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23/11/2020

Clipping – O Globo - Escrituras de venda de escravos inéditas são recuperadas em cartório de Guarulhos; veja documentos

GLOBO teve acesso ao material que mostra que os escravos não eram tratados como humanos, mas como objetos

“A escrava de nome Joaquina, depois de meu falecimento, fica forra e liberta como se nascesse de ventre livre”. A frase aparece no documento de 20 de junho de 1845, em que Maria Lourenço da Conceição concede, após sua morte, a alforria à Joaquina pelos “bons serviços prestados”. A escritura de 175 anos estava guardada em um dos cartórios de Guarulhos e hoje faz parte do projeto Memória Notarial, que resgata e restaura documentos históricos arquivados em cartórios do Brasil. 

O GLOBO teve acesso a alguns desses documentos, que datam do século XIX, o último da escravidão no Brasil, abolida em 1888. O material, parte ainda na caligrafia da época, registra o tratamento desumanizado que os escravos recebiam, tratados como objetos. 

“Digo eu, Maria Lourenço da Conceição, que entre meus bens que possuo, sou senhora e possuidora de uma escrava de nome Joaquina”, escreve a mulher na carta de liberdade que concede a outra mulher, que era escravizada.  

A objetificação é ainda mais clara em dois outros documentos, ambos de 1871, em que são firmadas a venda de duas mulheres — uma delas com seu filho de nove meses.  

“Perante as testemunhas pelo dito Miguel Antonio Condolpo, me foi dito que ajusto título era senhor e possuidor de uma escrava com um filho, ela por nome Thereza e o filho José, este de idade de nove meses (....)”, diz uma das escrituras, que continua: “Pela presente escritura vendia a Francisco Bueno de Siqueira, pela quantia de um conto trezentos mil reis, (...) a posse e domínio que nos ditos escravos tinha para que goze e desfrute como seus ficarão sendo de hoje para sempre”. 

Já a outra escritura descreve a mulher que está sendo vendida como “a escrava de nome Gertrudes, preta fulla, solteira, de quarenta anos de idade mais ou menos”. Ela é vendida pelo valor de “um conto de réis” e, assim como Thereza, o documento informa que seus compradores passaram a ter propriedade sobre ela “de hoje para sempre”. 

— Não havia registros de escravos, o que havia eram os negócios feitos com os escravos. Então, as escrituras os tratavam como coisas, como bens — explica Andrey Guimarães, vice-presidente do Colégio Notarial do Brasil e responsável pelo projeto de resgate de documentos históricos. — Em algumas escrituras que li encontrei muitas descrições assim: “forte”, “braços longos”, “tal peso”, “bons dentes”, “bom reprodutor”. Numa linguagem e nos critérios muito similares com o que hoje a gente tem com animais. Havia até descrição de comportamento, se era calmo, se era violento. Sempre com adjetivos não usados com humanos.

É possível notar o tratamento objetificado até em aspectos mais subjetivos. Nas escrituras, todas as testemunhas e partes do processo tinham nome e sobrenome. Os escravos, não. 

O historiador Flávio dos Santos Gomes, autor de “Dicionário da escravidão e liberdade”, “Mocambos e quilombos” e “O alufá Rufino”, entre outros, afirma que essa era a lógica da escravidão, de tratar os escravos como objetos e demonstrar o poder sobre eles.  

— A escravidão é uma linguagem. É a linguagem da hierarquia, do poder. Isso é muito forte. O que está escrito nesses documentos são coisas que socialmente não existem mais — afirma. 

Ventre livre 

Quando a venda de Thereza foi firmada, em 13 de novembro de 1871, a Lei do Ventre Livre havia sido assinada há pouco mais de um mês. A legislação determinava que todo filho de escrava nascido a partir da data que foi promulgada, em 28 de setembro, seria considerado livre. 

No entanto, apesar do que dizia a lei, os senhores de escravos achavam modos de contorna-la, registrando, por exemplo, os bebês como se tivessem nascido antes do dia em que a legislação entrou em vigor.  

— O registro do nascimento era o registro religioso, o batismo. E como não havia um prazo para isso, as crianças poderiam ser batizadas depois, muitos senhores de escravos podem ter tentado demonstrar que a filha daquela escrava tinha nascido antes de 28 de setembro — explica Gomes, que acrescenta que houve, depois, processos-crimes de mulheres que lutaram para provar que seus filhos nasceram depois da lei. 

No entanto, mesmo que beneficiada pela Lei do Ventre Livre, a criança ainda viveria dentro de um ambiente de escravidão, já que sua mãe continua sob a condição de escrava.  

— Juridicamente essa criança não era escrava, mas as condições que vivia era de um ambiente de escravidão. Imagine que em um ano seu filho nasce escravo, e no seguinte, seu outro filho nasce livre. Os dois serão criados juntos — explica o historiador, que completa: — E essa criança não pode ser vendida, porque ela é livre, ela foi batizada no livro dos livres. Porém, vive em um cenário de liberdade num mundo cercado de escravidão.

Antes mesmo que a lei existisse, já havia o conceito de ventre livre. Isto é visto na carta de liberdade à Joaquina, em 1845, e até antesem 1831, na escritura que formalizou a alforria de Francisca, concedida após a morte de sua dona. 

“Digo eu, Luís Mariano Ferreira, ordeiro de minha falecida Catherina Maria Conceição, que entre os bens que a mesma possuía (...) uma mulata de nome Francisca, filha de outra de nome Isabel, que tinha uma criança de oito meses mais ou menos, a qual possuía como sua antes de sua morte”, diz o documento, que ainda está na caligrafia da época, o que faz com que alguns de seus trechos sejam ilegíveis. Ele continua: “(...) pela presente lhe deu plena liberdade, ficando livre de sua escravidão de hoje, para todo sempre, como se de ventre livre nascesse”. 

Além das escrituras de alforria e de venda de pessoas escravizadas, há também os registros nos cartórios brasileiros sobre outras movimentações feitas pelos senhores de escravos, como a doação de bebês, uma forma de burlar a lei da época que impedia separar crianças de suas mães vendendo-as. Essas documentações estão guardadas em ofícios pelo Brasil; a intenção do projeto Memória Notarial é restaurá-las de forma que seu acesso seja expandido para o público. 

— O que motivou o Colégio Notarial do Brasil a buscar essas escrituras e trazê-las a público é justamente fazer com que as pessoas tenham, a partir do impacto de que elas geram, um ganho de consciência — diz Guimarães, que completa: — Aquele que não se atenta a história, corre o risco de repeti-la. A importância [desses documentos] é você lembrar sempre a sociedade sobre o que já ocorreu, e a partir dessa lembrança saber o que não deve ocorrer mais.  

Fonte: O Globo


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