Estudo inédito da ONU, apresentado no relatório para os Assentamentos
Humanos (ONU-Habitat), estima que até 2050 a América Latina terá 90% de sua
população residindo em áreas urbanas. O mesmo relatório revela que áreas de
cidades crescem mais que a população. São números preocupantes dado que, em
padrão não sustentável, as cidades crescem cada vez menos compactas e se
expandem territorialmente a uma taxa que supera o aumento demográfico.
Nos últimos cem anos a população urbana no Brasil saltou de 10% para 84%,
conforme o censo de 2010, equivalente a 164 milhões de habitantes.
O processo de urbanização brasileiro apoiou-se essencialmente no êxodo
rural. A migração rural-urbana tem múltiplas causas, destacando-se como
principais a perda de trabalho no setor agropecuário - em conseqüência da
modernização técnica do trabalho rural, com a substituição do homem pela
máquina - e a estrutura fundiária concentradora, resultando em carência de
terras para a maioria dos trabalhadores rurais que, destituídos dos meios de
sobrevivência migraram às cidades em busca de empregos, salários e, acima de
tudo, melhores condições de vida.
Esse último censo também revelou que e o Brasil conta com 6.329 favelas
(aglomerados subnormais) espalhadas por 323 municípios. Nelas residem 3,2
milhões de famílias ou 11,4 milhões de pessoas. Em sua maioria, concentradas
na região sudeste, contraditoriamente, a mais rica.
Em decorrência de diversos fatores como o êxodo rural e a burocratização da
legislação, observados com maior ênfase a partir da segunda metade do século
XX, proliferaram as chamadas propriedades informais, cujo caráter subtrai ao
seu titular um título causal que transmita direitos e assegure as garantias
e prerrogativas decorrentes do domínio regular.
Daí resulta que a expansão desordenada das cidades gerou situações
clandestinas e irregulares nas propriedades, dando origem à fragmentação e à
degradação da paisagem urbana. E os problemas decorrentes da informalidade
não se resumem às questões urbanísticas. Os municípios despreparados para
atender às necessidades básicas dos migrantes, colhem as conseqüências do
aumento do desemprego, da criminalidade, da carência de saúde e de
transportes, além de passivos ambientais, como a poluição do ar e da água.
É preocupante observar que a mancha urbana continua se expandindo apesar da
desaceleração demográfica, refere ainda o estudo da ONU: "A região precisa
de uma política territorial e um planejamento que melhorem os atuais padrões
de crescimento urbano, evitando uma expansão dispersa da cidade e uma maior
segmentação física e social."
O espaço urbano é constituído por paisagem fragmentada. De um lado, com
áreas formadas por empreendimentos vultosos, de grande infra-estrutura
(Cidade Formal); de outro, vastas regiões que se caracterizam por
aglomerados de pessoas (Cidade Informal - Favela).
Partindo-se da premissa que a simples ocupação do meio urbano é ineficaz,
cabe ao Poder Público ordenar e dar infraestrutura a essa ocupação
territorial. A regularização fundiária é um processo preocupado em
transformar terra urbana em terra urbanizada. Compreende um conjunto de
medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam à
regularização de assentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes,
de modo a garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das
funções sociais da propriedade urbana e o direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado (artigo 46, lei 11.977/2007), que poderá ainda
ser complementado com o instituto da desapropriação, quando necessária ao
processo de urbanização para a integração de assentamentos irregulares à
estrutura das cidades (abertura de ruas, espaços necessários às obras de
infaestrutura, etc.)
O pressuposto para a realização do processo de regularização fundiária de
interesse social é a existência de assentamentos irregulares (sem título de
propriedade), ocupados por população de baixa renda, e que o Poder Público
tenha interesse em regularizar, ainda que sejam outros os legitimados a
darem início ao processo (artigo 50).
Por sua vez, a propriedade é um dos direitos mais fortemente tutelados pela
sociedade humana, em todos os tempos. Nos sistemas que protegem a
propriedade individual, a reivindicatória é instrumento legal que legitima a
defesa exercida pelo proprietário contra todos aqueles que violam ou atentam
contra seu direito.
A Constituição toma a propriedade como garantia fundamental individual,
vinculada à sua função social (incisos XXII e XXIII; artigo 5º, Constituição
da República). E assim ocorre por que o indivíduo pode estabelecer sua
moradia, proteger sua família e exercer a plenitude de sua personalidade.
Mesmo a moradia também é protegida como direito social (artigo 6º, CR), ao
passo que seus artigos 183 e 191 garantem a usucapião urbana e rural,
fundadas na posse para fins de moradia. Entretanto, somente na atualidade
foram editados dispositivos legais que possibilitam a plena realização desse
direito constitucional, com intensa repercussão no âmbito social. O intuito
é criar mecanismos que promovam a igualdade material, dando maior equilíbrio
no contexto da sociedade, por meio de soluções que reduzam as desigualdades
sociais e econômicas da população e proporcionem o acesso de todos à
propriedade imobiliária. A regularização fundiária, a usucapião
administrativa e as isenções de emolumentos para a regularização da
propriedade imóvel, são alguns dos mecanismos legais já existentes.
