Na discussão jurídica sobre a validade de um testamento, o que deve
prevalecer é o respeito à vontade real do testador. Qualquer alegação que
justifique a nulidade precisa estar baseada em fato concreto, e não em meras
formalidades. Com essa orientação, a Terceira Tuma do Superior Tribunal de
Justiça (STJ) negou o pedido para anular o documento testamentário de uma
empresária que estaria cega no ato da elaboração de seu testamento. O
relator do recurso foi o ministro Paulo de Tarso Sanseverino.
De acordo com as informações processuais, as duas únicas sobrinhas de uma
senhora falecida em Santa Catarina entraram com ação de anulação do
testamento cerrado elaborado pela tia, empresária da cidade de Jaraguá do
Sul (SC), que morreu solteira e deixou seus bens para instituições de
caridade locais. O testamento cerrado, às vezes chamado de secreto ou
místico, é aquele documento escrito pelo próprio testador, ou por alguém
designado por ele, com caráter sigiloso, completado pelo instrumento de
aprovação lavrado por oficial público (tabelião) na presença de cinco
testemunhas.
As sobrinhas contestavam a validade do documento, sustentando a
incompetência da tabeliã que lavrou o termo de confirmação. Afirmavam,
também, que a tia, à época que elaborou o testamento, estaria completamente
cega e sofrendo de problemas mentais decorrentes de sua idade avançada.
Desse modo, o tipo de testamento (cerrado) seria nulo. Os advogados das
sobrinhas alegaram, ainda, que a empresária teria sido manipulada pela
pessoa que digitou seu ato de última vontade, por se tratar de uma das
beneficiadas pelo testamento. Para corroborar os argumentos, apresentaram
laudos médicos e outras provas produzidas de forma unilateral.
Recursos
O pedido, entretanto, foi negado na primeira e segunda instâncias. O
Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) confirmou a validade do
testamento, porque somente quando a cegueira é total é que é vedado à pessoa
testar cerradamente. “Tal não ocorre quando os laudos, juntados aos autos
pelas próprias proponentes da anulação, deixam entrever a possibilidade da
testadora, em que pese a sua cegueira iminente, de inteirar-se do conteúdo
do testamento cerrado que incumbiu a terceiro lavrar, ainda que com o
auxílio de instrumentos oftalmológicos especiais, quando não se comprova a
não utilização desses métodos”, argumentou o TJSC.
Segundo as normas da Organização Mundial da Saúde (OMS), é considerada cega
a pessoa que apresenta, no olho, dominante grau de acuidade visual inferior
a 0,1. Segundo dados contidos no processo, a testadora não estava totalmente
cega, uma vez que o grau de acuidade visual dela no olho direito era de 0,1.
Para o oftalmologista consultado, o problema da empresária pode ter sido
amenizado pela utilização de lupas, telelupas ou mesmo por meio da
iluminação intensa do documento.
Testemunhos juntados aos autos também atestam que a falecida permaneceu à
frente da sua empresa até o dia em que foi internada, tendo comparecido
pessoalmente ao tabelionato de Jaraguá do Sul, sem acompanhantes ou auxílio
de muletas, para reafirmar que o testamento contestado era expressão de sua
real vontade, assinando-o na presença da tabeliã e de testemunhas.
Inconformadas, as sobrinhas recorreram para o STJ. O relator do processo,
ministro Paulo de Tarso Sanseverino, não encontrou base legal para acolher o
pedido. “É de se ponderar, nos termos da jurisprudência desta Casa, que o
‘rigor formal deve ceder ante a necessidade de se atender à finalidade do
ato, regularmente praticado pelo testador’”, afirmou o ministro. Para ele,
deve-se interpretar a matéria testamentária no intuito de fazer prevalecer a
vontade do testador.
Em seu voto, o ministro destacou que reavaliar a conclusão do acórdão
exigiria reexame de fatos e provas, o que não é possível em recurso
especial. O mesmo se aplica quanto à alegação de incapacidade mental da
testadora, que para o TJSC não ficou comprovada de forma convincente, isenta
de dúvidas. Assim, presume-se a existência de capacidade plena.
Quanto à alegação de que o sigilo do testamento teria sido quebrado, porque
não teria sido assinado apenas pelo testador, o ministro disse “beirar a
irrisão”. “Se o documento foi assinado somente pela testadora e as
testemunhas firmaram apenas o termo de encerramento e demais papéis que lhes
foram apresentados, o ato ficou restrito aos seus próprios fins e as
testemunhas não tiveram conhecimento do conteúdo do testamento”, concluiu.
REsp 1001674 |