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10/11/2014

Os registros e notas eletrônicos – Entrevista com Sérgio Jacomino

Quando vi Sérgio Jacomino (SJ) sentado, com uma mochila, sendo atendido no pequeno cartório em que eu iniciava minha carreira profissional, fiquei profundamente surpreendido. O nome que eu lia na vasta produção acadêmica, o presidente do IRIB, era um homem de carne e osso, com uma câmera fotográfica na mão e, para aumentar minha surpresa, queria saber a minha opinião sobre cartórios e concursos. Eu era novo em todos os sentidos da palavra, sentia que tinha muito a fazer e nada para dizer, mas SJ é genuinamente registrador e preservou o momento.

Não esqueço a carta que o IRIB, sob a presidência de Jacomino, enviou aos novos concursados, onde se lia o verso de Fernando Pessoa, "Deus quer, o homem sonha, a obra nasce". E, nos seus discursos, SJ desvenda o mundo, nos trazendo a citação de Vitor Pradera, pela via de Ricardo Dip: eis a tradição, “que não é todo o passado, mas apenas o passado que se faz presente e tem virtude para fazer-se futuro”.

SJ planta sementes no coração e na mente das pessoas, cultivando-as. É notável sua generosidade. Por exemplo, sua biblioteca particular, a Medicina Anima, está compartilhada com a comunidade científica, disponibilizando valioso acervo bibliográfico, para qualquer pessoa que deseja pesquisar e estudar. É um homem que quer ver crescer o tronco firme das atividades notariais e registrais e admirar a beleza das flores que brotam nessa imensa árvore.

A juventude não se prova com certidão, mas com a permanente capacidade de surpreender e se deixar surpreender. Termos o SJ pensando o futuro dos registros, com os pés na realidade histórica, é um privilégio delicioso. É um farol nesse mar escuro e agitado de elétrons.

Marcelo Salaroli de Oliveira.

MSO - Os cartórios extrajudiciais são pioneiros ou retardatários na adoção de novas tecnologias para a instrumentalização de atos jurídicos?


SJ - Os cartórios são pioneiros. Favorece-os, em primeiro lugar, uma larguíssima tradição de criação, cuidado e perícia na preservação documental. Basta lembrar os antigos monumentos (documentos) preservados: os hóroi gregos, os kudurrus acadianos, os papiros egípcios, gregos e medievais, até nossos livros tabeliônicos. Conhecemos detalhes importantes da sociedade dessas épocas a partir de textos que se mantiveram em suportes tão variados e que foram concebidos, todos eles, para resistir à passagem do tempo. Em segundo lugar, porque somos singulares no modelo de atribuição de uma função pública ao particular, consagrando-se a gestão privada de um sem-número de documentos que, a rigor, são públicos. Esse binômio tensivo – função pública X gestão privada – singularizou a nossa atividade e nos legou solução muito original na tutela pública dos interesses privados. Isto para ficarmos no modelo adotado desde que Martim Afonso de Souza se abalou de Portugal com poderes para criar jurisdição e... tabeliados! Muitos dos documentos que originariamente integravam a administração pública colonial (como os antigos livros de concessão de sesmarias) acabaram nos tabelionatos e agora, muitos deles, bem preservados, acham-se no Arquivo Nacional. Convenhamos: não seria possível estudar a formação da língua portuguesa com base em monumentos medievais tabeleônicos se os notários não fossem peritos em aplicar, a seus documentos, tecnologias provadas pela experiência.

Quando surgiu a televisão, seus primeiros programas não passavam de programas de rádio em que era possível ver o radialista. Estariam os registradores brasileiros praticando no mundo eletrônico os vícios e as limitações do mundo do papel?


