Testamento particular - Abertura - Código Civil de 1916 - Legislação aplicável - Validade do ato jurídico - Princípio da Conservação

 
- O testamento particular, não eivado de qualquer nulidade, há de ser declarado eficaz pelo princípio da conservação.

APELAÇÃO CÍVEL Nº 1.0702.00.023503-7/001 - Comarca de Uberlândia - Relator: Des. NILSON REIS

A C Ó R D Ã O

Vistos etc., acorda, em Turma, a Segunda Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, incorporando neste o relatório de fls., na conformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas, à unanimidade de votos, em negar provimento.

Belo Horizonte, 23 de novembro de 2004. - Nilson Reis - Relator.

N O T A S  T A Q U I G R Á F I C A S

Proferiram sustentações orais, pelo apelante e pelos apelados, respectivamente, os Drs. Luiz Fernando Valladão Nogueira e Humberto Theodoro Neto.

O Sr. Des. Nilson Reis - Senhor Presidente. Ouvi atentamente as brilhantes sustentações orais produzidas pelos ilustres advogados, que sempre que vêm a esta Câmara enobrecem cada vez mais o exercício ético e profissional da advocacia, que tanto auxilia na administração da justiça.

Examinei, como faço, de maneira exaustiva, os autos, que, realmente, trazem uma matéria que é de ocorrência rara. Tenho voto escrito, no qual analiso todas as questões postas da tribuna, assim como dos memoriais e que literaliza o meu convencimento após, como dito, exaustivo exame da matéria, salientando que me ative tanto ao Código Civil de 1916 como ao atual Código de 2002, à análise do direito intertemporal e ao princípio da conservação dos atos jurídicos, realçando que também não me apego a formalismos diante do dinamismo do Direito, que é vivo e deve ser sempre vivificado.

Conheço do recurso, porque presentes os pressupostos de sua admissibilidade.

Tratam os autos de abertura de testamento particular de Maria Aparecida Monteiro, requerida por Maria Francisca Thereza Monteiro, acolhido pela sentença de f. 303/312-TJ.

O apelante, inconformado, apela (f. 313/319-TJ), sustentando que a decisão recorrida não pode prevalecer, porquanto não observada formalidade exigida pela legislação aplicável à espécie, ou seja, o Código Civil de 1916, no que se refere ao número de testemunhas exigidas para confirmação do testamento particular.

Contra-razões, às f. 322/339-TJ, batendo-se os apelados pela manutenção da sentença recorrida.

A douta Procuradoria-Geral de Justiça, em seu parecer de f. 349/353-TJ, opina pelo conhecimento e improvimento do recurso.

Assim relatados, passo à decisão.

A análise dos autos releva que Maria Aparecida Monteiro deixou testamento particular, escrito de próprio punho, em 6.1.80, cuja abertura foi requerida por Maria Francisca Thereza Monteiro, em 13.9.00. A primeira sentença (f. 14-TJ), que determinou o registro, foi anulada pelo acórdão de f. 108/115-TJ, para que se observasse a forma exigida pela legislação civil em vigor. Outra sentença foi proferida, determinado o registro do testamento (f. 303/311-TJ), e contra ela há resistência, ao fundamento de que não foi observada formalidade exigida pela legislação de regência no que se refere ao número de testemunhas exigidas para confirmação do testamento particular.

De início, é preciso destacar que o testamento particular foi escrito em 6.1.80; o pedido de abertura ocorreu em 30.9.00; e a sentença recorrida foi proferida em 10.2.03. Assim, diante da alegação de que não foi observada formalidade exigida pela legislação civil em vigor, em decorrência da vigência da Lei nº 10.406/02, a partir 11.1.03, a primeira providência é definir qual a legislação aplicável à espécie, ou seja, o Código Civil de 1916 (época da elaboração) ou o de 2002 (época da sentença).

Caio Mario da Silva Pereira, ao discorrer sobre o conflito de leis no tempo, anota:

"A lei que regula a forma e a prova dos atos jurídicos é a do tempo em se realizaram. A sua validade deve, portanto, ser apreciada segundo a lei sob cujo império foram efetuados. Se uma lei impõe forma pública para ato que se podia celebrar por escrito particular não atinge os que revestem esta forma, celebrados ao tempo em que a lei o permitia, ainda quando os seus efeitos se venham a produzir sob o império da lei nova" (Instituições de Direito Civil. v. I. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 106).

