Se há prova robusta de que o relacionamento entre duas mulheres era visto
como união estável, nos moldes do artigo 1.723 do Código Civil, e que ambas
concorreram para a formação do patrimônio, não há por que negar a uma delas
o direito sucessório, em caso de morte da companheira. Com este
entendimento, a 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
deu provimento à apelação de uma mulher em litígio com a mãe da companheira
que morreu. A segunda instância reformou a sentença que não reconheceu a
união estável. A primeira instância entendeu que a relação era apenas de
‘‘parceria civil’’ — o que não geraria direito aos bens deixados de herança.
Respaldados pelo posicionamento do Supremo Tribunal Federal, no julgamento
da Adin nº 4.277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº
132, em 5 de maio de 2011, os desembargadores foram unânimes em declarar a
existência de união estável homoafetiva entre ambas, com os respectivos
desdobramentos legais. Para as regras que tutelam o direito sucessório entre
companheiros, foi aplicado o artigo 1.790, inciso III, do Código de Processo
Civil. A decisão é do dia 22 de março.
O caso é originário da Comarca de Porto Alegre e tramita sob segredo de
justiça. Conforme o acórdão, L.S.C. e R. de. O. viveram juntas entre julho
de 1983 e fevereiro de 2008, quando a segunda morreu. A primeira teve de ir
à Justiça na Justiça para pedir os direitos de sucessão sobre o imóvel em
que habitava conjuntamente com ela. A ação pedia reconhecimento e dissolução
de união estável, cumulada com petição de herança, movida contra o espólio
de R. de O., representada pela mãe.
O juiz de Direito Marco Aurélio Martins Xavier, ao proferir a sentença,
entendeu que relação era de parceria civil. Em consequência, declarou como
propriedade de L.S.C. a fração ideal de 50% do imóvel que lhes servia de
moradia. Para ele, a partilha deve respeitar esta proporção, inclusive no
que toca às duas construções efetivadas sobre o terreno.
Inconformada com a decisão, L.S.C. interpôs Apelação no Tribunal de Justiça.
Afirmou que a legislação não proíbe a união homoafetiva e que cabe ao
julgador, diante da lacuna da lei, fixar os efeitos jurídicos decorrentes.
Alegou que a sentença feriu o artigo 1º, inciso III, da Constituição
Federal, que dispõe sobre o princípio da dignidade humana. Mencionou também
o artigo 226, parágrafo 3º, da Carta Magna, que reconhece a união estável
entre homem e mulher como entidade familiar. Disse que tal artigo deve ser
aplicado às uniões homoafetivas constituídas com o intuito de família, pois
o Direito tem de acompanhar a evolução da própria sociedade.
Por fim, garantiu ter sido plenamente demonstrado que a união havida com R.
de O. foi pública, contínua, duradoura e com o intuito de constituir
família, somente cessando em razão da morte. A procuradora de Justiça com
assento na 8ª; Câmara Cível, Noara Bernardy Lisboa, opinou pelo provimento
da ação.
O desembargador Ricardo Moreira Lins Pastl, que relatou a matéria no
colegiado, acatou a apelação. Registrou que o Pleno do STF, ao julgar a Ação
Direta de Inconstitucionalidade nº 4277 e a Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental nº 132, reconheceu a proteção jurídica da união estável
entre pessoas do mesmo sexo. Com a decisão, o artigo 1.723 do Código Civil
passou a ser interpretado conforme a mudança constitucional. Logo, foi
excluído do dispositivo legal qualquer significado que impeça o
reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo
sexo como família. Em suma, este reconhecimento deve ser feito segundo as
mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva.
Segundo o relator, a decisão do STF superou a compreensão da sentença, de
que era juridicamente impossível a união estável entre duas pessoas do mesmo
sexo, tese que ainda vigorava na corte. ‘‘Deste modo, e considerando que, na
espécie, o conjunto probatório constante dos autos é robusto no sentido da
presença dos elementos caracterizadores de um relacionamento estável, nos
moldes do artigo 1.723 do Código Civil (...), não há dúvida de que deve ser
emprestado à aludida relação tratamento equivalente ao que a lei confere à
união estável havida entre homem e mulher, inclusive no que se refere aos
direitos sucessórios’’, destacou.
Ao finalizar o voto, o relator, citando o parecer da procuradora de Justiça,
disse que a questão sucessória entre companheiros deve considerar o aplicado
no artigo 1.790, inciso III, do Código de Processo Civil.
Os desembargadores Rui Portanova (presidente do colegiado) e Luiz Felipe
Brasil Santos votaram no mesmo sentido do relator.
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Jomar Martins é correspondente da revista
Consultor Jurídico no Rio Grande do Sul. |