A parcela homossexual da população brasileira, estimada em cerca de 17,9
milhões de pessoas*, comemorou no último mês de agosto uma decisão do
Superior Tribunal de Justiça (STJ) que admitiu a possibilidade jurídica de
reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo. Para muitos
casais é um grande passo, já que a legislação brasileira não vê, na união
homossexual, uma família.
A servidora pública Marina**, 36 anos, que vive há cinco anos com outra
mulher, acha que qualquer medida tomada para reconhecer direitos é válida,
seja para homossexuais ou qualquer outra pessoa. Segundo ela, essa decisão,
especificamente, demonstra que o preconceito, ainda muito grande, está
perdendo espaço. “As pessoas deviam respeitar os outros por sua ética e seu
caráter e não ficar se importando com o que eles fazem ou deixam de fazer
dentro de suas casas, em sua vida particular. A menos que sejam coisas
nocivas aos outros, ninguém tem nada a ver com isso”, afirma.
Em sua opinião, é muito triste duas pessoas se unirem, constituírem um
patrimônio e, de repente, algo acontece e uma delas fica prejudicada. “Isso
sem falar na dificuldade para conseguir inclusão em plano de saúde,
reconhecimento à herança ou transferência funcional, por exemplo. Acho que
decisões como a do STJ são passos importantes para o reconhecimento do que é
uma realidade”, avalia.
Na decisão da Quarta Turma do Tribunal, ficou estabelecido que não existe
vedação legal para que prossiga o julgamento do pedido de declaração de
união estável ajuizado por um casal homossexual na Justiça estadual do Rio
de Janeiro.
Segundo o ministro Luís Felipe Salomão, que desempatou a questão, os
dispositivos legais limitam-se a estabelecer a possibilidade de união
estável entre homem e mulher, desde que preencham as condições impostas pela
lei, quais sejam, convivência pública, duradoura e contínua, sem, contudo,
proibir a união entre dois homens ou duas mulheres.
“O objetivo da lei é conferir aos companheiros os direitos e deveres
trazidos pelo artigo 2º (Lei n. 9.278/96), não existindo qualquer vedação
expressa de que esses efeitos alcancem uniões entre pessoas do mesmo sexo.
Poderia o legislador, caso desejasse, utilizar expressão restritiva, de modo
a impedir que a união entre pessoas de idêntico sexo ficasse definitivamente
excluída da abrangência legal. Contudo, assim não procedeu”, afirma o
ministro em seu voto.
Direito de Família
As relações homoafetivas são uma realidade no Brasil e no mundo. A Dinamarca
foi o primeiro país a reconhecer a união de homossexuais, em 1989. A
Constituição da África do Sul, de 1996, foi a primeira a proibir,
explicitamente, a discriminação em razão da orientação sexual. A Holanda foi
o primeiro país a autorizar o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo,
em 2001.
Entretanto, a lei brasileira até o momento não disciplina especificamente a
questão da união homoafetiva. A doutrina é unânime em considerar que não
pode haver casamento entre pessoas do mesmo sexo, considerando-se a
diversidade de sexos como requisito fundamental para a caracterização do
casamento, assim como a forma solene e o consentimento. Assim, não se
concebe a união homossexual com natureza jurídica de casamento.
Segundo o advogado Gustavo Mourão, mestre pela Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG), muito embora o conjunto das leis civis não proíba a união ou
casamento entre pessoas do mesmo sexo, não se pode deixar de reconhecer que
os princípios gerais e os costumes, quando aplicados ao casamento ou à união
civil, presumem a proteção dos institutos enquanto entidade familiar, o que,
potencialmente, só ocorreria entre homem e mulher.
Outro operador do Direito, o advogado Luís Roberto Barroso, em seu artigo
intitulado “Diferentes, mas iguais: O reconhecimento jurídico das relações
homoafetivas no Brasil”, ressalta que a defesa do modelo tradicional de
família não pressupõe a negação de outras formas de organização familiar.
Segundo ele, não há incompatibilidade entre a união estável entre pessoas do
mesmo sexo e a união estável entre pessoas de sexos diferentes, ou entre
estas e o casamento. “O não-reconhecimento jurídico das uniões homoafetivas
não beneficia, em nenhuma medida, as uniões convencionais e tampouco promove
qualquer valor constitucionalmente protegido”, destaca no artigo.
Direito Patrimonial
Independentemente de reconhecer ou não a união entre pessoas do mesmo sexo
como entidade familiar, as relações homoafetivas procuram encontrar, de uma
forma ou de outra, amparo judicial. Questões como constituição de
patrimônio, pensão, partilha de bens, inclusão de companheiro como
dependente em plano de assistência médica etc. não são novidades no STJ. A
Corte já estabeleceu jurisprudência sobre os temas patrimoniais.
O primeiro caso apreciado no STJ (Resp 148.897) foi relatado pelo ministro
Ruy Rosado de Aguiar, hoje aposentado. Em 1998, o ministro decidiu que, em
caso de separação de casal homossexual, o parceiro teria direito de receber
metade do patrimônio obtido pelo esforço comum.
Também foi reconhecido pela Sexta Turma do STJ o direito de o parceiro
receber a pensão por morte do companheiro falecido (Resp 395.904). O
entendimento, iniciado pelo saudoso ministro Hélio Quaglia Barbosa, é que o
legislador, ao elaborar a Constituição Federal, não excluiu os
relacionamentos homoafetivos da produção de efeitos no campo de direito
previdenciário, o que é, na verdade, mera lacuna que deve ser preenchida a
partir de outras fontes do direito.
Em uma decisão recente (Resp 238.715), o ministro Humberto Gomes de Barros
negou um recurso da Caixa Econômica Federal que pretendia impedir um
homossexual de colocar o seu companheiro há mais de sete anos como
dependente no plano de saúde. O ministro destacou que a relação homoafetiva
gera direitos e, analogicamente à união estável, permite a inclusão do
companheiro dependente em plano de assistência médica.
Projeto de União
Já existem algumas iniciativas para tornar realidade, em nosso ordenamento
jurídico, o reconhecimento da união civil entre pessoas do mesmo sexo. O
Projeto de Lei 1.151/95 é um deles. A proposta garante que duas pessoas que
compartilhem uma vida em comum com laços afetivos, independentemente do
sexo, tenham a possibilidade de regularizar essa situação, constituindo, por
exemplo, bem de família e partilhando o patrimônio construído em conjunto.
No mais, a proposição também assegura a possibilidade de inscrever como
dependente em planos de saúde e direitos previdenciários. O projeto sofreu
algumas alterações e um substitutivo está aguardando a inclusão na pauta do
Plenário da Câmara dos Deputados.
* estimativa da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais,
Travestis e Transexuais (ABGLT).
** nome fictício
Clique aqui e acesse a íntegra do acórdão que permitiu a análise sob a
ótica do direito de família. E
acesse aqui o voto que desempatou o julgamento.
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