Com efeito, aplicável ao pedido de abertura do testamento particular de Maria Aparecida Monteiro são as disposições do Código Civil de 1916.

Ocorre que o Código de 1916, bem como o Código de 2002 são instruídos pelo princípio da conservação.

Sérgio Pinto Martins, anota:

"Os princípios diferenciam-se das regras por vários aspectos. As regras estão previstas no ordenamento jurídico. Os princípios nem sempre estão positivados, expressos no ordenamento jurídico, pois em alguns casos estão implícitos nesse ordenamento, contidos em alguma regra. Decorrem os princípios de estimação ética e social.

A regra serve de expressão a um princípio, quando, por exemplo, este é positivado, ou até como forma de interpretação da própria regra, que toma por base o princípio. Os princípios não servem de expressão às regras. As regras são a aplicação dos princípios ou operam a concreção dos princípios, sobre os quais se apóiam.

Sustentam os princípios dos sistemas jurídicos, dando-lhes unidade e solidez. São, portanto, vigas mestras do ordenamento jurídico. Princípio é a bússola que norteia a elaboração da regra, embasando-a e servindo de forma para sua interpretação. Os princípios influenciam as regras.

Os princípios inspiram, orientam, guiam, fundamentam a construção do ordenamento jurídico. Sob certo aspecto, podem até limitar o ordenamento jurídico, erigido de acordo com os princípios. Não são, porém, axiomas absolutos e imutáveis, pois pode haver mudança da realidade fática, que implica a necessidade de mudança da legislação, do Direito, em face da realidade histórica em que foram erigidos.

As regras são instituídas tomando por base os princípios. Orientam os princípios a formação de todo o sistema, enquanto a regra está inserida nele, sendo influenciada pelos princípios. O princípio pode ser levado em consideração para a interpretação da regra, enquanto o inverso não ocorre. A aplicação dos princípios é um modo de harmonizar as regras.

Tem o princípio acepção filosófica, enquanto a regra tem natureza técnica" (Instituições de Direito Público e Privado. 4. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2004, p. 50).

O princípio da conservação prescreve que, a priori, a validade do ato ou negócio jurídico é a regra, é a presunção, sendo exceção sua invalidade. Válido é o negócio ou ato jurídico em que a emissão de vontade e a lei são obedecidas.

Antônio Junqueira de Azevedo doutrina:

"Tanto dentro de cada plano, quanto nas relações entre um plano e outro, há um princípio fundamental que domina toda a matéria da inexistência, invalidade e ineficácia; queremos referir-nos ao princípio da conservação. Por ele, tanto o legislador quanto o intérprete, o primeiro, na criação das normas jurídicas sobre os diversos negócios, e o segundo, na aplicação dessas normas, devem procurar conservar, em qualquer um dos três planos - existência, validade e eficácia -, o máximo possível do negócio jurídico realizado pelo agente" (in Negócio Jurídico - Existência, Validade e Eficácia. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 64).

Como a regra é a validade do negócio jurídico, os arts. 145 e 147 do Código Civil de 1916 elencam, em numerus clausus, os casos de nulidade e anulabilidade do ato jurídico.

Ora, apega-se o apelante ao fato de que não foi observada formalidade exigida pela legislação de regência no que se refere ao número de testemunhas exigidas para confirmação do testamento particular, visto que, das cinco testemunhas que assinaram o testamento feito por sua irmã, apenas uma delas encontra-se viva.

De fato, o art. 1.648 do CCB/16 dispõe:

"Art. 1.648. Faltando até duas das testemunhas, por morte, ou ausência em lugar não sabido, o testamento pode ser confirmado, se as três restantes forem contestes, nos termos do artigo antecedente".

Porém, no caso sub judice, não há alegação de qualquer das nulidades elencadas nos arts. 145 e 147 do código em comento.