Esta pergunta traduz cultura geral. Você certamente estará se referindo a uma obra seminal (Understanding media – the extensions of man, de Marshall McLuhan), baseada na qual escrevi, há quase 20 anos, que o grande risco da informatização mal planejada seria a criação de verdadeiros simulacros registrais. A informatização dos cartórios parecia-me, desde o início, uma sessão laboratorial de “reprodução de eunucos” – esta boutade foi veiculada perante uma plateia perplexa reunida em São Paulo no longínquo ano de 1996. Completava: “A matrícula digital, como querem alguns, ou o fólio eletrônico, como o denominam outros, deverá ser uma entidade substancialmente nova, incorporando níveis de consulta diferenciados, interfaces com bancos de dados do próprio cartório (indicadores) e prefeituras, croquis, plantas, fotos etc. além de permitir acessos singularizados, com instalação de terminais no balcão do Registro, acesso aos bancos de dados da Serventia via modem, fax etc. Tudo controlado por sistemas”. E mais adiante: “o nó górdio da questão reside numa constatação desconcertante: via de regra, nem os registradores entendem suficientemente de processamento eletrônico de dados, teoria da informação etc., nem os analistas e programadores de computadores entendem de registros públicos... A influência recíproca que se exercem, uns sobre os outros, tem levado a equívocos e paradoxos” (Serviços Notariais e de Registro - Teses apresentadas no 1º Simpósio Nacional de Serviços Notariais e Registrais. São Paulo: ANoregSP, 1996, p. 104-5, NE.). Não penso que muita coisa tenha mudado, infelizmente.

Por que estudar a História do Direito, já que os historiadores não consideram que seja História e os juristas não consideram que seja Direito?  Em outras palavras, de que serve um "especialista em direito revogado"?


Especialista em direito revogado... esta expressão, cunhada pelo Dr. Antônio Carlos Alves Braga Jr., é engraçada. Ele se espantava que me lembrasse de dispositivos legais da reforma da legislação hipotecária de Nabuco, de 1864. Na verdade, o que mais me atraía no assunto era o fato de que a sociedade brasileira, neste admirável período do Brasil Império, tinha uma sensibilidade desperta para receber, no âmbito das especulações jurídicas, o contributo de pensadores que refletiam sobre economia e administração no governo do país. Hoje voltamo-nos, com um certo novidadismo, para as “análises econômicas do direito” esquecendo-nos que, àquela época, os juristas eram convocados para dar soluções jurídicas a problemas de caráter econômico e social. Produziam-se, digamos assim, “análises jurídicas da economia”. Afinal, nada mais urgente, naquela altura, do que dotar a sociedade brasileira de modernos sistemas de publicidade registral que pudessem dar garantias aos créditos fundiários, degradando os custos financeiros de operações que representavam grandes riscos em virtude de ônus e gravames imobiliários ocultos. Vemos isso claramente nas propostas que se apresentaram desde 1844, na gestação do Decreto 482, que veio a lume somente em 1846. É o que se percebe na reforma de José Thomaz Nabuco de Araújo, de 1864. Nesse mesmo sentido as postulações de Rui Barbosa, com a criação dos títulos de crédito lastreados em garantias reais, na modelagem do Registro Torrens, etc. Mas aí entramos no século XX e as discussões relacionadas com o Registro de Imóveis foram, pouco a pouco, arrefecendo e acomodando-se nos escaninhos dos juristas. Os fundamentos econômicos e sociais foram relegados e considerados simplesmente assuntos metajurídicos. O resultado foi o recrudescimento de fórmulas mais ou menos esotéricas, com jargões especializados. Caímos, então, numa espécie de armadilha confortável, verdadeira “torre de marfim”, cidadela ultraespecializada que nos levou, mais e mais, distantes da percepção que se tinha da importância social e econômica dos Registros Públicos. Enfim, estudar história é fundamental para a reeducação e para não repetir os erros do passado!

Os registradores de imóveis gozam de autonomia no gerenciamento do serviço público que lhes foi delegado, bem como já existe previsão legal determinando a instituição do registro eletrônico. Isso não permite a cada oficial estabelecer o registro eletrônico da forma que lhes aprouver?


