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09/12/2014

RECONHECIMENTO EXTRAJUDICIAL DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA

RECONHECIMENTO EXTRAJUDICIAL DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA

Leandro Lomeu[1]

 

Tem que ser selado, registrado, carimbado
Avaliado, rotulado se quiser voar!
Se quiser voar...[2]

(O Carimbador Maluco – Plunct, Plact Zum. Raul Seixas)

 

1. Estado e Afetividade

          A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado, tal é a predição da Constituição Federal. Neste quesito, percebe-se um sustentáculo do próprio estado democrático de direito, ou seja, quando o Estado protege a Família, erige arrimos sobre si mesmo. Daí podemos, por idas e vindas, afirmar que a proteção familiar oriunda do Estado é sempre um dos elementos nucleares  garantidores do próprio Estado Democrático. O Estado que abriga a família, logo é um Estado que se resguarda e protege a democracia.

          É nítido este caráter protetor do Estado ao avaliarmos a guarida oferecida as crianças e adolescentes na Carta Constitucional, ao afirmar que é “dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem”, todos os direitos elencados no art. 227, da Constituição Federal. Convoca-se estas três entidades, família, sociedade e Estado, para protegerem o seu próprio futuro. Desta forma, formata-se um tripé que garante a ordem social.

          Um grande exemplo deste Estado que deve sempre buscar atender os anseios familiares, encontra-se registrado na própria Constituição Federal, no  §3º, do art. 226, que estabelece: “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.” Vontade.

          Se avaliarmos a norma constitucional, qual é a razão do trecho: para efeito da proteção do Estado. Bastava que o constituinte fosse direto. É reconhecida união estável... Nestes moldes, ratificamos, a guisa de exemplo, com este trecho da Constituição Federal, que o Estado deve sim, proteger, com urgência, as pluralidades familiares e os ajustes desta família que não estagna.

Há tempos a doutrina e jurisprudência nacional tem pregado, e porque não, consolidado, sobre a importância da socioafetiva como princípio nuclear do Direito das Famílias. Apesar de termos somente, por uma vez, a palavra afeto, registrada no Código Civil. Tal termo, inserido na codificação como uma das formas de se averiguar qual genitor seria o guardião do filho, em casos de guarda unilateral, tal é a redação do art. 1.583.

Apesar desta mísera citação acerca do afeto em nosso Código Civil, outras legislações mais recentes já têm se inclinado nesta direção, vertente esta que é sem volta para o Direito das Famílias, louvado que seja assim.

Abro margem, para grifar e que se faça ressoar em altas vozes, ainda em nossos dias, o que João Baptista Vilela, prega por longos anos: “Já notaram os senhores o quão pouco se fala de amor em sede de direito de família, como se este não fosse seu ingrediente fundamental?”

E conclui: “O amor está para o direito de família assim como o acordo de vontades está para o direito dos contratos.”[3] Esta citação deve ser sempre diretriz para os que lidam com o Direito das Famílias.

Quando olhamos para trás pensamos até que afeto e direito eram palavras antônimas. Havia um engessamento de questionamentos, onde se dizia diretamente ou entrelinhas: O Direito não pode quantificar o afeto. Não se pode responsabilizar o abandono afetivo. Filhos do amor?! Filho deve ser jurídico, está registrado?

Apesar de sabermos que não basta amoldar a vida à norma; é necessário humanizar o direito e não apenas ver aplicadas as leis, por lidar com a vida das pessoas, seus afetos e suas mágoas, elementos tão íntimos e subjetivos; o direito deve ser mais célere, menos moroso. O Estado deve assegurar a felicidade, sempre que possível.

O Estado ao garantir o reconhecimento voluntário de paternidade socioafetiva enaltece o princípio da igualdade entre filhos, bem como assegura o direito à felicidade e a pluralidade das relações familiares.

 

2. Reconhecimento extrajudicial de paternidade socioafetiva

 

          É permitido o reconhecimento voluntário de paternidade perante o Oficial de Registro Civil, na forma do art. 1.609 do Código Civil, esta possibilidade deve ser também perfeitamente estendida às hipóteses de reconhecimento voluntário de paternidade socioafetiva, já que a Carta Magna contemplou o princípio da igualdade da filiação, não podendo existir qualquer forma discriminatória entre filhos.

          A igualdade no direito da filiação está assegurada também no art. 20 do Estatuto das Crianças e Adolescentes, bem como no art. 1.596, do Código Civil, que estabelecem os mesmos direitos e qualificações entre filhos, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

          Perante tal igualdade, consagrada está a máxima que não há hierarquias entre filiações, ou tipos de paternidade, seja  biológica, afetivas ou civil. A paternidade tem como fundamento a afetividade, a convivência familiar e a vontade livre de ser pai.

          Nada mais justo do que permitir que o pai socioafetivo possa ter o direito de registrar o seu filho, oriundo da afetividade, em condições de igualdade ao pai biológico. Aliás, esta premissa preconceituosa, de quem deve ir ao cartório registrar o filho é o pai biológico não encontra embasamento no teor legal do art. 1.607, nem mesmo no art. 1.609 do Código Civil. Ambos afirmam que os pais, podem registrar o filho, sendo tal ato irrevogável. Nas entrelinhas, as leituras que se faziam erroneamente era: o pai biológico é que deve registrar o seu filho.