Em momento algum se questionou a capacidade jurídica da testadora; a autenticidade do testamento jamais foi questionada e o que se vê, às f. 125/126-TJ, é uma "Escritura Pública Declaratória", na qual a única testemunha sobrevivente, Maurício de Freitas, declara que "... conhecia a falecida Maria Aparecida Monteiro desde 1958, com quem mantinha relações de amizade. Que a falecida era religiosa da 'Congregação das Missionárias de Jesus Crucificado' e residia na mencionada Congregação (...); que tem conhecimento de que a falecida era solteira, sem filhos e proprietária de muitos bens (...); que, em janeiro do ano de 1980, foi convidado pela falecida Maria Aparecida Monteiro, a comparecer na Rua Padre Pio, nº 118, em Uberlândia/MG, para servir de testemunha do testamento que pretendia realizar. Assim, no dia 06 de janeiro de 1980, compareceu à Rua Padre Pio, nº 118, juntamente com quatro outras testemunhas, também conhecidas do declarante, quais sejam: Benedicto Nazário, Aurélio Pastore, Meryge José Alexandre e Caio Manoel Fructuoso. Que, reunidos, o declarante e as quatro testemunhas presenciaram a elaboração de um documento, feito de próprio punho da falecida, em várias folhas de um papel pautado, dizendo ser seu testamento e que, após concluído, foi por ela lido em voz alta, perante o declarante e as demais testemunhas e por fim assinado (...). Que o declarante reconhece sua própria assinatura e a assinatura da falecida e das outras quatro testemunhas, em todas as folhas do testamento".

Em brilhante página sobre o tema aqui abordado, o mestre José Olympio de Castro Filho, in Comentários ao Código de Processo Civil, ao fazê-los sobre o art. 1133, p. 169-171, anota:

"Sobre o requisito da confirmação, Pontes de Miranda investiu duramente contra o sistema do Código Civil, confirmado no Código de Processo Civil de 1939, demonstrando que 'a interpretação estrita, literal, terá o grave resultado de matar ato de extraordinária importância, como é o testamento, sem a culpa e contra a vontade, provada, do testador. Então, o artifício, que tinha por fito proteger a testamentificação, passa a constituir injunção contrária à Justiça. Nessa discordância entre o meio e o fim, a inércia do juiz pode ser indefensável, pode mesmo ser felonia à sua missão. Ele não é um instrumento de imposição, mas instrumento de direito, e o conflito entre o texto imperfeito e as realidades que compõem a situação jurídica deve resolver-se segundo o direito, e não pela capitulação diante da letra injusta. (...) Decidir contra tal testamento, que não oferece dúvidas, ou, se as havia, foram plenamente afastadas pelos meios probatórios admitidos em direito, seria sacrificar aquilo mesmo que as formas solenes quiseram plenamente assegurar'. (...) É que as testemunhas testamentárias apenas existem como meio de prova de que o testemunho é 'autêntico', vale dizer, digno de ser acreditado. E a autenticidade, ou seja, a certeza de que o instrumento emanou de quem é o mesmo atribuído independe, rigorosamente, em muitos casos, de confirmação por testemunhas, já que pode ser comprovada por prova pericial grafológica".

Saliente-se que, no caso em tela, essa prova sequer foi pedida.

E termina o autorizado mestre, afirmando que o testamento "é ato de vontade não das testemunhas, mas do testador".

Ora, a única testemunha assegura que o documento é o original, autêntico, feito por quem tinha capacidade para tal e cumpre as formalidades da lei de regência. Porém, o fato de haver somente uma testemunha sobrevivente não pode invalidar as disposições de última vontade da inventariante. Tanto que o Código Civil de 2002, em seu art. 1.878, parágrafo único, preceitua que: "Se faltarem testemunhas, por morte ou ausência, e se pelo menos uma delas o reconhecer, o testamento poderá ser confirmado, se, a critério do juiz, houver prova suficiente de sua veracidade".

A alteração dos requisitos para alcançar-se a confirmação do testamento particular pelo Código de 2002 vem para corroborar o pensamento, neste voto manifestado, de conservação dos atos jurídicos, mostrando a dinamicidade do direito em sua tentativa de adequação às exigências de um novo tempo.