Evidentemente, não. Os serviços notariais e registrais são públicos. A gestão privada se limita aos aspectos financeiros e administrativos da serventia. O conteúdo do Registro – seus atos, inscrições, anotações, etc. – são públicos. O suporte haverá de sê-lo também. Forma e conteúdo - ambas expressões de direito público. Não é possível pensar-se em criar livros de registro à imagem e semelhança de cada registrador... Não será possível criar um “Registro Eletrônico” em cada serventia. Há alguns anos cunhei uma expressão que me parecia adequada para expressar a situação de mudança de paradigmas motivada pelo impacto de novas tecnologias: atomização X molecularização dos cartórios. Embora, desde o seu nascedouro, o Registro de Imóveis tivesse um número definido de livros bem estruturados, a partir do final da década de 70 os Registros passaram a adotar, para o desempenho de suas atividades, novas tecnologias – como o microfilme, a informática, os processos de gestão (ISO) etc. Este fenômeno atraiu empresas especializadas que ofereceram soluções que a todos pareceram adequadas, mas que representavam, na prática, a criação de novos livros ou de originais repositórios eletrônicos sem a adequada regulação. São exemplos: indicadores pessoal e real eletrônicos, livro protocolo em bancos de dados, arquivos de matrículas digitalizadas etc. Isto representou o início de um processo de “replicação registral”, com procedimentos paralelos, espelhados, guiados por sistemas informáticos, fenômeno que ocasionou a reconformação de rotinas tradicionais dos cartórios. Em pouco tempo, os atos passaram a ser praticados em meios eletrônicos e os livros tradicionais converteram-se numa espécie de backup residuário do sistema. Mas este processo (que ainda se desenvolve com uma dinâmica toda própria) pecou pela raiz, já que não houve uma modelagem adequada com base numa arquitetura inteligente que pudesse estruturar esses novos repositórios. Esse fenômeno redundou, na prática, na criação de um registro eletrônico homólogo, matriz espelhada do fólio tradicional, atraindo, para suas rotinas, todas as limitações que se pode identificar muito claramente nos meios tradicionais de registração. Voltamos à denúncia feita em 1996 no encontro da AnoregSP: “a digitalização da matrícula, com a captura de sua imagem, é mero efeito especular. Desconsidera as amplas potencialidades que as media eletrônicas abrigam. Recepcionar, vamos dizer assim, a matrícula, tal qual hoje a conhecemos, em meio rico e substancialmente diferente, é erro indesculpável. Há que se pensar na matrícula digital como uma entidade nova” (idem, ibidem). Todos temos culpa no cartório. Convivemos hoje, em termos de informatização das serventias, com o seguinte paradoxo – expresso numa frase bem humorada (hiperbólica, claro!) de um consultor independente: os “programas de informática, quando não atrapalham as rotinas do cartório, também não ajudam muito...”. É uma pilhéria mas que traduz de certo modo a realidade.

A tecnologia da informação potencializa a possibilidade de buscas dos registros de imóveis, sendo possível obter relatórios que os registros em papel não permitiam. Isso desperta a necessidade de sigilo, até mesmo para proteger as pessoas de atitudes criminosas. De que forma é possível ao Registro de Imóveis, que é público, conviver com o sigilo?


Esta é uma das minhas antigas preocupações. Entre os dias 28 e 29 de setembro de 2005, na condição de Presidente do IRIB, realizamos, em São Paulo, nos auditórios da AASP, um importante debate: “Proteção de Dados, Novas Tecnologias e Direito à Privacidade nos Registros Públicos”. O evento reuniu a nata de especialistas do Brasil e da Espanha. Foi a primeira vez em que se reuniram registradores, representantes do governo federal, membros do Judiciário paulista, advogados e destacados representantes da Academia para discutir um tema que hoje representa um desafio para todos nós. Estamos diante, uma vez mais, de um binômio tensivo: privacidade X publicidade registral. O art. 17 da LRP prevê que “qualquer pessoa” poderá requerer certidão do registro “sem informar ao oficial ou ao funcionário o motivo ou interesse do pedido”. Esta disposição não pode ser lida de modo raso, como a perceberam e interpretaram os nossos antecessores. Devemos tomar esta expressão, historicamente definida, e submetê-la a uma interpretação conforme a nova ordem constitucional. Hoje, em nosso contexto social e político, em que os dados de caráter pessoal são protegidos por comando constitucional (art. 5, X, da CF/1988), a publicidade registral deve ser repensada. Levemos em consideração o fato de que as pessoas se acham excessivamente expostas nas redes sociais e nos meios eletrônicos. Seus dados pessoais e patrimoniais são profanados pelo comércio ilegal de dados, como se vê no noticiário. Penso que lhes reservar uma cidadela fortificada, em que esses dados e informações estejam protegidos, é uma tarefa que ainda pode ser confiada aos notários e registradores. Até aqui, os dados confiados a esses profissionais acham-se relativamente protegidos em virtude, certamente, do sistema atomizado a que me referi acima. De fato, não seria viável uma peregrinação a cada serventia do país para obter um inventário patrimonial de qualquer pessoa. Entretanto, com o advento de redes integradas, formadas pelos próprios Cartórios no processo de “molecularização” registral, isso se tornará possível. É evidente que devemos repensar o procedimento de expedição de certidões e informações pelos Registros Públicos. Eis, aqui, mais um exemplo a provar que os meios transformam a mensagem...

