Por se tratar de assunto de interesse
institucional, o Diretor do CEAF publica Parecer do Ministério Público
sobre alteração de nome e sexo em registro civil de nascimento.
EXCELENTÍSSIMO MAGISTRADO
Cuida-se de pedido de retificação de registro civil ajuizado por H. A.
C., devidamente qualificado na exordial, pretendendo alterar seu nome e
sexo no registro civil de nascimento, passando a se chamar D. A. C..
Informa o requerente que, desde a infância, apresenta comportamento
tipicamente feminino, sendo que, aos dezessete anos de idade passou a se
identificar definitivamente como tal, adotando o nome de D., pelo qual é
conhecido até hoje no meio familiar e social. Noticia ainda ter-se
submetido a uma cirurgia de mudança de sexo, juntando laudos médicos
comprobatórios da referida intervenção cirúrgica. O pedido inicial veio
acompanhado dos documentos de fls. 13/33.
Inicialmente intentado tal pedido perante a Vara de Registros Públicos
desta Capital, em decisão prolatada às fls. 48/49 reconheceu-se a
incompetência daquele Juízo para apreciar tal demanda.
Parecer do Ministério Público ofertado às fls. 53/57 pugnando pela
extinção do presente feito sem julgamento do mérito ante a
impossibilidade jurídica do pedido de alteração tão somente do nome do
requerente, o que acarretaria flagrante descompasso entre o nome
(feminino) pretendido e o sexo (masculino) constante de seus
assentamentos civis.
Às fls. 59 foi proferida decisão intimando o autor a juntar aos autos
vários documentos, ocasião em que se determinou a realização de estudo
social do caso. Às fls. 85/89, foi juntado o estudo psicológico do
autor.
Em audiência de instrução e julgamento, foi prestado depoimento pessoal
do autor (fls. 93/94).
Memorial juntado às fls. 95/103.
Em síntese, é o relatório.
Depreende-se dos autos que o requerente sempre se deparou com problemas
de identidade sexual, eis que, apesar de registrado como pessoa do sexo
masculino, já na adolescência, passou a se comportar como se mulher
fosse, vindo a fazer uso de hormônios femininos e submetendo-se
recentemente a uma cirurgia de adaptação da área genital masculina para
a genital feminina, mediante a colocação em seu corpo de uma espécie de
vagina artificial. Pretende agora a retificação de seu nome e sexo no
registro civil para que possa assumir de vez sua condição de mulher.
Deve-se destacar que, por envolver o pedido originário simples
retificação de nome, manifestei-me, num primeiro momento, contrário à
pretensão do autor pelos motivos já aduzidos no parecer interlocutório
lançado no caderno processual. Entretanto, com a emenda à inicial
promovida pelo requerente, passando o mesmo, agora, a pleitear também a
alteração de seu sexo nos assentamentos do Registro Civil, modifica-se a
questão e, por conseqüência nosso posicionamento.
É bem verdade que, mesmo abstraída a questão técnica acima aludida, o
desenrolar do processo e, em particular, a colheita do depoimento
pessoal do autor nos fez refletir melhor acerca da angústia e sofrimento
do requerente ao vir a Juízo buscando amenizar seu inconformismo com sua
situação bio-psicológica. E, sem dúvida alguma, amparado no predicado da
independência funcional indicativo da idéia de que o membro do
Ministério Público, no desempenho de suas atribuições, só está adstrito
à lei e a sua própria consciência jurídica, entendo agora que o
ordenamento jurídico não só pode como deve acolher a súplica ao
requerente.
Comungo, neste particular, com o pensamento do ilustre Desembargador
fluminense, Alyrio Cavallieri, externado em sua célebre frase: "atrás do
papel tem gente". Inegável que o pedido em apreço envolve tema dos mais
controvertidos no direito atual, tornando-se a questão em nosso
ordenamento jurídico ainda mais delicada ante a inexistência de norma
expressa aplicável à espécie. Todavia, é cediço que a eventual lacuna da
lei não exime os operadores do direito de buscarem solução para a
questão apresentada, ex vi do disposto no artigo 126 do Código de
Processo Civil pátrio, devendo, em hipóteses como esta, o magistrado
julgar baseando-se na analogia, nos costumes e nos princípios gerais de
direito. No caso em testilha, deve-se examinar primeiramente o pedido de
alteração do nome para, em seguida, enfrentarmos a questão concernente à
retificação do sexo no registro civil.