Na lembrança do direito intertemporal, não se há de desprezar o tempo da expressão da vontade, que se projeta do passado para o futuro, de modo que, no caso dos autos, a situação fática não é seccionada para a aplicação do sistema jurídico. E, mesmo se o fosse, para considerar a aplicação do Código Civil vigente, não vejo problema conflitual capaz de impedir a eficácia do testamento, que se insere em norma de direito material, com a saliência de que a matéria versa sobre interesse privado, de modo que os direitos dos herdeiros legatários nasceram daquele ato e, portanto, não foram perturbados pelo novo Código Civil, conservando-se, na expressão do princípio que emerge, também, das normas da nova Lei Civil. É o império do princípio da conservação, que respeita a vontade da testadora.

Entendo, portanto, que, atendendo ao princípio da conservação, repete-se, existente no Código Civil de 1916 e reforçado no novo Código Civil, sem que tenha sido provado, ou sequer argüido, qualquer vício ou defeito no testamento particular em questão, prevalece o conteúdo daquele testamento, que, mesmo diante do direito das sucessões, sabe-se que o legado é uma doação e a testadora era solteira, sem herdeiros necessários e podia dispor como o fez, sem acarretar prejuízo algum a quem quer que seja - não se podendo confundir os conceitos de prejuízo e frustração -, de modo que válidas a sua vontade e a sua intenção.

Somente a título de ilustração, colhe-se na jurisprudência:

"Testamento - Particular - Autenticidade - Confirmação por apenas duas testemunhas - Irrelevância - Possibilidade de sua comprovação por outros meios probatórios - Hipótese em que as testemunhas falecidas sobreviveram à testadora - Assinaturas lançadas no documento, ademais, que tiveram as respectivas firmas reconhecidas - Impossibilidade de ser-lhe negada eficácia - Inteligência do art. 1.648 do CC - Recurso provido. - O rigor de interpretação dos preceitos relativos à confirmação do testamento particular não se justifica, cumprindo ao intérprete atentar para a finalidade da exigência legal, admitindo-se a eficácia do ato toda vez que sua autenticidade possa confirmar-se por outros meios probatórios" (Apelação Cível nº 172.779-1, 2ª Câmara Cível do TJSP, Águas de Lindóia/S. Negra, Rel. Des. Urbano Ruiz. j. em 07.08.1992).

"Testamento particular - Testamento subscrito por apenas três testemunhas, contrariando a formalidade das cinco testemunhas, previstas no inciso II do artigo 1.645 do Código Civil. - Disposição que deve ser abrandada no Direito moderno, pois a própria ordem legal não a considera tão relevante, conforme se verifica através do art. 1.648, do Código Civil - Recurso provido, para afastar o indeferimento da inicial" (Apelação Cível nº 92.673-1, TJSP, São Paulo, Rel. Des. José Osório. j. em 06.04.1988).

Eliminada a timidez da interpretação e ciente de que sua flexibilização não fere a vontade do legislador de evitar fraudes e diante da regra do art. 5º da LICC, de índole constitucional, não se admite a passividade do julgador, para, lembrando-se do Min. Moreira Alves, possa ser chamado "convidado de pedra", insensível à vivificação do Direito.

Assim sendo, nego provimento ao apelo, para declarar a eficácia do testamento particular de Maria Aparecida Monteiro.

Custas recursais, ex lege.

O Sr. Des. Jarbas Ladeira - Peço vista.

Súmula - PEDIU VISTA O REVISOR. O RELATOR NEGAVA PROVIMENTO.

N O T A S  T A Q U I G R Á F I C A S

Assistiu ao julgamento, pelo apelante, o Dr. Luiz Fernando Valladão Nogueira.

O Sr. Presidente (Des. Francisco Figueiredo) - O julgamento deste feito foi adiado na sessão do dia 16.11.2004, a pedido do Revisor, após votar o Relator, negando provimento ao recurso.

Com a palavra o Des. Jarbas Ladeira.

O Sr. Des. Jarbas Ladeira - Senhor Presidente. O testamento foi inscrito sob a regência do Código Civil de 1916, e também o falecimento do testador deu-se sob a égide do mesmo Código. No referido diploma legal (arts. 1.645 a 1.649), estabelecia-se que, ao ser aberto o testamento, poderiam faltar até duas das cinco testemunhas.