A publicidade dos direitos sobre o imóvel sempre foi feita no cartório do local onde situado o bem, mas com o registro eletrônico é tecnicamente possível romper fronteiras e realizar o registro em qualquer lugar. Isso representa um avanço ou um perigo?


Esta pergunta é excelente e a busca por respostas consistentes me tem tirado o sono. Tenho dedicado parte do meu tempo ao estudo do impacto de novas tecnologias em atividades humanas tradicionais e, especialmente, nas profissões jurídicas. Existe nos Estados Unidos uma linha de pesquisa que busca revelar em que medida as atividades tipicamente humanas poderão ser substituídas – em alguns casos com vantagens – por softwares especializados, vale dizer, por máquinas. Tenho a intuição de que quanto mais nos afastamos do contato direto com os usuários – com seus problemas reais e concretos, lidando com seus conflitos e interesses – tanto mais nossa atividade tende à automatização. Um flanco bastante vulnerável, para os registros públicos, haverá de ser os chamados documentos dinâmicos – documentos eletrônicos que se ligam a complexos bancos de dados e que se alteram on the fly de acordo com o fluxo de novas informações que são providas diretamente pelos usuários. Esses documentos são a face visível de um sistema complexo que se atualiza dinamicamente a partir do acesso compartilhado entre emissor e receptor. Um exemplo concreto pode ser encontrado na chamada penhora online. Calcanhar de Aquiles dos registradores de imóveis, os títulos judiciais, especialmente as inscrições de penhora, sempre representaram um problema porque os títulos, em regra, são mal formados na origem. A qualificação registral demandava um trabalho extra – além de atrair ameaças de prisão por descumprimento de ordem judicial. Com a criação da penhora online, grande parte dos problemas formais foi resolvida. O aspecto mais importante a ser destacado aqui é o fato de que o sistema “guia” o escrivão judicial na “lavratura” da certidão para fins de penhora, requisitando, automaticamente, os dados que serão essenciais para o ato de inscrição, impedindo a ultrapassagem de cada etapa sem o satisfatório preenchimento dos campos na anterior. Estamos ainda no início de um complexo processo que culminará na formação de um ambiente interativo, envolvendo o emissor (notário, escrivão, agente do crédito imobiliário ou da administração pública etc.) e o receptor (registrador imobiliário). E, nesta altura, voltamos, uma vez mais, à McLuhan: “cada forma de transporte não só carrega, mas traduz e transforma o remetente, o destinatário e a mensagem”. Os meios eletrônicos hão de alterar o próprio registro.

O Sr. suspeita que as atividades registrais automatizadas possam ser assimiladas por “instâncias” estatais ou privadas?