Neste descortino, os instrumentos de regularização fundiária são
fundamentais na prevenção e resolução dos aspectos sociais que cercam a
propriedade informal, com importantes reflexos, seja na reorganização das
congestionadas áreas urbanas, seja no plano econômico. Revestidas de
segurança jurídica, as transações imobiliárias impulsionam a economia e
melhoram as condições de vida da população. E somente a partir de um
ambiente juridicamente seguro é que se estabelece um cenário favorável para
o desenvolvimento do mercado imobiliário, que por sua vez fomenta o crédito
imobiliário, com efeito multiplicador e abrangente na atividade econômica
como um todo. Do direito espera-se o fortalecimento da segurança ao meio
social, sob pena de grave perturbação na ordem jurídica. Mesmo em termos
econômicos paga-se alto pela insegurança jurídica. A redução no número de
compradores e vendedores aptos a passar a escritura definitiva, valendo-se
cada vez mais de outros instrumentos como contratos de gaveta e procuração
sucessiva é diretamente relacionada à falta de liquidez, o que estimula a
depreciação do valor do bem.
Como se sabe, a propriedade imóvel é constituída pela inscrição de título no
Registro de Imóveis. Sem título não há condições jurídicas de constituir a
propriedade, revelando, quando muito, apenas a posse sobre o imóvel
(propriedade informal).
A regularização fundiária urbana não poderá prescindir da necessária
intervenção do Registro Imobiliário da circunscrição territorial do imóvel
que constitua seu objeto, de modo a formatar a titulação da propriedade
imobiliária até então mantida na informalidade.
A partir da edição da Lei 11.977/2009, é possível a aquisição da propriedade
imobiliária (com a formação do respectivo título), em razão da posse
prolongada, através da usucapião administrativa, depois de realizado o
processo de regularização fundiária. A regularização fundiária de interesse
social foi o instituto jurídico mais inovador e revolucionário até então
criado como instrumento de regularização imobiliária no país. Consistiu em
profunda mudança política no modo tradicional de administração urbanística
das cidades brasileiras que, num passado recente, consistia na remoção (ou
expulsão) dessas populações para a periferia das grandes cidades, passando a
adotar um modelo que busca fixar essas populações no local em que se deu a
ocupação.
Visando a solucionar os graves problemas urbanísticos, ambientais e sociais
a serem enfrentados no âmbito do reordenamento urbano das cidades
brasileiras, essa modalidade de regularização fundiária tem o mérito de
harmonizar ações de diferentes órgãos do Poder Público, do Registro
Imobiliário e das organizações representativas da sociedade civil para o
êxito da regularização fundiária.
Autoriza, por exemplo, regras flexíveis para o dimensionamento de áreas
institucionais, de vias públicas e da área mínima dos lotes a parcelar
(artigo 54 combinado com artigo 52 da Lei 11.977/2009); uso de áreas de
preservação permanente (§ 1º do artigo 54) e a realização de compensações
urbanísticas e ambientais (inciso III do artigo 51) necessárias à execução
dos projetos, de modo a viabilizar uma reorganização urbana.
O momento final do processo de regularização fundiária de interesse social é
marcado pela conversão do título de posse em título de propriedade, por meio
da usucapião extrajudicial, com base na Constituição e no Código Civil. Essa
modalidade inicialmente limitava a extensão dos lotes a 250m2, porém desde a
edição da Lei 12.424/2011, é permitida também em relação a lotes com
extensão maior do que 250m2, devendo observar, entretanto, os prazos da
usucapião ordinária e extraordinária previstos, respectivamente, no
parágrafo único do artigo 1.242 (5 anos) e no parágrafo único do artigo
1.238 (10 anos), ambos do Código Civil, hipóteses legais fundadas em
moradia. Assim, o artigo 60, caput e § 3º, da Lei 11.977/2009 permite que o
possuidor do título de legitimação de posse, após cinco ou dez anos do
respectivo registro, requeira ao oficial do Registro de Imóveis a conversão
do título de legitimação em título de propriedade do imóvel regularizado.
A regularização fundiária de interesse social prevista pela Lei 11.977/2009,
aplica-se a assentamentos irregulares, assim consideradas as ocupações
inseridas em parcelamentos informais ou irregulares, localizadas em áreas
urbanas públicas ou privadas, predominantemente utilizadas para fins de
moradia. A União, os Estados e o Distrito Federal, os Municípios, os
beneficiários, individual ou coletivamente, as cooperativas habitacionais,
associações de moradores, fundações, organizações sociais e organização de
sociedade civil de interesse público (OSCIP), outras associações civis com
finalidade ligada a desenvolvimento urbano ou regularização fundiária, em
conjunto ou separadamente estão legitimados a promover regularização de
áreas urbanas irregulares, inclusive os atos de registro (Lei 12.424/2011).
Sem dúvida, norteado no princípio da dignidade da pessoa humana (artigos 1º,
III e 170, CR), e no contexto da uma política urbana consistente (Lei
10.257/2001), com a criação de mecanismos jurídicos, ordenação e controle do
uso do solo, e amparado em sistema registral eficaz, com a participação dos
registradores e notários no processo de regularização, para o que concorre a
agilidade nos procedimentos de retificação de registro, a isenção de custas
e emolumentos nos casos de regularização fundiária de interesse social, a
adoção de tais instrumentos jurídicos inovadores assegura, em sua plenitude,
o exercício da cidadania.
Marcelo Rodrigues é desembargador do Tribunal
de Justiça de Minas Gerais
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