          Afinal, quem é o pai? Objetivamente, “a paternidade reside antes no serviço e no amor que na procriação”[4]. Juridicamente, a paternidade está alicerçada na socioafetiva, revelada através da posse de estado de filiação, que nos remete à clássica tríade nomen, tractus e fama. Assim, para que haja a posse de estado, é necessário que o menor carregue o nome da família, seja tratado como filho e que sua condição oriunda da filiação seja reconhecida socialmente[5].

          Autorizar o reconhecimento voluntário da paternidade socioafetiva de pessoas que encontram-se registradas somente com o nome materno (sem paternidade estabelecida, diretamente, e perante o Oficial de Registro Civil de Pessoas Naturais, é oportunizar a proteção às famílias brasileiras, é garantir o direito de filiação e o tratamento de igualdade constitucionalmente instituído. O reconhecimento espontâneo da afetividade em cartório enaltece a verdade real, que deve também ser a verdade registral.

É ainda revelar e entender que paternidade pode ser natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem, entendendo que esta outra origem essencializa a afetividade, e a afetividade deve ser registrada. Afinal, as situações “de fato”[6] devem ser consagradas tanto quanto as situações “de direito”, uma vez evidencializadas.

Recentemente, no IX Congresso Nacional de Direito de Família, promovido pelo Instituto Brasileiro de Direito das Famílias, tivemos a oportunidade de aprovar nove Enunciados Programáticos. O Enunciado n.º 06/2013, estabelece que “do reconhecimento jurídico da filiação socioafetiva decorrem todos os direitos e deveres inerentes à autoridade parental”. Assim, também, destacamos o registro civil espontâneo da parentalidade socioafetiva. Reconhecimento jurídico não significa reconhecimento judicial. Frisa-se, nestes moldes, perfeito o enunciado nos registros de pais e filhos afetivos e todos os seus direitos conexos.

Enfatiza-se que em sede de segurança jurídica e em cumprimento ao devido processo legal, o registro voluntário extrajudicial somente será possível se o filho não possuir a paternidade registral estabelecida, e, ainda, inexistir processo judicial em trâmite no qual se discuta acerca da paternidade. Ressaltando que o reconhecimento da paternidade socioafetiva não obstaculiza a discussão judicial sobre a verdade biológica.

          Alcança-se com o enraizamento deste direito o mesmo patamar da igualdade jurídica dos filhos biológicos, em sede registral. Apontando para o vindouro, pode-se imaginar na multiparentalidade voluntária a perfeita interação jurídica, registral e consolidada de pais registrais biológicos e afetivos.

          Brilhantemente o músico Raul Seixas já rabiscava o Estado legalista, ortodoxo de algumas áreas do Direito hodierno, na letra da música “O carimbador maluco (plunct, plact, zum)”. Pelo olhar musical podemos criticar  alguns Direitos engessados onde tudo tem que ser selado, carimbado, rotulado, se quiser voar. Outrora, a lei está; o fato move-se. Resta, portanto, parafrasear: “Carimbamos” o reconhecimento voluntário de paternidade socioafetiva. Para o seu foguete (registro voluntário e extrajudicial da paternidade socioafetiva) viajar pelo universo (Direito). É preciso ter o “carimbo” dando o sim, sim, sim, sim[7]...



[1] Leandro Lomeu. Mestre em Direito pela Faculdade de Direito de Campos (FDC/RJ). Professor de Direito de Família na Faculdade de Direito do Vale do Rio Doce. Tabelião de Protestos de Títulos e Documentos em Itambacuri-MG. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família.

[2] Artigo e trecho da música dedicado a Bianca Bittencourt Lomeu, filha socioafetiva por opção, apesar de ser biológica. Estimando que os laços afetivos sobrevaleçam cada vez mais nossos laços biológicos, e que este seja o anseio jurídico-parental em nosso país.

[3] VILlELA, João Baptsita. Repensando o Direito de Família. In: Nova Realidade do Direito de Família.

Rio de Janeiro: COAD, Tomo 2, SC Editora Jurídica, 1999, p. 52/59.

[4] VILLELA, João Baptista. A desbiologização de paternidade. In: Revista Forense, Rio de Janeiro, n. 71, p. 45. jul./set.1980

[5] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais e norteadores para a organização jurídica da família. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Paraná, 2004, p. 131-132.

[6] “As situações de fato são espécies análogas de uma situação jurídica devidamente reconhecida e regulamentada pela lei, porém, faltam-lhe determinados requisitos que as tornam carecedoras de condições legais para sua acessão, em princípio, na vida do direito. Sua existência é concreta em vários pontos das relações humanas, mas por insuficiência da sistemática ortodoxa em absorver a carência contida nessa situações acaba criando uma cisão entre o mundo real e o mundo jurídico”, conforme lições de Danielle Machado Soares. Condomínio de Fato. Editora Renovar, p. 27.

[7] Os sins começaram a eclodir através dos Provimentos publicados pelas Corregedorias-Gerais de Justiça do Estado do Maranhão (Provimento n.º 21/2013), Pernambuco (Provimento n.º 09/2013), Ceará (Provimento n.º 15/2013) e Santa Catarina (Provimento n.º 11/2014).


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