No novo Código Civil (arts. 1.876 e seguintes), o número de testemunhas do ato foi reduzido para três, podendo estar presente até uma quando da confirmação do testamento.

No presente feito, discute-se questão meramente formal, não se contestando a regularidade do testamento, devendo prevalecer o princípio da instrumentalidade dos atos processuais.

Com essas considerações, adiro, por inteiro, ao voto do eminente Relator para confirmar a sentença de primeiro grau.

O Sr. Des. Brandão Teixeira - Trata-se de apelação interposta contra sentença de f. 303/311, que, nos autos da ação de publicação em juízo do testamento particular elaborado por Maria Aparecida Monteiro e requerido por Maria Francisca Thereza Monteiro, determinou seu registro, arquivamento e cumprimento.

Inconformado, o apelante bate-se pela impossibilidade de manutenção da decisão recorrida uma vez que o testamento foi escrito sob a vigência do Código Civil de 1916, que exige a presença de três testemunhas para confirmação do testamento particular, não podendo ser aplicada norma vigente no novo Código Civil.

Sendo a confirmação ato processual presente, não devem ser exigidos para a confirmação de testamento particular praticado na vigência do Código Civil de 1916, no estrito cumprimento dos requisitos necessários à época, os mesmos requisitos do código antigo se a confirmação daquele ato se dá sob a vigência da nova lei civil, que reconhece a validade de testamentos particulares, lidos e assinados por três testemunhas, estando presente apenas uma delas, na eventualidade de morte das outras duas (v. art. 1.878, parágrafo único, CC/2002).

Para melhor distribuição da Justiça, sendo impossível a confirmação do testamento particular pelas testemunhas presenciais do ato em razão do óbito de quatro delas, deve-se aceitar a confirmação daquele pela testemunha supérstite.

Aliás, a questão já se encontra decidida pelo acórdão de f. 108/115, pois ali se deu parcial provimento à apelação interposta pelo ora apelante, para que fosse cassada a decisão monocrática que havia determinado a publicação, registro e cumprimento do testamento particular deixado por Maria Aparecida Monteiro e fossem devidamente observadas as normas processuais respectivas.

À época, a questão da morte de quatro testemunhas presentes à leitura do testamento particular já era de conhecimento deste eg. Tribunal, e pareceu-me que a Turma Julgadora, em sua composição de então, anulou a decisão que determinou a publicação, registro e cumprimento de testamento particular para que as normas processuais fossem cumpridas, considerando, de antemão, que a oitiva de pelo menos três testemunhas presentes à leitura do testamento era impossível, em razão da morte de quatro delas. Implícita estava, pois, a utilidade da oitiva da única testemunha possível de ser ouvida.

Aliás, nos termos do art. 130 do CPC, cabe ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias à instrução do processo, indeferindo as diligências inúteis ou meramente protelatórias.

Portanto, se, agora, se cumpriu a norma processual relativa à oitiva da única testemunha sobrevivente, que confirmou o testamento, sua assinatura pela testadora e pelas demais testemunhas, na presença delas, e ao fato de a testadora encontrar-se em perfeitas condições físicas e mentais à época (v. f. 279), não há razão para negar eficácia ao testamento, ainda que elaborado na vigência do Código Civil de 1916, a cujos requisitos atendia.

O testamento particular é a modalidade mais simples de testamento ordinário dentre as elencadas no art. 1.629 do Código Civil de 1916.

Referindo-se a essa forma testamentária, Orlando Gomes leciona:

"Tem ele, sobre os testamentos públicos, as seguintes virtudes: presteza, comodidade, modicidade do custo. Porque dispensa a intervenção do oficial público, faz-se com maior rapidez, sem necessidade do deslocamento desse auxiliar da justiça ou do próprio testador, e sem pagamento de custas" (Sucessões. Atualizador: Humberto Theodoro Júnior. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 119).

Ainda que o art. 1.645 do antigo Código Civil exigisse intervenção de cinco testemunhas instrumentárias, o art. 1.133 do Código de Processo Civil possibilitava interpretação mais flexível em relação a esse número:

"Art. 1.133 - Se pelo menos 3 (três) testemunhas contestes reconhecerem que é autêntico o testamento, o juiz, ouvido o órgão do Ministério Público, o confirmará, observando-se quanto ao mais o disposto nos arts. 1.126 e 1.127".

