O Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve acórdão do Tribunal de Justiça
de São Paulo (TJSP) que permitiu a um policial civil adotar a filha de um
relacionamento anterior de sua mulher – uma criança de dez anos. A decisão
resultou no reconhecimento da legitimidade do padrasto para o ajuizamento de
pedido preparatório de destituição do poder familiar do pai biológico da
criança, com base no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Segundo o ECA, esse procedimento ocorre por provocação do Ministério Público
ou de pessoa dotada de legítimo interesse (caracterizado por estreita
relação entre o interesse pessoal do sujeito ativo – no caso, o padrasto – e
o bem-estar da criança). O padrasto foi o autor de ação originária no TJSP,
que lhe deu ganho de causa. O pai biológico, inconformado com a decisão do
tribunal paulista, recorreu ao STJ. A Terceira Turma do Tribunal Superior,
no entanto, entendeu que não há como reformar o acórdão recorrido, uma vez
que a regra estabelecida no artigo 155 do ECA foi devidamente observada.
No caso em questão, a mulher do policial teve com o pai biológico da menina
um relacionamento de seis meses, que resultou na gravidez e consequente
nascimento da criança. Os dois, apesar disso, nunca moraram juntos e o pai
só veio a conhecer a filha três meses depois do nascimento. Em 2002, o pai
passou a morar na Austrália, onde permaneceu por três anos, sem jamais
manifestar qualquer interesse pela criança. Lá, envolveu-se com
entorpecentes e acabou sendo deportado.
O padrasto, por sua vez, afirmou que “nunca, em momento algum, desde o
nascimento da menor, o requerido (pai biológico) agiu ou se comportou como
pai, tanto emocional como financeiramente, descumprindo claramente seus
deveres e obrigações por desídia, com nítida demonstração de desamor e
desinteresse”.
Estabilidade
O policial civil contou que passou a conviver com a mãe da criança quando
esta tinha dois anos e assumiu integralmente a família, tornando-se, com o
decorrer do tempo, pai da menor “de alma e de coração”. Destacou, ainda, que
ele e sua esposa trabalham, possuem um lar estável e vivem em ambiente
agradável com as filhas (a que ele pretende adotar e outra do relacionamento
do casal), na companhia de pessoas sãs e idôneas moral e financeiramente.
Ao proferir seu voto, a relatora do recurso no STJ, ministra Nancy Andrighi,
afirmou que o alicerce do pedido de adoção reside no estabelecimento de
relação afetiva mantida entre o padrasto e a criança, em decorrência da
formação de verdadeira identidade familiar com a mulher e a adotanda. “Desse
arranjo familiar, sobressai o cuidado inerente aos cônjuges, em
reciprocidade e em relação aos filhos, seja a prole comum, seja ela oriunda
de relacionamentos anteriores de cada consorte, considerando a família como
espaço para dar e receber cuidados”, ressaltou.
A ministra citou texto do teólogo Leonardo Boff, em que ele afirma que a
constituição do ser humano advém da “atitude de ocupação, preocupação,
responsabilização e envolvimento com o outro”. “O modo de ser cuidado revela
de maneira concreta como é o ser humano. Sem cuidado, ele deixa de ser
humano. Se não receber cuidado desde o nascimento até a morte, o ser humano
desestrutura-se, definha, perde sentido e morre. Se, ao largo da vida, não
fizer com cuidado tudo o que empreender, acabará por prejudicar a sim mesmo
por destruir o que estiver à sua volta. Por isso, o cuidado deve ser
entendido na linha da essência humana”.
REsp 1106637 |