A doutrina de direito registral, de uns tempos a esta banda, divide os modelos de organização da publicidade registral basicamente em dois grandes sistemas: Registros de Direitos X Registro de Documentos. Em linhas muito gerais, no primeiro caso há um controle ex ante da titulação, franqueando o acesso ao fólio registral somente àqueles documentos que reúnam as condições necessárias para plena eficácia dos direitos. Esses títulos submetem-se a um rigoroso exame de legalidade pelo exercício da atividade medular do registrador – a chamada qualificação registral. Já no segundo caso, não existe um controle prévio de legalidade. Eventual patologia incrustada no título fica na dependência de eventual declaração judicial para futura adjudicação de direitos. Diz-se, nestes casos, que o controle de legalidade se dá ex post. No Brasil temos os dois modelos convivendo e expressando suas diferenças: no primeiro caso, o Registro de Imóveis, tal e qual o conhecemos; no segundo, os registros administrativos das Juntas Comerciais. Está provado que o chamado Registro de Direitos (com certa crítica na importação da expressão) é um estágio muito mais elaborado e eficiente da publicidade registral, pois degrada os custos relacionados com os intercâmbios econômicos numa sociedade complexa e dinâmica como é a contemporânea. Gostaria de destacar que corremos o risco de atravessar o arco que nos levará do controle ex ante em direção a modelos menos aperfeiçoados em que a situação jurídica se definirá ou com a adjudicação decorrente de uma ação judicial, ou com a segurança econômica que visa cobrir os riscos inerentes aos intercâmbios de mercado.

Pode dar exemplos concretos?


No primeiro caso, temos uma degradação da qualificação registral em face dos títulos judiciais. De uns tempos para cá, o nosso Conselho Superior da Magistratura São Paulo – esteio, por décadas, da boa orientação jurisprudencial –, vem decidindo que os títulos judiciais devem sempre ser registrados, mesmo quando se constatem graves erronias no título. Em muitos casos, o erro na se acha na prestação jurisdicional, mas na elaboração do título. Em outros, o fenômeno tem ocorrido mesmo nos casos em que o tema decisório não se acha coberto pelo manto da jurisdição e pela imutabilidade decorrente do trânsito em julgado material (casos de partilha nos inventários judiciais, por exemplo). O acesso desses títulos imperfeitos, passíveis de serem sanados por simples medidas retificativas, rogadas pelas próprias partes, acabam inoculando o germe da insegurança jurídica. Os problemas começam a ser sentidos na mutação subsequente, em que o registro imperfeito acaba por irradiar efeitos deletérios. São milhares de decisões judiciais que vulneram a cidadela do registro de imóveis sem que o tema da obstância registral fosse enfrentado e superado com uma decisão judicial firme e precisa (art. 204 da LRP). O vale-tudo judiciário, especialmente na justiça laboral, longe de prevenir conflitos, representará, a médio e a longo prazos, um fator de potencialização de litígios. Antes o judiciário, com atribuição exclusiva de lei, retificava o registro – isto é, tornava-o reto, corrigia-o, endireitava-o, hoje, lamentavelmente, testemunhamos um perigoso sentido inverso: títulos judiciais, reconhecidamente imperfeitos, ao ingressarem no Registro de Imóveis, o tornam duvidoso, defectivo, imperfeito. No segundo caso, vemos a proliferação de registros privados que medram ao lado do edifício institucional. São registros que reclamam os atributos de “publicidade” e de “eficácia perante a terceiros” e que se constituem como simulacros dos verdadeiros registros de segurança jurídica, estes revestidos pelo manto de oficialidade e estatalidade. São inúmeros os exemplos. Como critério diferenciador, criam-se neologismos técnicos como “gravames” e apropriam-se de expressões tradicionais dos sistemas de publicidade – como “eficácia perante terceiros” (vide o art. 63-A da Lei 10.931, de 2004 e o Decreto 7.897/2013). Exemplos não faltam. A recente Medida Provisória 656/2014, ao mesmo tempo em que prevê a chamada “concentração” na matrícula (outro neologismo espúrio), prevê a regulamentação de registros “públicos” pelo Conselho Monetário Nacional. Note um aspecto importante: esses registros são inteiramente eletrônicos. Não há uma “qualificação” registral no input do sistema, nem se faz um controle nas sucessivas mutações de titularidade dos créditos e da propriedade (veja o desconcertante art. 22 da Lei 10.931/200, em que a cessão eletrônica dos créditos garantidos implica, automaticamente, a transferência da propriedade fiduciária...). Todos os processos “escriturais” são eletrônicos, automatizados. Essa tendência pode representar a desconstrução dos tradicionais sistemas de publicidade registral.

O Sr. suspeita que o Registro existirá sem um registrador?