Desde logo, é imperioso destacar que, através do nome, a pessoa humana
precisa afirmar sua própria individualidade. O reconhecimento do
"direito ao nome" traduz a noção de que o nome não serve simplesmente
para designar um ser humano, mas essencialmente para proteger a esfera
privada e o interesse de identidade do indivíduo.
É fato que a desconformidade entre o prenome do solicitante e seu
aspecto físico somente surgiu em razão das modificações provocadas pela
cirurgia plástica e pela forma do autor de agir no meio social. Nesse
tema, não se questiona que o ordenamento jurídico pátrio prima pela
imutabilidade do nome da pessoa. Contudo, tal princípio não apresenta
caráter absoluto, dispondo a própria Lei de Registros Públicos em seus
artigos 55 e 58 que poderá haver a retificação do nome em caso de erro
gráfico e quando o mesmo expuser a pessoa que o porta ao ridículo.
É forçoso admitir, contudo, que o citado Diploma Legal, considerado
isoladamente, não serviria de fundamento bastante para a acolhida do
pedido inicial, uma vez que o autor não pretende apenas corrigir
eventual erro de grafia ou mesmo substituir o prenome por apelidos
públicos notórios, mas sim substituir o prenome masculino "H." pelo
feminino "D.". Lado outro, se àquelas disposições legais for dada
enriquecedora interpretação teleológica, fundada na perspectiva dos
artigos 4º e 5º da Lei de Introdução ao Código Civil e do artigo 1º da
Constituição Federal de 1988, certamente encontraremos embasamento
suficiente para o acolhimento do pedido sem que isso represente qualquer
afronta ao direito posto. Ademais, a função jurisdicional não tem por
escopo dizer abstratamente o direito, mas dar uma solução justa a um
problema humano.
Inquestionável, no caso em análise, que o nome designativo de pessoas do
sexo masculino acarreta situações bastante vexatórias para a requerente,
conforme se extrai de seu depoimento pessoal à fl. 93: "[...] seu nome
vem causando muito constrangimento, que não consegue fazer compras a
prazo, ter vida social e uma vida civil normal, [...] é bem
constrangedor, que nunca se identificou como homem, mas sim como mulher,
que já tem 04 anos que fez a operação e se sente normal, [...] que a
procedência do pedido para a declarante é importante, pois vem passando
por uma série de dificuldades inclusive teve que ser internada em
hospital e não sabia se a colocavam num quarto onde havia homens ou num
quarto de mulheres, que se não conseguir a procedência do pedido sua
vida não vai mudar em nada e continuará sendo discriminada".
A respeito, inclusive, do direito ao nome como elemento integrante dos
direitos de personalidade, leciona Maria Celina Bodin de Moraes que
"[...] reconhecer-se um 'direito ao nome' significa, em primeiro lugar,
considerá-lo um elemento da personalidade individual. Nessa medida, o
nome não serve apenas para designar a pessoa humana, mas também, e
principalmente, para proteger a esfera privada e o interesse da
identidade do indivíduo, direito da sua personalidade". Parece oportuno
ressaltar que o nome não é protegido em si e per si mas enquanto se
encontra indissoluvelmente ligado à personalidade do portador [...], o
que se protege não é propriamente o nome mas a pessoa e sua dignidade,
que seriam, através do nome, atingidas".