O próprio art. 1.648 do Código Civil de 1916 prescrevia que, se houvesse morte ou ausência de até duas das testemunhas, o testamento poderia ser confirmado, "se as três restantes forem contestes", nos termos do artigo 1.647 daquele mesmo codex.

Eduardo de Oliveira Leite, em Comentários ao Novo Código Civil, lecionando sobre testamento particular, colaciona em nota de rodapé o seguinte aresto:

"Testamento - Instrumento particular - Oitiva de duas testemunhas do ato, já que falecidas as outras três - Hipótese em que aquelas comprovaram a autenticidade do documento - Testemunhas falecidas, ademais, que sobreviveram à testadora - Eficácia reconhecida. - O rigor de interpretação dos preceitos relativos à confirmação do testamento particular não se justifica. Cumpre ao intérprete atentar para a finalidade da exigência legal, admitindo a eficácia do ato toda vez que a sua autenticidade possa confirmar-se por outros meios probatórios e não seja estorvada por outro princípio de direito. No caso, as duas testemunhas ouvidas comprovaram a autenticidade do documento efetivamente e externando a última vontade da autora da herança, tendo ela mesmo datilografado o testamento. De outra parte, as testemunhas falecidas sobreviveram à testadora, e todas as assinaturas lançadas tiveram as respectivas firmas reconhecidas" (RT, 69: 106)" (op. cit., volume XXI: Do Direito das Sucessões: arts. 1.784 a 2.027. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 393).

A jurisprudência flexibilizava a norma relativa à confirmação, em favor do cumprimento da última vontade do autor da herança, quando possível aferir-se a autenticidade do documento, mesmo sob a vigência do antigo Código Civil.

Interpretação mais flexível não ofende a intenção do legislador de evitar fraudes. Inclusive, ela é fruto de tendência que se materializou na lei que instituiu o novo Código Civil, que passou a vigorar em 11.01.2003. Observa-se que, em sua seção destinada a disciplinar as regras do testamento particular, é exigido o mínimo de três testemunhas (art. 1.876, SSSS 1º e 2º), e não as cinco contidas no texto do Código Civil de 1916, sendo necessário para a confirmação do testamento particular o reconhecimento dele por apenas uma delas.

Verifica-se, portanto, que o objetivo da lei é evitar fraude. Se a própria lei mais nova considera que a inquirição de uma testemunha é bastante para atender a tal propósito, a confirmação do testamento, instituto de natureza eminentemente processual, deve orientar-se no sentido da lei nova, como critério de interpretação legal, porque prevista em lei, e legítima, porque atende aos propósitos da lei.

Saliente-se que o art. 1.879 do novo Código Civil prevê possibilidade de o juiz confirmar, a seu critério, testamento particular de próprio punho, mesmo ausente de testemunhas, considerando circunstâncias excepcionais.

A jurisprudência é assente no sentido de que "não se deve alimentar a superstição do formalismo obsoleto, que prejudica mais do que ajuda", conforme asseverou o Min. Gueiros Leite (STJ, in RT, 673/168).

Theotônio Negrão anotou:

"O juiz somente negará registro ao testamento se ele padecer de vício externo; eventuais defeitos quanto à formação e manifestação de vontade do testador deverão ser apreciados ou no inventário ou em ação de anulação (JTJ, 157/197)" (in CPC e Legislação Processual em Vigor. 33. ed., p. 966).

A confirmação do testamento pode depender do reconhecimento de apenas uma testemunha, se as outras já houverem falecido, e até mesmo de nenhuma, em circunstâncias especiais e se de próprio punho (arts. 1.878, parágrafo único, e 1.879 do Código Civil de 2002).

Reconhecido pela testemunha ouvida à f. 279, impõe-se a confirmação do testamento, com seu conseqüente registro e determinação de seu cumprimento.

Pelas razões acima, também nego provimento ao recurso para confirmar a r. sentença de primeiro grau.

Súmula - NEGARAM PROVIMENTO.

 


Fonte: Jornal "Minas Gerais" - 30/03/2006