Não penso que cheguemos a tanto. Mas note, por exemplo, como os módulos que compõem a Central ARISP de serviços eletrônicos compartilhados funcionam atualmente – seja o ofício eletrônico, a penhora online ou a indisponibilidade etc. Somam-se quase uma dezena de módulos interdependentes. Penso que deverão ser integrados um único sistema baseado no relacionamento com o Registro de Imóveis. A pesquisa patrimonial poderá levar, automaticamente, à penhora ou à indisponibilidade de bens e isto sem grandes saltos procedimentais. Os dados do Registro, disponibilizados neste contexto (eu chamaria de “ambiente integrado”), são disponibilizados numa espécie de matrícula dinâmica, livro híbrido, atualizável on the fly, em tempo real, em que o próprio título pode perfeitamente se converter em ato de registro. E vice-versa. Basta pensar nos documentos eletrônicos estruturados baseados em XML que tanto podem servir ao ato de registro quanto à prática do próprio ato notarial ou judicial. O risco, então, se acha na entrega do  controle do registro, que pode se deslocar do registrador para quem centralize e domine os dados do Registro de Imóveis. Quem controlar o sistema de Registro, seja como “gestor territorial”, ou como agente promotor de mutações jurídicas, terá o poder de transformar o registrador em mero amanuense. A atividade crítica do registro tradicionalmente foi o input no sistema; agora será o output. Inesperadamente, a publicidade registral ganha um novo relevo. A qualificação registral se dirige não somente ao título que ingressa, mas à situação jurídica que imediatamente publica, escoimando-a de todo dado irrelevante do ponto de vista informacional. Afinal, a quem poderá interessar um ônus cancelado? Mais do que isso: que importância poderá representar o “discurso” narrativo dos atos, lavrados como previsto no art. 231, I, da LRP, em face dos dados estruturados que vão aos “livros escriturados de forma eletrônica” indicados no art. 40 da Lei 11.977/2009? As modalidades de certidões se multiplicarão e serão oferecidas em modelos prêt-à-porter, atualizáveis automaticamente. O fetiche tecnológico, que mascara a captura do Registro Público por instâncias econômicas ou estatais, pode levar ao esvaziamento dos significados tradicionais dos registros públicos, convertendo-os em meros depositários de dados. Daí ao esvaziamento das atribuições tradicionais do registrador é um passo. O seguinte poderá ser a extinção, pura e simples do modelo multissecular. O Registro Hipotecário francês, extinto em janeiro de 2013, nos pode dar lições importantes (v. ).

Tempo e espaço - centralização, atomização e molecularização - são expressões correntes em seus artigos. Poderia comentar o que significam, no contexto do registro eletrônico?