Não se deve ignorar o dever correlato ao direito ao nome, haja vista que
os indivíduos tem de ser identificados socialmente, tendo o nome também
a função de "sinal distintivo". E em razão justamente desse dever vigora
a regra da imutabilidade que tem por função impedir que uma pessoa, por
malícia, má-fé ou capricho, queira mudar seu nome - fato este que
geraria grande confusão no contexto social. Dessa forma, não estando
presente a intenção de burlar tal espírito da lei a mudança poderá ser
permitida não apenas com relação ao nome em si, suscetível de expor ao
ridículo o seu portador, mas ao nome ligado a circunstâncias
particulares, nas quais se pode atender ao elemento psicológico do
interessado.
Sob outro aspecto, além de resguardar direito de terceiros de boa-fé, a
lei, ao prescrever a imutabilidade do nome, também teve a intenção de
conferir segurança ao tráfico jurídico, evitando-se mudanças de nome
pelo qual a pessoa é geralmente conhecida na coletividade.
Nesse sentido, o entendimento do insigne Silvio Salvo Venosa: "deve-se
entender, todavia, que a regra de imutabilidade do prenome visa garantir
a permanência daquele com que a pessoa se tornou conhecida no meio
social". Observe-se que, mesmo sob essa ótica, não há motivo para que se
proíba a modificação do nome da requerente, vez que se auto denomina D.
A C. e assim se apresenta a todos de seu convívio social, consoante se
extrai das declarações trazidas pela requerente aos autos (fls. 98/103)
No mesmo diapasão, posicionam-se nossos tribunais:
"Registro civil - Prenome - Retificação - Possibilidade - Uso reiterado
- Deferimento - Decisão mantida - Recurso provido. Prenome imutável é
aquele qe foi posto em uso, embora não conste do registro (TJSP.
Apelação cível n. 177.898-4/9 - Ribeirão Preto - 6ª Câmara de Direito
Privado - Relator: Octavio Helene - 31.05.01 - V. U.)
"Registro civil. Pedido de alteração do nome e do sexo formulado por
transexual primário operado. Desatendimento pela sentença de primeiro
grau ante a ausência de erro no assento de nascimento. Nome masculino
que, em face da condição atual do autor, o expõe a ridículo,
viabilizando a modificação para aquele pelo qual é conhecido (Lei n.
6.015/73, art. 55, parágrafo único, c.c. art. 109). Alteração do sexo
que encontra apoio no art. 5º, X, da Constituição República. Recurso
provido para se acolher a pretensão. (TJSP, Apelação cível n.
165.157.4/5, Relator Boris Kauffmann).
De fato, é função da jurisdição encontrar soluções satisfatórias para o
usuário, desde que não prejudiquem o grupo em que vive, assegurando a
fruição dos direitos básicos do cidadão. Nesse contexto, valiosas se
apresentam as palavras do mestre Miguel Reale: "o Direito é, por
conseguinte, um fato ou fenômeno social; não existe senão na sociedade e
não pode ser concebido fora dela. Uma das características da realidade
jurídica é, como se vê, a sua qualidade de ser social".
Na verdade, é justamente por estar atrelado à sociedade, que deverá o
Direito acompanhar as mudanças sofridas por aquela. Seria um rematado
equívoco, acabando por desviar de sua função, qual seja a de dirimir
conflitos, O Poder Judiciário dar as costas aos direitos dos
transexuais, impedindo a tentativa de integração dos mesmos ao convívio
social.
Por sua vez, a alteração da indicação do sexo necessita exame mais
cuidadoso, pois, na realidade, erro no assento não existiu quando de sua
feitura. No entanto, manter-se uma situação atual de um ser, de um lado
mulher no aspecto psíquico e agora também sob o prisma anatômico e, por
outro lado homem, sob a ótica jurídica, constituiria uma alternativa
amarga, destrutiva e incompatível com a dignidade da pessoa humana.
Na esteira dos ensinamentos hauridos nas ciências médicas, considera-se
transexual aquele indivíduo que tem sua identidade sexual invertida,
sendo que seu sexo psicológico é oposto ao seu biológico, fazendo com
que sinta repulsa a seu corpo por acreditar que não condiz ele com seu
verdadeiro sexo. Sua vontade é de viver como membro do sexo oposto ao
seu.
