Está mantida a decisão que reconheceu, após quase 66 anos de nascimento, a
paternidade de empresário, já falecido, em relação a filho havido fora do
casamento. A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça negou provimento
ao recurso especial dos demais herdeiros do falecido, irmãos do
investigante, que, após recusa injustificada durante anos para a realização
do teste de DNA, pretendiam que o processo fosse transformado em diligência
para finalmente ser realizado o teste de comprovação.
“Nunca uma situação da vida atual foi tão semelhante com a figura bíblica de
Davi e Golias quanto a luta que o recorrido embate em face dos recorrentes”,
afirmou, emocionada, durante a sustentação oral, a advogada do recorrido. “O
mesmo medo que, a princípio, aterrorizava Davi diante de Golias, também
dominou o recorrido, por litigar contra o poderio da família dos
recorrentes”, destacou ela, que decidiu aceitar a causa após recuo de
muitos.
Segundo o processo, a mãe do investigante teve um relacionamento amoroso em
1942, quando tinha 17 anos de idade e o investigado, casado, mais de 40. A
criança nasceu em outubro de 1943, mas teria tomado conhecimento do fato
apenas aos 19 anos por revelação da avó. A paternidade do investigante
seria, no entanto, pública e notória, inclusive do conhecimento de alguns
familiares do investigado e do público em geral.
A primeira tentativa de reconhecimento ocorreu em 1994, quando o pai, então
investigado, ainda era vivo. Na ocasião, houve recusa à submissão ao exame
de DNA, alegando tratar-se de uma torpe falsidade ideológica, com interesses
puramente patrimoniais. Em 2001, a ação foi extinta, após pedido de
desistência do investigante, que teria sofrido pressões em virtude do
poderio socioeconômico do investigado, conceituado homem público.
Entrou na Justiça novamente. Segundo a advogada, fragilizado após sofrer
pressões para desistir da investigação, desempregado e, mesmo assim,
disposto a pagar o exame de DNA, o autor da ação decidiu que chega uma hora
na vida de um homem em que ele não pode nem deve recuar. “Fortalecido, pois,
na sua vontade de verdade, decidiu ir à luta. Inspirado na conduta e força
moral de Davi e confiando na Justiça, resolveu enfrentar os seus gigantes
com determinação e coragem”, afirmou a advogada.
Apesar da recusa reiterada à realização dos exames, por parte da família, a
paternidade foi reconhecida desde a primeira instância. “Convém afirmar que
existe uma impressionante semelhança física entre o autor e o finado
investigado”, afirmou o juiz. “Pessoalmente ele é ainda mais parecido, tanto
com o de cujus como com toda a família deste, tal qual cópia xerográfica, só
que em uma versão mais castigada e empobrecida, sendo certo que seu timbre
de voz é exatamente o mesmo que é marca registrada de todos os membros da
família”, afirmou o magistrado.
Na sentença, ele observou que a criança cresceu sem estudo, sem trabalho,
sem maiores luzes, conhecendo de perto o lado mais triste e sombrio do
mundo, com todas as dificuldades que uma vida sem recursos pode trazer e
vendo, calado, seus irmãos por parte de pai receberem da vida todas as
benesses que o desaperto econômico pode propiciar.
“E – o que deve ser pior –, vendo toda a família paterna lhe voltar as
costas, negando-lhe por toda a vida o carinho e o amor que lhe eram devidos
por direito, recusando-se a aceitá-lo como filho e irmão, apesar do fato de
que a natureza, como se obrasse de propósito, ter-lhe impresso no corpo
todos os caracteres físicos da família”, acrescentou.
TJ confirma sentença
Em sua defesa os irmãos do investigante afirmaram que a recusa ao exame
devia-se ao fato de não haver quaisquer outras provas do relacionamento e da
paternidade, sendo justificável tal recusa, além do fato de não serem
obrigados a produzir provas contra si mesmos. “A precoce investigação de
microssatélites de DNA terá sido em vão, não havendo negar os custos de sua
realização, assim como o constrangimento que certamente implica aos
requeridos”, afirmou a defesa.
Ao julgar a apelação, o Tribunal de Justiça de Sergipe manteve a sentença.
“É verdade que os depoimentos não servem como prova definitiva, por óbvio.
Mas são bons reforços no convencimento já germinado por aquela recusa
imotivada em se submeter ao exame de DNA”, afirmou o desembargador.
“Ademais, além dos depoimentos prestados, constam nos autos provas
documentais que convergem para o mesmo ponto, embasando, ainda mais, a
pretensão do recorrido”, afirmou.
No recurso para o STJ, os irmãos alegaram violação dos artigos 131 e 132 do
Código de Processo Civil. Afirmaram, entre outras coisas, não ser admissível
a prova emprestada oriunda de depoimentos colhidos em processo findo e
arquivado sem exame de mérito, mediante pedido de desistência do próprio
investigante. Requereram, então, a transformação do julgamento em diligência
para a realização do exame, outrora recusado.
Nas contrarrazões, a defesa do recorrido afirmou acreditar piamente na
Justiça. “Pois ela não se deixa levar pelas ligações das pessoas, pelas
manobras extraprocessuais, pela divergência de forças entre as partes,
sobretudo porque ela, muitas vezes, é o último recurso para que o cidadão
tenha a sua dignidade resgatada”, afirmou.
Por unanimidade, a Terceira Turma negou provimento ao recurso especial. Para
a relatora do recurso, ministra Nancy Andrighi, a prova emprestada, recebida
como prova documental, foi analisada conjuntamente, tanto em 1º como em 2º
grau de jurisdição, com “outros elementos fáticos e probatórios
condicionantes do juízo de convencimento e consequente conclusão do
julgado”, o que não pode ser revisado em recurso especial, por se tratar de
matéria de provas e fatos.
Ressaltou a ministra que, ainda que fosse possível a análise do pedido
deduzido por litisconsorte recorrente no sentido de converter o julgamento
em diligência para a realização da perícia genética que outrora foi recusada
injustificadamente, certo é que o exame de DNA só pode aproveitar à parte
que não deu causa ao obstáculo para sua realização na fase instrutória,
tendo em vista a preclusão consumativa que atinge o recurso especial em sua
interposição.
Ainda segundo a relatora, se todo o quadro probatório confirma a
paternidade, não há por que retardar ainda mais a entrega da prestação
jurisdicional, com a realização de exame reiteradamente recusado.
“Notadamente em se tratando de direito subjetivo pretendido por pessoa que
se viu privada material e afetivamente de ter um pai ao longo de 66 anos de
uma vida, na qual enfrentou toda a sorte de dificuldades inerentes ao ocaso
da dignidade humana”, concluiu Nancy Andrighi.
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