É nesse ambiente de transformações que se move o Registro Público atualmente. Vejamos a questão do tempo. O registro é demorado? Proceder ao registro em 20, 10 ou 5 dias não tem importância alguma quando consideramos que a função típica dos nossos registros é prevenir futuros conflitos e litígios - demandas que podem se arrastar por muitos anos. Vejo, com certo pesar, que nossas lideranças foram atraídas a uma cilada na busca desesperada de emular os "registros públicos" eletrônicos oferecidos pelo sistema financeiro. Os "registros de ônus e gravames", como previsto no Decreto 7.897/2013, operam eletronicamente, automatizados, sem qualquer controle preventivo - salvo as cláusulas gerais decorrentes de regulação do Banco Central e da Comissão de Valores Mobiliários, além da autorregulação das próprias instituições financeiras. Os Registros Imobiliários não podem rivalizar com esses sistemas do ponto de vista da gestão de seus processos. Degradar o tempo consumido para o registro dos títulos - como se isso representasse efetivamente uma vantagem para os envolvidos na transação - pode levar a uma transformação substancial do próprio Registro. Numa situação ideal, em que as assimetrias informativas não se verificassem no mercado, o tempo de registração, de fato, seria uma variável onerosa e perfeitamente dispensável. Bastaria a contratação e sua imediata publicidade. Mas não é assim na realidade. Dos 30 dias, saltamos para 15, depois para 10, agora para 5. Não demorará e faremos o registro em 2 dias... Este processo nos levará até o ponto em que o registro passe por nós. E já não seremos importantes, não representando mais do que um elo redundante num amplo arco de transações econômicas. Corremos o risco de nos transformar em nódulo burocrático e ineficiente no trânsito de informações. Insisto: desde que levemos um tempo razoável para o exame e registro dos títulos, a questão de tempo não desempenha um papel crucial no contexto de nossas atividades. Saímos de um modelo de isolamento dos registros, siderados em comarcas às vezes distantes umas das outras, e, por força irresistível dos meios eletrônicos, rapidamente nos “molecularizamos”, integrando uma cadeia complexa de informações e de serviços. A tendência será as várias centrais de serviços (notarial e registral) coordenarem-se num portal único de acesso. Mas esta tendência não pode chegar ao ponto de destruir a singularidade de cada uma das especialidades. O risco que corremos é a ultrapassagem do termo médio virtuoso descambando para a centralização de dados em órgãos públicos ou privados. Este é um risco imenso e expressa uma compreensão equivocada das potencialidades proporcionadas pelas bases eletrônicas de dados. Não será um “mega-cadastro” territorial, ideia muitas vezes associada aos chamados “cadastros multifinalitários”, que imprimirá maior segurança e agilidade na gestão territorial. Este tema é especialmente delicado porque a constituição de supercadastros interessa de perto a grandes empresas que vendem soluções tão sedutoras quanto caras. O poder político se encanta com soluções mágicas, traído pela promessa de efetivo controle social. Afinal, informação é poder. O dramático, nisso tudo, é que o fetiche eletrônico encanta também notários e registradores, que, desavisados, entregam a alma a essa entidade mefistofélica que representa a conjugação de interesses como os econômicos e de controle social, com invasão à esfera privada de cada cidadão. Nunca nos esqueçamos: a atividade notarial e registral pode e deve ser exercida inclusive em face do próprio Estado! Neste sentido, os notários e registradores, com seus livros de registro, representam uma cidadela armada da sociedade civil na defesa de seus interesses privados em face do poder político e das potestades econômicas.

O Senhor considera que a integração dos registros públicos com os cadastros multifinalitários representa um risco para as instituições registrais?


Nisto tudo há um enorme equívoco. É evidente que a coordenação dos registros imobiliários com os cadastros é de todo desejável e deve ser buscada. Mas note: coordenação não significa absorção, integração. É preciso reconhecer que a inexistência dessa coordenação, ao longo de muitas décadas, não foi um fator de mal funcionamento dos registros, nem para tornar eficiente o sistema cadastral. Além disso, não é a coordenação entre ambas as instituições que pode emprestar eficiência aos cadastros. Os cadastros imobiliários municipais e do INCRA são, notoriamente, deficientes e mal administrados. Não será, pois, a absorção dos Registros Imobiliários, a integrar uma das camadas de um mal-ajambrado cadastro multifinalitário, que haverá de tornar o cadastro eficiente. As ideias que embalam a absorção dos Registros Imobiliários pelos sistemas de “gestão territorial” consistem em mais um dos vários mitos que embalam o sonho daqueles que pensam conforme a matriz de controle social. Os cadastros e os registros podem ser muito melhores se não fossem levados pela má ideia de absorção de um pelo outro.

Qual a importância das associações de notários e registradores para o desenvolvimento do registro de imóveis eletrônico?


Penso que as associações de notários e registradores deverão jogar um papel fundamental na promoção das atividades notariais e registrais neste novo milênio. Retomo a ideia da “molecularização” dos registros e das notas. O fenômeno de interconexão e de coordenação das unidades de registro e das notas leva à necessidade de desenvolvimento de ferramentas específicas para a gestão dessas informações compartilhadas em redes eletrônicas. Os serviços eletrônicos compartilhados levam, por seu turno, à necessidade de reestruturação das ferramentas utilizadas no interior de cada serventia que agora lidam com repositórios eletrônicos exógenos (pensem na Central de Indisponibilidades, por exemplo). Note como o fenômeno da transformação dos meios acarreta a transformação das atividades e dos próprios agentes. Finalizo com McLuhan: o meio é a mensagem!


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