É do conhecimento de todos que, após o nascimento da criança, determina
a Lei de Registros Públicos, que os pais deverão, para fins de obterem a
certidão de nascimento de seu filho, dizer ao tabelião o nome e sexo da
criança. Quanto, ao nome, impera a restrição de que não será admissível
aquele que expuser a criança ao ridículo, sendo certo que o sexo a ser
declarado deverá corresponder às genitálias externas da criança.
Ocorre, porém, que, nos dias de hoje, o sexo da pessoa não mais pode ser
determinado apenas por um fator, sendo na verdade uma combinação de
vetores. Odom Maranhão, citado por Enéas Castilho Chiarini Júnior em seu
artigo intitulado "O transexual e a cirurgia de redesignação de sexo",
define sexo como sendo "[...] uma apreciação plurivetorial. Em outros
termos, o sexo é a resultante de um equilíbrio de diferentes fatores que
agem de forma concorrente nos planos físico, psicológico e social [...].
Assim, fatores genéticos, endócrinos, somáticos, psicológicos e sociais
se integram para definir a situação de uma pessoa em termos sexuais. As
implicações jurídicas serão decorrentes dessa integração". Trata-se aí
do chamado sexo psicossocial, o qual se revela como a definição mais
relevante de sexo, porque, no caso de um desequilíbrio entre os
diferentes "tipos" de definições de sexo, o sexo psicossocial se
sobrepõe às demais concepções de sexo. Tenho para mim, aliás, que reside
nesse ponto a solução para o problema ora enfrentado. Ao determinar o
sexo da criança após seu nascimento, apenas com base na sua genitália
externa, o ordenamento jurídico não leva em consideração a direção que o
desenvolvimento da identidade de gênero desse indivíduo pode tomar.
Apesar de serem reduzidas as diferenças hormonais com o nascimento,
definidoras do sexo, poderão tais diferenças ser mantidas ou
estimuladas, dependendo do ambiente em que a criança cresce. Assim, o
sexo será realmente definido com o desenvolvimento da pessoa, podendo
resultar diferente daquele em que consta em seu registro civil, o que
reforça a premissa de que indivíduos como transtorno de identidade de
gênero merecem ser tratados condignamente.
Por outro lado, insuperável a concepção de que a liberdade sexual
apresenta-se hodiernamente como integrante do vasto direito à vida
privada, direito esse inerente ao indivíduo simplesmente por sua
condição de ser humano. Nas palavras do professor José Adércio Leite
Sampaio: "[...] integra a liberdade sexual a faculdade de o indivíduo
definir a sua orientação sexual, bem assim de externá-la não só de seu
comportamento, mas de sua aparência e biotipia. Esse componente da
liberdade reforça a proteção de outros bens da personalidade como o
direito à identidade, o direito à imagem e, em grande escala, o direito
ao corpo. De Cupis define identidade sexual, no desdobramento do direito
à identidade pessoal, como o 'poder' de aparecer externamente igual a si
mesmo em relação à realidade do próprio sexo, masculino ou feminino,
vale dizer, o direito ao exato reconhecimento do próprio sexo real,
antes de tudo na documentação constante dos registros do estado civil".
Ainda no dizer do citado professor, quando se refere ao disposto no art.
5º, inciso X da Constituição Federal, que diz serem invioláveis a
intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, poderia o
dispositivo ser interpretado como uma "regra e princípio", sendo que, a
seu ver "[...] estão proibidas as intervenções do Estado na esfera da
intimidade e da vida privada das pessoas, se não forem previstas em lei
ou se não forem necessárias ao cumprimento dos princípios opostos que,
devido às circunstâncias do caso, tenham precedência frente ao princípio
da inviolabilidade da intimidade e vida privada".
O fato é que o indivíduo em nada prejudica terceiros pela sua condição
de transexual. E não deve o Estado restringir a liberdade do cidadão,
tão dificilmente conquistada ao longo de nossa história, impulsionado
por falsos moralismos ou posturas preconceituosas, salvo se tais
restrições se mostrarem justificadas pelo bem comum. Proibir a
retificação do sexo em seu registro civil, mesmo depois de procedida a
cirurgia para ablação de seus órgãos genitais e implantação de um novo
órgão, agora condizente com seu real sexo, sem sombra de dúvidas, seria
denegar um direito inerente ao próprio indivíduo.
