis só veio a contribuir com o instituto, mas ainda assim a recomendação que se dá é sempre o cuidado em formalizar as relações para melhor ser entendido a vontade das partes. Seja através de escritura pública ou instrumento particular, é cauteloso fazer por escrito um documento onde conste expressamente dados como prazo de relacionamento e regime de bens, e assim minimizar conflitos ou dúvidas no momento do inventário e partilha dos bens.

No que pese o conceito de família trazido pela CF\88, estabelecer direitos diversos para os institutos, união estável e casamento, que tem por finalidade o mesmo objetivo, qual seja o desenvolvimento dos indivíduos, vai de encontro à validade e eficácia de alguns princípios como o da dignidade da pessoa humana. Ninguém pode ser considerado mais ou menos, perante uma sociedade ou uma legislação, pela opção sexual ou pelo tipo de constituição familiar. Ter os mesmos direitos não significa ter as mesmas escolhas, os mesmos padrões ou mesmos gostos, mas sim ter o mesmo conhecimento do que seja um lar afetuoso e acolhedor, e principalmente com muito respeito às escolhas particulares de cada ser humano.

*Renata Míriam Merlo Rocha – Advogada, especializada em Direito Notarial e Registral, com atuação na área Cível e Imobiliária.

 


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