Uma vez que a Carta de 1988 reconhece a existência de um direito geral
ao livre e pleno desenvolvimento da personalidade humana, negar ao
portador de disforia do gênero o direito à redesignação do estado sexual
e do prenome no assento de nascimento, à evidência, acaba por afrontar
nossa Lei Maior. Tampouco seria correto constar em sua certidão de
nascimento a condição de transexual, pelo que não se resguardaria aí a
privacidade da pessoa. Ademais, deve a interpretação da lei atender a
sua finalidade social, na esteira do que preceitua o artigo 5º da Lei de
Introdução ao Código Civil, finalidade essa que, na situação em testilha,
se afigura como sendo a de servir ao autor enquanto ser humano, evitando
que seja ridicularizado e discriminado seja qual for sua opção sexual.
Deve-se lembrar que, para um indivíduo poder se submeter à cirurgia de
adequação de sexo, imprescindível que passe ele por uma criteriosa
triagem, nos moldes da Resolução n. 1652, de 6 de novembro de 2002, do
Conselho Federal de Medicina, devendo preencher certos requisitos para
que tenha o direito de mudar sua genitália. Presentes todas as condições
elencadas naquela Resolução, estará provada a condição de transexual do
indivíduo, sendo, portanto, merecedor da dita cirurgia.
Assim sendo, a partir do momento que, pela ciência, foi reconhecida a
situação dos transexuais, permitindo inclusive a ablação de seus órgãos
sexuais e a implantação de órgãos artificiais do sexo oposto,
incorreriam os operadores do Direito em flagrante contradição, de raiz
preconceituosa, se não acolhessem os direitos do operado.
Não se está olvidando aqui o fato de, internamente, a constituição
física do indivíduo submetido à referida cirurgia de redesignação
sexual, permanece a mesma, mantendo ele seu sexo de origem. Mas a
sociedade está preocupada com o sexo de origem do indivíduo ou tem ele
direito a uma nova vida, integrado socialmente? É possível negar efeitos
jurídicos oriundos de sua nova condição sexual?
No direito comparado, já encontramos regras disciplinadoras dessas
inquietantes questões.
A lei do Estado da Louisiana, desde 1968, já previa que: "qualquer
pessoa nascida em Louisiana que, após haver sido diagnosticada como
transexual ou como pseudo-hermafrodita, realize cirurgia corretiva ou de
mudança de sexo que altere a sua estrutura anatômica de seu sexo para a
de outro, diverso do indicado originalmente em seu assento de nascimento
poderá requerer à jurisdição para obter um novo registro"
De modo semelhante a lei holandesa de 24 de abril de 1985 possibilita
que o tribunal acate não só a mutação sexual com também a adequação do
prenome no registro civil do transexual.
Também na África do Sul, há lei que confere competência ao Ministro do
Interior para ordenar retificação de atribuição de sexo constante do
registro de nascimento, baseado na cirurgia de mutação sexual, adaptando
o sexo físico ao psíquico.
Entre nós, repise-se que não deve o juiz se furtar ao dever de julgar
tal pedido por não haver lei específica cuidando da matéria, até porque
se não há lei que permita, inexiste norma expressamente proibitiva.
Discorrendo sobre o presente tema, Silvio Salvo Venosa afirma que "[...]
comprovada a alteração do sexo, impor a manutenção do nome do outro sexo
à pessoa é cruel, sujeitando-a a uma degradação que não é consentânea
com os princípios de justiça social. Como corolário dos princípios que
protegem a personalidade, nessas situações o prenome deve ser alterado".
Comungando desse pensamento, observa Elimar Szaniawski que "[...] o
transexual não redesignado vive em situação de incerteza, de angústias e
de conflitos, o que lhe dificulta, senão o impede, de exercer as
atividades dos seres humanos'. Desse modo, a alteração do prenome para o
sexo biológico e psíquico reconhecido pela Medicina e pela Justiça
harmoniza-se com o ordenamento não só com a Constituição, mas também com
a Lei dos Registros Públicos, não conflitando com seu art. 58.
Emblemáticas a respeito da questão ora examinada as decisões colhidas na
jurisprudência pátria, abaixo citadas:
"RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL - ASSENTO DE NASCIMENTO - TRANSEXUAL -
ALTERAÇÃO NA INDICAÇÃO DO SEXO - DEFERIMENTO - Necessidade da cirurgia
para a mudança de sexo reconhecida por acompanhamento médico
multidisciplinar - Concordância do Estado com a cirurgia que não se
compatibiliza com a manutenção do estado sexual originalmente inserto na
certidão de nascimento - Negativa ao portador de disforia do gênero do
direito à adequação do sexo morfológico e psicológico e a conseqüente
redesignação do estado sexual e do prenome no assento de nascimento que
acaba por afrontar a lei fundamental - inexistência de interesse
genérico de uma sociedade democrática em impedir a integração do
transexual = alteração que busca obter efetividade aos comandos
previstos nos art. 1º, III, e 3º, IV, da Constituição Federal - recurso
do Ministério Público negado, provido o do autor para o fim de acolher
integralmente o pedido inicial, determinando a retificação de seu
assento de nascimento não só no que diz respeito ao nome, mas também no
que concerne ao sexo. (TJSP, Apelação cível n. 209.101.4/0, Relator
Elliot Akel).
"APELAÇÃO. REGISTRO CIVIL. RETIFICAÇÃO DO REGISTRO DE NASCIMENTO EM
RELAÇÃO AO SEXO. Passando, a pessoa portadora de transexualismo, por
cirurgia de mudança de sexo, que importa na transmutação de suas
características sexuais, de ficar acolhida a pretensão de retificação do
registro civil, para adequá-lo à realidade existente. A constituição
morfológica do indivíduo e toda a sua aparência sendo de mulher,
alterado que foi, cirurgicamente, o seu sexo, razoável que se retifique
o dado de seu assento, para 'feminino', no registro civil o sexo da
pessoa, já com o seu prenome mandado alterar para a forma feminina, no
caso concreto considerado, que é irreversível, deve ficar adequado, no
apontamento respectivo, evitando-se, para o interessado,
constrangimentos individuais e perplexidade no meio social. As
retificações no registro civil são processadas e julgadas perante o Juiz
de Direito da Circunscrição competente, que goze da garantia da
vitaliciedade, e mediante processo judicial regular. A decisão
monocrática recorrida não contém nulidade insanável. Preliminares
rejeitadas. Recurso, quanto ao mérito, provido, para ficar modificado,
parcialmente, o julgado de 1º grau" (TJERJ, apelação cível n.
2002.001.16591, Relator Ronald Valladares).
Em síntese, a integração na sociedade depende da acomodação do registro,
sendo in casu a preconceituosa manutenção do sexo masculino ou de um
nome tipicamente masculino ou, ainda, a eventual inserção da condição de
transexual no assento de nascimento inaceitável por violadora dos
direitos fundamentais do autor.
Destarte, a pretendida alteração do prenome e do sexo, a par de não
acarretar prejuízos ao meio social, dará solução à incômoda situação em
que se encontra o requerente, superando os transtornos que, de longa
data, está a suportar.
Ante o exposto e fazendo nossas as sábias palavras do eminente Min.
Sálvio de Figueiredo Teixeira, segundo as quais: "O Estado deve assumir
sempre uma posição que valoriza a conquista da felicidade, pois soberana
é a vida, não a lei", opina o Ministério Público, pela procedência do
pedido, devendo-se proceder à retificação do nome e sexo no registro
civil da autora.
Belo Horizonte, 23 de junho de 2004.
Marcelo Augusto Rodrigues Mendes
Promotor de Justiça |